Por: Luis Eustáquio Soares.
“I love this guy!” Barack Obama se referindo a Lula.
ou
“Mutato nomine de la fabula narratur! ( A fábula fala de ti, só que com outro nome!). Basta ler, no lugar de mercado de escravos, mercado de trabalho, no lugar de Kentucky e Virgínia, Irlanda e distritos agrícolas da Inglaterra, Escócia e País de Gales, e no lugar de África, Alemanha!
Karl Marx, O capital. E no lugar de Dilma deposta, da economia brasileira destruída e de Lula preso, a operação Lava a Jato da era Obama.
Preâmbulo
Em diálogo com a oitava tese do ensaio de Walter Benjamin, “Sobre o conceito de história” (1940), existe uma tradição do oprimido que “[…]nos ensina que o estado de exceção em que vivemos é na verdade a regra geral (BENJAMIN, 1994, p. 226)”.
A premissa de referência, a propósito é: todas as sociedades divididas em classes se estruturam com base na tradição do oprimido.
O fato, pois, de existir oprimido já é a prova de que a guerra não é um estado de exceção circunstancial, mas cotidiano, imanente, real, de espectro completo.
Haveria, desse modo, uma relação indiscernível entre o estado de trégua, eufemisticamente chamado de paz, e o estado de exceção, traduzido como guerra de fato, sobretudo porque na era imperialista do capital monopolista há sempre regiões do planeta que estão sob ataque bélico, enquanto outras podem gozar o suposto privilégio de uma aparência de paz.
A interface entre opressor e oprimido não se sustenta sem um estado de exceção permanente e multitudinário, onipresente nas relações sociais de produção, na política, nas instituições, na cultura, no cotidiano.
O estado de trégua na tradição do oprimido é o estado de exceção não declarado e o estado de exceção declarado é o estado de trégua transformado em estado de sítio.
É por isso que a paz só pode ser a paz dos cemitérios, como foi a Pax Romana e como tem sido na atualidade a Pax Americana.
A tradição do oprimido, sendo a regra, espalha-se em todas as instâncias da sociedade, impondo-se como estado de exceção ora declarado, ora ocultado.
A alienação do trabalho e o sistema de aparência da civilização burguesa
No modo de produção capitalista, o estado de exceção como regra geral incorporou uma particularidade curiosa com o fenômeno da alienação, pois esta é a regra geral nas relações sociais capitalistas, incluindo também a classe proprietária e a não proprietária; os opressores e os oprimidos.
Marx e Engels ainda bem jovens tiveram a perspicácia de objetivar a regra geral da alienação na civilização burguesa no livro A sagrada família, obra de 1846, em que é possível ler o seguinte recorte:
A classe possuinte e a classe do proletariado representam a mesma autoalienação humana. Mas a primeira das classes se sente bem e aprovada nessa autoalienação, sabe que a alienação é seu próprio poder e nela possui a aparência de uma existência humana; a segunda, por sua vez, sente-se aniquilada nessa alienação, vislumbra nela sua impotência e a realidade de uma existência desumama. (ENGELS & MARX, 2002, p.48).
O capitalismo é uma totalidade social alienada porque nele a riqueza é socialmente produzida, embora a sua apropriação seja privada.
Para ser redundante, é alienado porque a classe que trabalha está alienada da riqueza que produz alienadamente, uma vez que as mercadorias produzidas não o são em conformidade às necessidades dos produtores, mas dos expropriadores.
O simples ato de compra do “pão nosso de cada dia” é um ato de alienação objetivo, pois oculta as condições de vida do padeiro, dos operários agrícolas que plantaram o trigo e por tabela, visto que tudo está interconectado, põe no limbo a atendente e a caixa da padaria, a memória laboral do trabalhador que comprou o pão, o conjunto da classe trabalhadora mundial, a natureza, a coletividade social, a vida comum.
O metabolismo socioeconômico do capital tem sempre a alienação do trabalho como a sua razão de ser, inclusive o da natureza, ao mesmo tempo em que contribui para produzir um sistema de aparência em que a classe proprietária, também alienada, sempre aparece bonita na foto, para retomar o diálogo com o livro A sagrada família.
A alienação é a condição objetiva, subjetiva e fetichizada de domínio da classe proprietária. É “o seu próprio poder” por meio do qual ela adquire uma “aparência humana”. Por outro lado, para a classe não proprietária, o sistema de aparência da civilização do capital, ocultando-a, ao mesmo tempo a desqualifica, desumaniza, extorque, humilha, embrutece.
Se, com Benjamin, na tradição do oprimido o estado de exceção é a regra, na civilização do capital, o seu sistema mundial de aparência, a própria realidade alienada, funciona como um estado de exceção por meio do qual os donos do capital são sempre visualizados como sérios, rigorosos, civilizados, confiáveis, corretos, louváveis, desejáveis e fetichizados, democráticos, credíveis; e os trabalhadores serão essencialmente a escória, os párias, os desumanizados – os invisíveis.
