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sábado, 5 outubro, 2024

O que vi e ouvi na Vila Cruzeiro

(Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

O relato de cidadãos sobre o estado que xinga, rouba e mata impunemente.

Carol Castro/Intercept Brasil

Os primeiros sons do fuzil tiraram da cama um casal que dormia de conchinha na madrugada da última terça-feira, 24, na área de mata da Vila Cruzeiro, Zona Norte do Rio. Três tiros perfuraram a caixa d’água da casa – um deles rasgou a parede de madeira, cortou a geladeira, e parou, quase por sorte, ao lado da cama. Os dois gritaram, em desespero, que eram só moradores. “Morador é o caralho!”. Para não deixar dúvidas, a ofensa foi seguida de mais tiros a todas as casas vizinhas. 

Atrás, no quintal, o casal ouviu um policial avisar o parceiro de farda: “tem um escondido aqui”. Me contaram que o rapaz foi morto imediatamente, e o corpo largado ali mesmo. Na sequência, o policial invadiu a casa dos dois pela janela do banheiro, e lançou as perguntas clássicas da polícia nas favelas: “Cadê as armas? Cadê o fuzil? Cadê a pistola?”. 

Se não estava nas mãos do traficante, a arma só podia ter sido escondida na casa daqueles dois. Afinal, na lógica policial, todo morador de favela ou trabalha para o tráfico ou compactua com ele. Mais três policiais entraram na casa de madeira, que não deve ter mais do que 15 ou 20 metros quadrados. Ali começou a exaustiva argumentação para tentar provar que eram só moradores, não bandidos, e assim escapar com vida da arbitrariedade. 

Não ouvi uma ou duas histórias assim. Andar pela Vila Cruzeiro no dia seguinte à segunda chacina mais letal da história do Rio é escutar a cada esquina uma história de violência cometida pelo estado que deveria oferecer segurança. A Patrícia, como contei no Intercept, abriu as portas para os policiais para ser xingada de piranha, vagabunda, mentirosa. E, claro, a pergunta de onde estava o fuzil do irmão. Quanto mais arma apreendida, melhor – a estatística gorda sinaliza uma operação bem sucedida e justifica, na visão de quem manda na polícia e no estado a pilha de 20, 30, 50 mortos.

Teve ainda a garota que contou, com os gravadores desligados, que os policiais haviam invadido a casa dela, revirado tudo e levado o videogame embora. Em seguida, prometeu trazer mais vítimas da violenta abordagem policial. Nunca mais deu as caras. Um senhor lembrou do helicóptero disparando rajadas de balas lá de cima, da esquerda pra direita, e que mais não podia falar. A Patrícia, aliás, nem tem esse nome – omitimos o verdadeiro pela segurança dela. 

O que eles têm se chama medo. Quando as câmeras se apagam e os jornalistas vão embora rumo à outra cidade, a do asfalto, quem pode voltar é a polícia. E aí podem vir as retaliações, as acusações de participação no tráfico, as ameaças, a violência física. Na favela reinam as leis do silêncio e da impunidade, sejam os infratores policiais ou bandidos. 

E, se depender das investigações, melhor mesmo que fiquem calados, sem nem ao menos prestar depoimento, como ensinam as lições de quem sobreviveu a outras chacinas. O inquérito quase nunca vê necessidade de registrar os dois lados da história. Só o da polícia, com a mesma narrativa de sempre: os agentes do estado tentaram fazer seu trabalho, os traficantes revidaram com tiros e a matança foi inevitável. Mas a intenção, juram, não era executar criminosos e quem tivesse o azar de estar na frente, e sim prendê-los à luz do dia e da lei. Na Vila Cruzeiro, a justificativa foi que o serviço de inteligência descobriu que a quadrilha planejava invadir a Rocinha – assim, não restou opção a não ser parir uma “operação emergencial” para matar 23 pessoas. 

E a versão dos moradores? A Polícia Civil convocará testemunhas da chacina para depor, lhes oferecendo segurança para que contem o que viram? A investigação irá de fato apurar se a polícia agiu da melhor maneira possível? É difícil acreditar numa investigação rigorosa quando o projétil que perfurou a geladeira do casal que abre este texto ainda estava no chão da casa deles na quarta-feira seguinte à carnificina. Assim como cápsulas de balas, cartuchos de gás lacrimogêneo e documentos de vítimas ainda estavam no chão de terra da área da Vila Cruzeiro que concentrou a matança quando estive no local, um dia depois da chacina. 

Ao contrário do que vão dizer os “cidadãos de bem”, advogados pro-bono da violência do estado, não se trata de ser “contra a polícia”. Muito menos de “defender bandido”. Mas sim de cobrar dos agentes do estado um trabalho que respeite a lei, o direito e a vida de cidadãos, seguido de uma investigação isenta e competente. A primeira hipótese não mais é possível – houve mais uma chacina. Para tornar realidade a segunda, a polícia tem capacidade. Como me contou Jacqueline Muniz, ex-secretária de segurança pública do Rio de Janeiro, em entrevista meses atrás, “prendemos Elias Maluco, sem dar um tiro, para parar a matança dos grupos armados. Então, sim, é uma escolha. Uma escolha política”.

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