Michael Hudson [*]
Para a Wall Street e os seus apoiantes, a solução para qualquer inflação de preços é reduzir salários e gasto social público. O caminho ortodoxo para fazer isto é empurrar a economia para a recessão a fim de reduzir a contratação. A ascensão do desemprego obrigará o trabalho a competir por empregos que pagam cada vez menos quando a economia declina.
Esta doutrina da guerra de classe é a primeira diretiva da teoria económica neoliberal. É a visão em túnel de administradores corporativos e dos Um Porcento. O Federal Reserve e o FMI são os seus mais prestigiosos lobistas. Juntamente com Janet Yellen no Tesouro, a discussão pública da inflação de hoje está estruturada de um modo que evita culpar a ascensão de 8,2 por cento dos preços no consumidor às sanções da Nova Guerra Fria da administração Biden ao petróleo, gás e agricultura russa, ou às companhias petrolíferas e outros sectores que usam estas sanções como uma desculpa para cobrar preços de monopólio como se o EUA não tivessem continuado a comprar gasóleo russo, como se o fracking não se houvesse erguido e o milho não estivesse a ser transformado em biocombustível. Não houve interrupção no abastecimento. Estamos simplesmente a tratar de renda monopolista por parte das companhias petrolíferas que usam as sanções anti-russas como uma desculpa de que a escassez de petróleo em breve se verificará nos Estados Unidos e na verdade em toda a economia mundial.
O encerramento devido ao Covid tanto dos EUA como de economias estrangeiras e do comércio externo tão pouco é reconhecido como tendo perturbado linhas de abastecimento e elevado custos de frete e consequentemente preços de importação. Toda a culpa pela inflação é colocada sobre aqueles que ganham salários e a resposta é torná-los as vítimas da austeridade que está para vir, como se os seus salários fossem responsáveis por aumentar preços do petróleo, preços de alimentos e outros preços resultantes da crise. A realidade é que eles também estão muito endividados para serem gastadores.
A teoria econômica lixo do Fed
A pretensão por trás do recente aumento do Fed na sua taxa de desconto em 0,75%, em 15 de Junho (numa faixa insignificante de 1,50% a 1,75%) é que elevar taxas de juro curará a inflação, dissuadindo tomadores de empréstimos a gastarem nas necessidades básicas que compõem o Índice de Preços no Consumidor e o seu correlacionado deflator do PIB. Mas os bancos não financiam muito consumo, exceto dívidas de cartão de crédito, as quais agora são menores do que as de empréstimos estudantis e empréstimos para automóvel.
Os empréstimos dos bancos são quase totalmente para compras imobiliárias, de ações e de títulos, não para bens e serviços. Cerca de 80 por cento dos empréstimos bancários são hipotecas imobiliárias e a maior parte dos empréstimos remanescentes são colaterizados por ações e títulos. Assim, elevar taxas de juro não levará os assalariados a tomarem menos empréstimos para comprar bens de consumo. O principal efeito sobre os preços de menos crédito bancário e mais altas taxas de juro é sobre os preços dos ativos – dissuadindo os tomadores de empréstimos de comprarem casas, bem como para arbitragens na compra de ações e títulos.
Revertendo a propriedade das casas da classe média
O efeito mais imediato do endurecimento de crédito do Federal Reserve será reduzir a taxa de propriedade das casas nos EUA. Esta taxa tem estado a cair desde 2008, de quase 68% para apenas 61% hoje. O declínio começou com o despejo do presidente Obama de quase dez milhões de vítimas de hipotecas lixo, principalmente devedores negros e hispânicos. Essa foi a alternativa do Partido Democrata para cancelar parcialmente empréstimos hipotecários fraudulentos [levando-os] a preços realistas de mercado e reduzindo suas despesas de manutenção (carrying charges) para alinhá-las com valores do mercado de arrendamento. As vítimas endividadas desta fraude bancária maciça tiveram de sofrer, de modo que os patrocinadores de Obama na Wall Street puderam manter seus ganhos predatórios e, na verdade, receber salvamentos externos (bailouts) maciços. Os custos da sua fraude caíram sobre clientes da banca, não sobre os bancos, seus acionistas e detentores dos seus títulos.
O efeito de desencorajar novos compradores de casas pela ascensão das taxas de juros reduz a propriedade de casas – o distintivo da condição de classe média. Apesar disto, os Estados Unidos estão a transformar-se numa economia de senhorios. A política do Fed de elevar taxas de juro aumentará grandemente os encargos de juros que potenciais novos compradores de casas terão de pagar, colocando os preços da sua “capacidade de carga” fora do alcance de muitas famílias.
À medida que os Estados Unidos se tornaram mais endividados, mais de 50 por cento do valor do seu imobiliário já é detido por banqueiros hipotecários. O património líquido dos proprietários – o que eles possuem para além da sua dívida hipotecária – tem caído ainda mais rápido do que declinaram as taxas de propriedade das casas.
O imobiliário está a ser transferido das mãos dos “pobres” para as das corporações de senhorios ricos. Companhias de capital privado – os fundos do Um Porcento – vão recolher as peças para transformá-las em propriedades para arrendamento. Taxas de juro mais elevadas não afetarão o seu custo de compra destas habitações, porque eles compram tudo a dinheiro (cash) para ganharem lucros (realmente, rendas imobiliárias) como senhorios. Em mais uma década a taxa de propriedade de casas do país pode cair em direção aos 50 por cento, transformando os Estados Unidos numa economia de senhorios ao invés do prometido lar da classe média proprietária das suas casas.