O sistema de aparência do ultraimperialismo estadunidense: o IV Reich
Por meio de um irônico exercício ficcional de antecipação satírica da estética da recepção, o narrador-personagem de Memórias Póstumas de Brás Cubas, romance de Machado de Assis, espicaçava os leitores de sua época, dividindo-os em dois perfis: o grave e o frívolo, para, ato contínuo, assinalar que nem o primeiro e nem o segundo compreenderão a narrativa que se inicia, ainda que pelo fim, pois:
Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião (MACHADO, 1977, p.23).
Machado soube plasmar a emergência dos primeiros esboços da cultura de massa, com os folhetins de sua época, suporte em que o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas foi publicado, de março a dezembro de 1880.
Soube, pois, ironizar os folhetins utilizando-os para se projetar como escritor, ao mesmo tempo em que perspectivava, não sei sarcasmo, o futuro da seguinte ilusão, a saber: a indústria cultural como mola mestra de produção e reprodução sem fim de alienação e, desse modo, de constituição não menos alienada do perfil humano considerado grave na interface com o que será marcado como frívolo.
Ecoando Marx e Engels de A sagrada família, sem deixar de dialogar com Machado, a indústria cultural, com seus artefatos ilusionistas, separa o mundo entre as pessoas (as graves) que possuem “a aparência de uma existência humana” dos perfis humanos (os frívolos) que serão idiotizados, banalizados, desumanizados.
O crítico de arte, sociólogo e teórico da comunicação inglês, Raymond Williams, a partir de uma abordagem marxista e, portanto, assentada na base material da sociedade, foi extremamente perspicaz e consequente ao conceber a cultura não como uma superestrutura, mas como uma dimensão material inseparável da história como uma produção humana concreta.
Em Marxismo e literatura (1977), assim escreveu a respeito: “Portanto, as possibilidades plenas do conceito de cultura, considerado como um processo social constitutivo, criador de estilos de vida específicos e diferentes, pode ser notavelmente aprofundado com a ênfase posta no processo social material (WILLIAMS, 1977, p. 31)”.
Bem entendido, a indústria cultural do ultraimperialismo estadunidense tornou-se o epicentro desse processo social-material que produz e reproduz sem cessar estilos de vida graves e frívolos em escala planetária, ao mesmo tempo em que edita e reedita a aparência de humano, associando-a ao Ocidente fetichizado, na contramão das resistências, sobretudo de líderes populares e países como China, Rússia, Cuba, Venezuela, Nicarágua, Irã, dentre outros.
Se o que define, também, o capitalismo é o fetichismo da mercadoria e a coisificação da vida, o ultraimperialismo estadunidense se caracteriza como uma empresa mundial de produção de fetichismos, dominando a mercantilização mundial do sistema de aparência da humanidade e, portanto, a ideologia planetariamente dominante de uma forma até então única, embora historicamente determinada.
Daí ser ultraimperialismo porque é o capitalismo do capitalismo e mais: é o metaimperialismo da fase interimperialista precedente, sobretudo tendo como referência a ser subsumida o III Reich, argumento que o pensador húngaro György Lukács na virada da década de sessenta para setenta do passado século desenvolveu de forma perspicaz, ao assinalar o seguinte no livro Para uma ontologia do ser social II: “Hitler não devolveu simplesmente o domínio ao capitalismo imperialista monopolista anterior, mas também lhe imprimiu alguns traços novos e importantes, que só conseguiram chegar ao seu verdadeiro desdobramento nos EUA após a Segunda Guerra Mundial (LUKÁCS, 2013, p.790)”.
E quais seriam esses “traços novos e importantes” que Hitler teria inovado no percurso histórico-social do desenvolvimento do período imperialista do capital monopólico? Como tais “traços novos” alcançariam seu pleno desdobramento com o ultraimperialismo estadunidense?
No livro El asalto de la razon: la trayectoria de irracionalismo desde Schelling hasta Hitler (1968), Lukács, seu autor, associou o desenvolvimento histórico-social desses “traços novos” presentes no Nazismo à história da filosofia irracionalista alemã, tendo como origem o que havia de fuga da história no romantismo reacionário germânico, com seu apego ao corpo e, assim, ao reino do sensível, em perspectiva falsamente secular, posto que separada da totalidade do ser social.
Marx e Engels no Manifesto comunista de 1848 designaram como romantismo reacionário a tendência de retorno demagógico ao passado feudal, estimulada pela aristocracia decadente não apenas da Alemanha mas também de toda a Europa.
A história se movimenta do presente para o futuro tendo a guerra de classes como eixo. O romantismo reacionário se constituiu, nesse contexto, como uma reação aristocrático-feudal ao desenvolvimento histórico-social concreto; uma irracionalista fuga da história baseada na eternização mistificadora de relações de classes feudais, tendo a particularidade aristocrática como essencialmente grave e a particularidade de classe do camponês como essencialmente frívola
Para Lukács, seja de El asalto de la razón, seja de Para uma ontologia do ser social II, a filosofia racional é a que não separa o fenômeno da essência, marcando a ambos como dialeticamente unitários e historicamente constituídos.
O irracionalismo filosófico alemão, no entanto, transformou o fenômeno em essência. No século XIX, apoiando-se no darwinismo social, assumiu uma dimensão racista ao essencilizar a questão étnica, na pressuposição pseudocientífica de que há raças puras e impuras.
De Gobineau, filósofo e diplomata francês, a Chamberlain, Primeiro-Ministro inglês de 1937 a 1940, chega-se a Ronseberg, o teórico do Nazismo, revelando, por meio dessas três figuras representativas do racismo pseudocientífico europeu, que o irracionalismo alemão se transformou no estado de exceção do III Reich a partir de uma base comum: a tradição do oprimido constituída no interior da mística de que a história do Ocidente seja a própria história da civilização.
Voltando ao diálogo com o livro A Sagrada família, de Marx e Engels, o irracionalismo alemão, em sua dimensão romântico-reacionária, levou ao limite do absurdo a ideologia da relação entre civilização e barbárie, parte fundamental da história do Ocidente, adquirindo a seguinte particularidade: a da barbárie do estado de exceção ocidental quando se impõe como metonímia da própria ideia de civilização, assumindo a aparência humana da própria humanidade, desumanizando outros povos, outras civilizações.
O irracionalismo da ideologia nazista estava estritamente vinculado ao fetichismo da particularidade étnica germânica essencializada, embora de modo a-histórico, como se fosse o Ocidente do Ocidente, separando o sujeito germânico da ação expansionista-colonizadora, representado pelo protótipo da superioridade do homem alemão, em um contexto em que a mulher alemã passou a ser concebida como objeto moldável da pureza racial do Ocidente.
O “traço novo” que Hitler acrescentaria à fase imperialista do capitalismo foi, assim, o da barbárie absoluta e irracional de uma máquina publicitária integral porque abrangia tanto o tempo do trabalho como o tempo livre, tendo como referência o pressuposto de que a população fosse moldável como as mulheres.
E moldável a partir de que perspectiva? A da transcendental forma-Ocidente, configurada a partir do mito da superioridade racial europeia, tendo o homem branco como a sua razão de ser.
Novo, portanto, foi o advento de uma cultura de massa usada com objetivo de plasmar a aparência de humano da própria população, tendo a pureza étnica como a irracional e a-histórica fonte de indefinidas edições publicitárias.
Moldável seria o próprio racismo, tornado inseparável do machismo, tendo a figura masculina associada ao agente da ação grave e bélico da epopeia ocidental, Por outro lado, à mulher alemã, igualmente pensada como etnicamente pura, caberia o rótulo de frívola, porque passiva.
Essa irracionalista narrativa de base, ao vincular a figura feminina ao próprio povo, também objeto da ação masculina, constituiu o centro da cultura de massa do Nazismo, cujo objeto, no limite, era o de plasmar a civilização nazista ocidental.
Além disso há, no Nazismo, o mais descarado retorno ao colonialismo, associado à pseudociência da superioridade racial germânico-ocidental em contraposição às etnias preconcebidas como impuras, inferiores, destinadas a serem desumanizadas e eliminadas, assim como os judeus, os ciganos e os eslavos, essas novas figuras humanas da tradição do oprimido da era interimperialista do Ocidente, finalizada com a derrota de Hitler sobretudo pelos soviéticos a partir do fim do cerco nazista à cidade de Stalingrado , talvez a batalha contra a tradição do oprimido ocidental mais épica da história da humanidade, magnificamente retratada por Drummond no poema “Carta a Stalingrado”, presente no livro A rosa do povo de 1945.
E a derrota de Hitler significou realmente o fim do Nazismo, esse mito bárbaro e irracional do Ocidente concebido como o centro transcendental da ideia de civilização?
Ora, é preciso compreender que a questão fundamental não era o Nazismo, mas o fato, em interlocução com Lukács, de o III Reich ter inaugurado um novo imperialismo, baseado na manipulação publicitária das particularidades humanas, por meio da cultura de massa, editando-as como fetiches da pureza da civilização ocidental.
O mais importante, no entanto, é a hipótese apresentada por Lukács relativa ao fato de que esses “novos traços” do imperialismo nazista do III Reich terem não apenas migrado para EUA, mas sobretudo alcançado pleno desenvolvimento com a hegemonia ianque, após a Segunda Guerra Mundial, expressa por meio de um sistema integral de propaganda em que, com Lukács:
[…]ainda mais intensamente de que no caso do próprio Hitler, a publicidade de negócios se converte em modelo de propaganda política, do sugestionamento da ideologia desideologizada com o propósito de dominar; isso se dá, no entanto, de um modo que aparenta ser incomparavelmente mais livre, pois se pretende que justamente o método de manipulação que simule para o homem manipulado a aparência consciente de sua liberdade (LUKÁCS, 2013, p. 793).
É nesse sentido que talvez não seja inverossímil analisar o período de hegemonia estadunidense como a continuação do III Reich, ao retomar, a partir do domínio da indústria cultural, o mito de um Ocidente editado como o conteúdo transcendental da humanidade; mito doravante encarnado na particularidade do excepcionalismo ianque, com o seu Destino Manifesto e, assim, com seu corpo ungido por Deus como escolhido para se impor ao mundo.