A austeridade econômica que está para vir (na verdade, depressão sobrecarregada por dívida)
Enquanto as taxas de propriedade das casas afundavam para a generalidade da população, a “Facilidade Quantitativa” do Fed aumentava o seu subsídio dos títulos financeiros da Wall Street de US$1 milhão de milhões para US$8,2 milhões de milhões – dos quais o maior ganho foi em pacotes hipotecários de lares. Isto impediu os preços da habitação de caírem e se tornassem mais acessíveis para compradores de casas. Mas apoio do Fed aos preços dos ativos salvou muitos bancos insolventes – os maiores deles – de irem abaixo. Sheila Bar do FDIC destacou o Citigroup, juntamente com o Countrywide, Bank of America e os outros suspeitos habituais. A população trabalhadora não é considerada demasiado grande para falir. O seu peso político é pequeno em comparação com o dos bancos da Wall Street.
A redução da taxa de desconto para apenas 0,1 por cento permitiu ao sistema bancário obter uma profusão de ganhos fazendo empréstimos hipotecários a cerca de 3,50 por cento. Assim, apesar de o mercado de ações mergulhar mais 20 por cento, de cerca de 36.000 para menos de 30.000 em 17 de Junho, os mais ricos do Um Porcento, e na verdade o topo dos 10 por cento, aumentaram amplamente a sua riqueza. Mas a maior parte dos americanos não se beneficiou deste avanço nos preços de ativos, porque a maior parte das ações e títulos são possuído apenas pela camada mais rica da população. Para a maior parte das famílias americanas, corporações e governos a todos os níveis, o boom financeiro desde 2008 implicou dívida crescente. Muitas famílias enfrentam a insolvência quando a política do Federal Reserve objetiva criar desemprego. Agora que a moratória Covid nos despejos de locatários atrasados nos seus pagamentos está a expirar, as fileiras dos sem abrigo estão a aumentar.
A administração Biden está a tentar lançar a culpa da inflação de hoje e das distorços relacionadas sobre Putin, utilizando mesmo a expressão “inflação Putin”. Os media mainstream seguem-na ao não explicar ao seu público que bloquear exportações de energia e alimentos russos provocará uma crise alimentar e energética para muitos países neste verão e outono. E na verdade, mais além: militares de Biden e responsáveis do Departamento de Estado advertem que o combate contra a Rússia é só primeiro passo na sua guerra contra a economia não-neoliberal da China – e pode perdurar vinte anos.
Isto é uma longa depressão. Mas como diria Madeline Albright, eles pensam que o preço “vale a pena”. O gabinete de Biden pinta esta Nova Guerra Fria como um combate dos “democráticos” Estados Unidos que privatizam o planeamento económico nas mãos dos maiores bancos “demasiado grandes para falirem” e outros membros da classe neo-rentista, em oposição à “autocrática” China e mesmo à Rússia que tratam a banca e a criação monetária como um serviço público para financiar crescimento económico tangível, não a financiarização.
Não há evidência de que a Nova Guerra Fria neoliberal da América possa restaurar a antiga indústria da nação e o seu poder económico relacionado. A economia não pode recuperar na medida em que ela deixa pairar o fardo da dívida de hoje. Serviço da dívida, custos de habitação, cuidados médicos privatizados e uma infraestrutura decadente tornaram a economia dos EUA não competitiva. Não há maneira de restaurar sua viabilidade económica sem reverter estas políticas neoliberais.
Mas há pouca “teoria económica da realidade” à mão para proporcionar uma alternativa à guerra de classe inerente à crença do neoliberalismo de que a economia e os padrões de vida podem prosperar por meios puramente financeiros, pela alavancagem da dívida e pela extração de renda monopolista pelas corporações enquanto os Estados Unidos tornam a sua indústria manufatureira não competitiva – aparentemente de modo irreversível.
A classe rentista procurou tornar irreversível a privatização neoliberal e a financiarização da América.
Ela teve tamanho êxito que não há partido ou grupo (constituency) que promova tal recuperação. Mas a liderança do Partido Democrata, ao sujeitar a economia a um plano de austeridade estilo FMI, tornará únicas as eleições intercalares de Novembro. Durante o último meio século, o papel do Fed tem sido proporcionar moeda fácil para dar ao partido dominante pelo menos a ilusão de prosperidade a fim de impedir eleitores de votarem no partido da oposição. Mas desta vez a administração Biden está a apostar num programa de austeridade financeira.
A política identitária do Partido trata quase todas as identidades exceto aquela dos assalariados e devedores. Não parece uma plataforma que possa ter êxito. Mas o fantasma de Margaret Thatcher sem dúvida está a dizer-lhes: “Não há alternativa”.
Do mesmo autor:
[*] Economista, Super Imperialism. The Economic Strategy of American Empire.. Seu livro mais recente é The Destiny of Civilization : Finance Capitalism, Industrial Capitalism or Socialism
O original encontra-se em michael-hudson.com/2022/06/the-feds-austerity-program-to-reduce-wages/
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