O domínio da indústria cultural (hoje realizado por meio de conglomerados como Facebook, Microsoft, Google, Apple, Amazon) significa o controle monopólico da produção mundial de fetichismos da seguinte mercadoria: a da civilização ocidental ao estilo ianque, em oposição a tudo que resiste, editado em tempo real como bárbaro.
Do III Reich ao IV ou da dicotomia de gênero ao reino fetichizado dos agentes da ação.
E o que é a ideologia da desideologização e por que se constitui como a ideologia por excelência do capitalismo mundial integrado estadunidense?
A totalidade do ser social se estrutura pela divisão das classes trabalhadoras e das classes que exploram o trabalho alheio – capital versus trabalho.
A ideologia objetiva, portanto, é a da luta de classes, dialética insciente ou ciente das relações sociais de produção do modo de produção capitalista.
A ideologia da desideologicação se define pela separação das particularidades biopolíticas humanas da totalidade do ser social.
Ao se concentrar na afirmação fetichizada das identidades gênero, étnica, religiosa, do corpo jovem, inclusive o periférico, nos termos do excepcionalismo estadunidense, inevitavelmente por si mesmas tais identidades particularizadas ocupam o lugar da classe trabalhadora, pois o que passa a contar é o imediato vivido da condição particular do sujeito, dissociado das relações sociais de produção objetivas.
É necessariamente desideologizadora porque ao se afirmar em defesa da particularidade pela particularidade abole as classes sociais, inclusive as dos donos dos meios de produção.
Seu nome genérico é o identitarismo, distinto do sistema de particularidade do III Reich porque se neste o dispositivo da divisão dos gêneros essencializava a figura masculina, concebida como agente da ação; assim como o perfil feminino, visto como objeto da ação do primeiro; naquele, por sua vez (de modo a parecer ser “incomparavelmente mais livre”, para retomar Lukács), as particularidades fetichizadas se expressam, todas elas, como agentes do fetichismo da ação, em clave neoliberal.
Outro aspecto importante, derivado do anterior, diz respeito ao fato de que no novíssimo imperialismo estadunidense, a oposição convergente (um não existe sem o outro) entre o grave, agente da ação; e o frívolo, objeto moldável, deixa de existir.
E o motivo é evidente: se as particularidades ou identidades de gênero, etárias, étnicas e religiosas passam a se expressar como agentes da ação, deixa de existir, nesse caso, a separação entre o perfil humano frívolo e grave.
O resultado disso é o seguinte: os fetichismos do sistema integral de propaganda estadunidense tornam-se ao mesmo tempo graves porque frívolos e frívolos porque graves.
Há, no entanto, um aspecto que não foi explicitado, qual seja: para o lado masculino do sistema de identidades fetichizadas do ultraimperialismo estadunidense, vinculado ao nacionalismo a-histórico, estilo cowboy, a separação hierárquica e patriarcal entre ativo e passivo continua a existir.
Com isso, não dá outra: o lado masculino – que pode ser encarnado por qualquer um, não apenas por homens e tampouco por homens brancos – tende a se expressar como potencialmente nazifascista, tendo sobretudo como alvo de ódio os estilos ianques de ser mulher, de ser homoafetividades, negro, numa palavra, alteridades.
Nesse contexto, a luta de classes é substituída pela dominância da ideologia da desideologização, cujo resultado na prática é este: irracional guerra entre o “passivo” e o ativo, mudando tudo para não mudar nada.
Tudo em nome de um simulacro de luta de classes, razão de ser do sistema integral de publicidade estadunidense, com uma perspicácia que não deixa de ser malandra, a saber: a identidade fetichizada masculina é vivida como se fosse a representação da coletividade nacional, tendo como eixo, no caso dos países colonizados, o romantismo reacionário baseado no retorno das relações coloniais de produção, com seus próprios ícones, a depender do país e da região.
Qualquer semelhança com o bolsonarismo, para ficar no contexto brasileiro atual, não é mera coincidência, embora seja importante assinalar a mundialização desse fetiche, tendo como exemplo o romancismo reacionário do retorno ao corpo supostamente glorioso de Stepan Bandeira, líder ucraniano que se aliou a Hitler, na Segunda Guerra Mundial, responsável pelo genocídio de um milhão e seiscentos mil ucranianos.
E, pasmem, retorno manipulado em nome da “independência nacional”, acionado via de regra e paradoxalmente contra a soberania nacional, situação que se percebe por todos os lados, como no caso da presença da bandeira da Inglaterra, na revolução colorida de 2019, em Hong Kong ou do empoderamento de Chiang Kai-Shek entre os “nacionalistas” de Taiwan ou mesmo na onipresença do Islã político entre os muçulmanos.
Por outro lado, as identidades que militam pelo sagrado direito à condição de serem sujeitos de seu destino, no sistema de aparência da dominação ianque, como a feminina, a negra, a indígena, a homoafetiva, tendem a combater o falso universalismo e o falso nacionalismo heterossexuais com a afirmação histérica do particular pelo particular, quando não demandam um retorno mítico ao comunitarismo tribal, na pressuposição de que este último seja a expressão da pureza das origens de seus próprios particularismos.
Como se vê, o romantismo reacionário e, assim, a fuga da história, é o traço comum entre os dois sistemas de identidade da ideologia da desideologização da dominação ianque.
Esta última, ao monopolizar a indústria mundial de produção de fetichismo, edita e reedita um sistema de aparência mundialmente estabelecido no qual a luta de classes se transforma em simulacro de si mesma.
Os dois períodos do sistema de aparência fetichizado do ultraimperialismo estadunidense: as particularidades credoras e devedoras
O economista norte-americano, Michael Hudson, em Super Imperialism: The Origin and Fundamentals of U.S. World Dominance, assim define os dois períodos da hegemonia estadunidense após a Segunda Guerra Mundial:
Os EUA transformaram os modelos mais antigos de imperialismo em superimperialismo, considerando que antes da década de 1960 dominavam as organizações mundiais em função de seu status de credor, deslocando-se, logo depois, para a condição de devedor mundial privilegiado (HUDSON, 2003, p 23-24).
Com Hudson, é possível afirmar que o sistema de aparência biopolítico do Tio Sam, estruturado pela ideologia da desideologização, é constituído por dois períodos: a fase em que o ultraimperialismo ianque detinha o status de credor do mundo inteiro, iniciado em 1947; e a em que prevaleceu o status de devedor do mundo, com o começo marcado pelo fim do padrão dólar-ouro de Bretton Wood, decretado por Nixon em agosto de 1971.
Ambas as fases estão implicadas com complexo industrial-militar, com as guerras sem fim do Pentágono, tendo o dólar como moeda de reserva e de câmbio, além, como ponto não menos importante, com o monopólio da indústria cultural, com seu sistema mundial de produção de fetichismos culturais, políticos, estéticos, econômicos, biopolíticos.
Esses dois status estão relacionados com as duas Guerras Frias ianques, sendo que a primeira está implicada com o período credor do ultraimperialismo estadunidense e a segunda com o devedor.
Como assinalou Perry Anderson em A política externa norte-americana e seus teóricos (2015), Truman, secundado por George Kennan, iniciou a Guerra Fria da fase credora da hegemonia norte-americana precisamente em março de 1947, quando proferiu seu discurso de alerta sobre os perigos do comunismo.
No mesmo mês, o Estado ultraimperialista ianque criou, por meio da malfadada Lei de Segurança Nacional, “o Departamento de Defesa (não mais da Guerra), o Estado-Maior Unificado, o Conselho de Segurança Nacional e – a pièce de résistance –a Agência Central de Inteligência [ CIA, na sigla em inglês].” (ANDERSON, 2015, p. 40).
Com esse rearranjo na estrutura de Estado, inaugurava-se a primeira Guerra Fria, a do período do estado de bem-estar social, indissociável, no plano da publicidade integral, com o total compromisso de fazer de tudo que fosse possível – inclusive a sedução dos estilos de vida – para que o eixo socialista, mais que desistir de lutar, desejasse desistir.
Entretanto, ainda que Hudson tenha assinalado que a fase credora de EUA tenha durado até o final da década de sessenta, o estilo de vida impulsionado pela indústria cultural ianque, embora tenha sido marcado pela fase de bem-estar social do período de exportação de capital (inclusive de estilo de vida) do ultraimperialismo ianque, não é possível precisar o fim da primeira guerra fria, nem o começo da segunda.
Importa, nesse contexto, pensar em termos de processos e tendências relacionados ao ultraimperialismo credor e o devedor. O primeiro, no âmbito da guerra cultural, está sobredeterminado pela primeira Guerra Fria e o segundo, por sua vez, com a segunda, embora não seja improvável que a partir de março de 2020, com a pandemia do Covid, com Grande Reiniciação do Fórum Econômico Mundial e da OMS, estejamos talvez iniciando a Terceira Guerra Fria, hipótese a ser melhor investigada.
A primeira Guerra Fria, a do ultraimperialismo credor, foi o período da invenção da juventude transviada, com epicentro em maio de 68, da geração Rock and Roll, tendo como paradigma as particularidades juvenis do Festival de Woodstock de agosto de 1969, com seu irracionalismo protoanarquista e semilaico, porra-louco, dispendioso, estimulado pelo consumo de drogas e pela suposta liberdade de sexual.
No Brasil, a canção de 1968, “Alegria, alegria”, de Caetano Veloso, constitui um marco importante dos influxos neoliberalmente libertários, culturais e biopolíticos do sistema integral de publicidade ianque tomando de assalto o país e substituindo sorrateiramente a cultura nacional precedente, sobretudo a que veio se constituindo a partir do Modernismo, tendo o povo (e não o indivíduo hedonista isolado) como a um tempo objeto e sujeito de representação.
As estrofes abaixo da letra da canção dizem por elas mesmas:
Caminhando contra o vento/Sem lenço e sem documento/No sol de quase dezembro/ Eu vou
Eu tomo uma Coca-Cola/Ela pensa em casamento/E uma canção me consola/ Eu vou
Sem lenço, sem documento/Nada no bolso ou nas mãos/ Eu quero seguir vivendo, amor/ Eu vou
Tendo o corpo e seus impulsos libidinais como a morada do ser e da verdade a si, dessublimada, a canção de Caetano ecoa a longa jornada nada errante e nada casual do irracionalismo alemão-ocidental, em sua versão estadunidense, marcada pela ideologia da desideologização – típica da primeira Guerra Fria – contra o socialismo real.
A ideologia da desideologização, ao mesmo tempo grave e frívola, expressa-se pela militância fetichizada à liberdade sem limites, tendo o desejo como a sua razão de ser, “caminhando contra o vento”, vale dizer, contra a realidade concreta, configurando-se como puro idealismo que afirma a si mesmo na contramão das lutas de classes, como se fosse possível ser e se dizer fora das relações sociais de produção, sobretudo as coloniais, típicas do Brasil, país que jamais deixou de ser colônia.
O refrão da letra é, a propósito, um primor: “Eu vou”, sem ponto final na suposição de que a liberdade não tenha limites, sobretudo porque o “eu” da cação “toma uma Coca-Cola”, motivo pelo qual está além da demanda institucional de casamento da amada.
Afinal, a verdadeira instituição, na contramão de todas as outras, a única que importa como a quintessência do fetichismo da mercadoria, é a do corpo protoanarquista, senhor de seu desejo.
Essa é, pois, a palavra de ordem da primeira Guerra Fria: “É proibido, proibir!, título e refrão de outra canção de Caetano, apresentada ao público vinte anos após “Alegria, alegria”, precisamente em 1988.
E o lado macho da primeira Guerra Fria ianque, onde fica? O mito bíblico de Caim e Abel é a senha para avançar na argumentação. Como todo mundo sabe, Deus impôs uma marca na testa de Caim como castigo por ter matado o seu preferido, Abel.
À época do sistema colonial/capitalista/imperialista europeu, a alteridade era definida como um outro em relação ao europeu padrão: não branca, não homem, não heterossexual, assim como não letrada.
No interior da hegemonia estadunidense, no entanto, a alteridade passou a ser um signo de publicidade biopolítica dos EUA. No contexto da primeira Guerra Fria, independentemente de ser mulher, gay, negro, ser alteridade significou estar marcado pela plasticidade corporal, no andar, nos gestos, na fala; pelo uso das drogas, pelo comportamento protoanarquista, os cabelos grandes, a liberdade sexual.
Nesse caso, o fator macho da primeira Guerra Fria era definido pelos agentes repressivos, a polícia, no sentido amplo do termo, seja porque poderia estar encarnada na figura do pai, seja na do professor, seja na do carcereiro, na do psiquiatra ou mesmo na da condição operária porque o operário não pode estar livre para usufruir da plena liberdade de “eu vou” e se tentar isso será fatalmente engolido pelo hospício ou pela cadeia ou pela mendicância, quando adulto.
Os exemplos de filhas e filhos de operários psiquiatrizados, presos e abandonados à própria sorte são muitos! É desnecessário descrevê-los aqui, por não ser o objetivo direto deste ensaio.
Relevante é salientar que o estilo ianque da primeira Guerra Fria se tornou publicidade com e de alteridade, na suposição não menos publicitária de que a liberdade supostamente plena de ser outro e outra, agentes da ação, seja prova pessoalmente vivida da democracia estadunidense.
A falsa luta de classes que esse estilo ianque de ser alteridade estimulou, como marca de Caim, derivou do fato de que passou a ser identificado pelos agentes institucionais repressivos como perigoso, improdutivo e indesejável.
Esse conflito ocultou a luta de classes e, no contexto da ditadura militar, contribuiu significativamente para colocar no limbo a esquerda marxista que resistia ao arbítrio sem fim, o que significou na prática uma espécie paradoxal de exílio permanente, quanto mais os estereótipos biopolíticos da primeira Guerra Fria se faziam presentes, na forma-corpo, no cotidiano.
A Segunda Guerra Fria, estando relacionada à fase do ultraimperialismo devedor, foi uma reação de vetor neoconservador e religioso à biopolítica do dispêndio das pulsões corporais/libidinais/festivas da Primeira.
A revista The public interest, que começou a ser publicada em 1965, tendo como editores iniciais Daniel Bell e Irving Kristol, como o próprio nome sugere (em nome do interesse público) foi a plataforma inicial da ideologia da desideologização da Segunda Guerra Fria.
Com dez mil exemplares impressos durante quatro décadas. The public interest reuniu em torno de si os neoconservadores estadunidenses, incluindo uma leva de trotskistas endireitados, com uma proposta editorial que passou a criticar abertamente o estilo dispendioso do estado de bem-estar social e muito especialmente o comportamento despojado e protoanarquista onipresentes.
Um dos editores da The públic interest, Walter Russell Mead, curiosamente, teve um de seus livros traduzido e impresso pelo exército brasileiro. A obra em questão é Uma orientação especial: A política externa norte-americana sua influência no mundo (2006).
E o que seria essa orientação especial? Talvez uma mistura de Destino Manifesto com excepcionalismo ianque, em perspectiva religiosa e neoconservadora. Sim, tudo isso e sobretudo, para o nosso caso, o fato de que na prática essa “orientação especial” significou golpe de Estado e bolsonarismo; rendição aos ianques e traição à soberania nacional.
A revista foi a linha de frente da fase devedora da ideologia da desideologização, tendo sido orientada por valores tradicionais, em clave religiosa neopentecostal a partir da mistura do cristianismo calvinista com a versão sionista do judaísmo.
Gradativamente a biopolítica do bem-estar social da fase credora foi sendo substituída por uma biopolítica neoconservadora, baseada no transbordamento do sionismo para o campo das alteridades de gênero, étnica, por um lado, com o vetor masculino, por outro, sendo arrebanhado pela cultura evangélica neopentecostal, que passa a ter como referência sobretudo as massas operárias.
O primeiro lado, o do estilo ianque de ser alteridade, de ser outra e outro, publicitariamente falando, ficou fundamentalmente confinado às universidades, academizando-se e passando a ser a encarnação biopolítica da nova esquerda – a esquerda confessional do “eu sou mulher”, “eu sou negro”, “eu sou homoafetividade”, militando ardorosamente por sua própria particularidade essencializada.
Essa nova esquerda confessional em linhas gerais se tornou a esquerda ocidental por excelência, sendo plataforma de publicidade sobretudo para o Partido Democrata, indissociável dos conglomerados de Inteligência Artificial das Novas Tecnologias de Comunicação e Informação, como Facebook, Amazon, Apple, Microsoft e Google.
Se o estilo publicitário ianque de ser do ultraimperialismo credor, referendado no corpo jovem, detinha características comuns para mulheres, negros, homoafetividades, como o protoanarquismo, o consumo de droga, o irracionalismo do desejo sem freios como a verdade a si do corpo glorioso, no interior do ultraimperialismo devedor os valores e as perspectivas de ativismo tornam-se próprios a cada unidade identitária, com a tendência de fragmentação cada vez maior.
Por exemplo, para a mulher negra, não basta ser mulher, mas é preciso ser mulher negra. Para a mulher negra homoafetiva, não basta ser mulher negra heterossexual, é necessário que se seja mulher negra homoafetiva.
Diferentemente do identitarismo de alteridade, o estilo macho de ser ianque ( ser macho aqui é um signo vazio que pode ser ocupado por qualquer um) se enquadra na cultura neopentecostal (não importa se se é católico ou se se é ateu), afirmando pontos de vista absolutamente inseparáveis do darwinismo social mais escroto e anticientífico.
Domina, nesse caso, o cinismo e o pragmatismo deslavrados, em nome da acumulação da riqueza ou, em termos de cultura neopentecostal, em nome da teologia da prosperidade.
O objetivo é enriquecer-se, dominando o vale-tudo para tal, inclusive a crença em Deus, que muitas vezes não passa de um efeito cínico do pragmatismo generalizado.
No que diz respeito à dimensão de romantismo reacionário, o identitarismo neopentecostal é marcado pelo retorno ao Antigo Testamento, enquanto o sionista tem como fuga da história o mito do retorno aos primeiros puritanos ianques, razão pela qual milita pela volta ao comunitarismo estilo commonwealth, quando não defende, sobretudo em sua dimensão afrodescendente, o retorno à África tribal das comunidades primitivas.
É por isso afinal que é puritano, o identitarismo de alteridade, porque está sempre buscando a pureza mítica de sua própria particularidade fetichizada.
A título de exemplo, o livro da poeta e tradutora gaúcha Angélica Freitas, um útero é do tamanho do mundo (2017), é bastante ilustrativo por conceber o útero como uma espécie de mônada leibniziana que em si contém em potência e em ato tudo que há no mundo e no cosmos; uma espécie de caixa de Pandora fechada em si mesma e que replica o que existe no fora, não sendo por acaso que a voz lírica diga, para citar um trecho do poema homônimo ao título do livro: “repita comigo: eu tenho um útero/fica aqui/é do tamanho de um punho/nunca apanhou sol (FREITAS, 2017, p. 61).
Platonicamente falando, o útero de Angélica Freitas é o útero-Ideia, sendo do mundo, com a sua multiplicidade de seres, a sua cópia.
Entretanto, esse útero-Ideia ou esse útero-mônada é antes o mundo da ideologia da desideologização e, a partir dessa ideologia de combate à luta de classes como motor da história, uma diversidade de perfis femininos emergem como particularidades à parte, como mundos à parte, como militâncias à parte, supondo, como um milagre, que basta ser um à parte que “a mulher vai ganhar um lugar ao sol/a mulher vai poder dirigir no Afeganistão” (FREITAS, 2017, p. 70).
E o que terá de comum entre o princípio de esperança de a mulher poder dirigir no Afeganistão com os “úteros famosos” (título de um poema) em que aparece, dentre outros, o de Hillary Clinton, “que não tem medo/ de espetáculos na maca fria?” FREITAS,2017, p.60).
Será a esperança de que a invasão genocida dos ianques ao Afeganistão, que empurrou o país para a idade das pedras lascadas, foi de fato realizada para levar ao povo afegão o direito de suas mulheres dirigirem carro, imagem precisa da democracia neoliberal estadunidense?
Sob o ponto de vista da falsa luta de classes, entretanto, o identitarismo sionista que se pensa como um à parte (dentro de um mundo estadunidense, bem entendido) tem como marca de Caim a ser identificada pelo identitarismo neopentecostal precisamente a sua pureza à parte, seu puritanismo.
Em linhas gerais, o que está em jogo é o ritual de sacrifício da cultura religiosa do Antigo Testamento, a do cordeiro de Deus, de DeusTaDosUnidos, bem entendido.
Para o neofascismo neopentecostal macho, estilo Bolsonaro, o desejo de seu Destino Manifesto é o de sacrificar, como um cordeiro de Deus, o identitarismo puritano, maculando, assim, o seu excepcionalismo, em nome da invasão ao Oeste, em nome do faroeste.
Por outro lado, para o identitarismo puritano, Bolsonaro e Cia representam o mal absoluto, porque metafísico e, assim, não histórico – o mal que revela que o mito dos primeiros puritanos ianques – fugindo das lutas de classes na Europa -, o mito de transformar a terra dos Apaches em um paraíso puritano na Terra, nunca deixou de ser o seu revés: saqueio, golpes, genocídios e o mais deletério irracionalismo, capaz de qualquer coisa; do pior, do pior do pior, desde que seja (im)possível.
Porque o fim é o começo
Para terminar, uma pergunta básica? O que é o ultraimperialismo estadunidense? É um imperialismo novo, estilo IV Reich, que herdou a tradição irracionalista alemã, sobretudo a do III Reich, em clave ordoliberal; e as técnicas diversas, inclusive de colonização do inconsciente, do imperialismo liberal inglês.
É o ultraimperialismo neoliberal, em que tudo é grave e tudo é frívolo e, assim, em que tudo que é sólido desmancha no ar, inclusive os seus dois momentos do falso, com seus dois sistemas de aparência infinitamente editáveis, como o dólar, o da Primeira e Segunda Guerras Frias, pois, como sistema integral de publicidade é também sistema integral de edição potencializada por novas tecnologias e novos paradigmas científicos.
No interior da quarta revolução industrial, sobretudo considerando a geração 5G e a 6G, a internet das coisas e das pessoas, associadas à nanotecnologia e a biotecnologia, a compulsão irracionalista ianque para editar tudo que existe na atualidade encontra um novo cenário: o genoma humano e dos seres de modo geral.
Estamos na era das edições genéticas. Isso é um fato e não há novidade nenhuma nisso, assim como não deveria ser novidade que o verdadeiro estado de exceção da hegemonia ianque ser o estado de exceção das edições infinitas de tudo que existe, indissociável da emissão infinita do dólar, como moeda de câmbio e de reserva, e das guerras infinitas do Pentágono.
Como se sabe, Os EUA têm mais de oitocentas bases militares espalhadas pelo mundo, sobretudo em torno de China e Rússia. Ocupar o espaço sempre foi uma forma de exercer e garantir a dominação. O nome genérico disso é: colonizar.
E o modo ianque de ocupar espaço e tempos é editando-os sempre como frívolos e graves, impondo-se, com sua presença militar, cultural e financeira.
Recentemente, tornou-se pública a informação de que os EUA têm mais de quatrocentos laboratórios biológico-militares espalhados pelo mundo. Sabe-se que pelo menos trinta só na Ucrânia.
Quando a tecnologia atômica foi direcionada para a fabricação da bomba atômica, os EUA foram o país que levaram a cabo essa possibilidade. E mais: não hesitaram em testá-la contra Hiroshima e Nagasaki, sendo desse modo que se impuseram e decretaram o estado de exceção mundial: calcinando populações.
A tecnologia atômica teve outros desdobramentos e o processo de fissão atômica da ideologia da desideologização, da Primeira para a Segunda Guerras Frias, é parte do uso dessa tecnologia, também aplicada no âmbito biopolítico-cultural, ao dividir atomicamente as subjetividades, os desejos, as particularidades humanas, em clave fetichista.
Analisando filmes de ficção científica e de terror feitos pela indústria cultural ianque (não importa se é alemão, se é indiano, sul-africano, espanhol), é possível observar duas coisas: a presença de seres híbridos e mutantes; a combinação irônica dos estilos de vida da Primeira e Segunda Guerras Frias.
Objetivamente falando, o estado de exceção contemporâneo, se implicado com as novas forças produtivas e, assim, com a Inteligência Artificial, combinada com as potencialidades bélicas da bioengenharia genética e da nanotecnologia, é antes de tudo o estado de exceção genético, das edições genéticas de nós mesmos.
O IV Reich não tem limites, sobretudo na sua era devedora, que é antes de tudo a era parasitária.
Era da mentira, do estado de exceção dos algoritmos e da inteligência artificial – das edições infinitas de nossos medos e desejos, sempre tendo como pano de fundo, sob o signo do romantismo reacionário, o retorno aos pais fundadores, aos primeiros puritanos, palavra de ordem da agenda em andamento do Great Reset.
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