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domingo, 6 outubro, 2024

O “Pobre de direita” é o bode expiatório perfeito

por Ion de Andrade

Tradicionalmente a esquerda política se entende como portadora da visão política do povo e entende que a eventual não adesão ideológica desse povo  aos valores políticos que o beneficiariam como decorrente de uma alienação política que provem da própria dominação. Já dizia Marx que as ideias dominantes numa sociedade são as ideias da classe dominante, razão porque o voto dos oprimidos, pela própria razão de que são oprimidos é comumente um voto conservador. A “alienação política” é parte integrante do problema que deve ser solucionado.

Historicamente a esquerda se entende, portanto, como força emancipadora, cuja missão é justamente a de enfrentar a dominação política da direita e de contribuir para a emancipação do povo, entendido aliás como o protagonista das transformações sociais.

Teoricamente um golpe de Estado, como o atual, é a ocasião incontornável para a compreensão de fenômenos difíceis de serem percebidos em tempos de normalidade política, fenômenos que, no entanto, poderão ter contribuído para viabilizá-lo, razão porque a “autocrítica” não é nenhum tipo moderno de haraquiri e sim um componente importante do processo de aprendizagem política, cujo principal benefício é o de evitar que o erro cometido se repita.

Tudo muito simples, exceto se tivermos alguém em cima de quem jogar a culpa, papel que ocupa a figura mitológica do pobre de direita, o bode expiatório perfeito.

É bom nos precavermos porque o fascismo, que produz uma espécie de redemoinho que termina por envolver contingentes gigantescos da sociedade, muito além do que poderíamos imaginar, é um fenômeno que envolve sempre a satanização de um terceiro, responsabilizado, então, por todos os males da sociedade. Hoje a esquerda está sendo satanizada, agora o mitológico “pobre de direita”.

É fato histórico muito conhecido que, desde sempre, a direita no Brasil responsabiliza e pune os pobres, sobretudo os negros, pelas mazelas sociais as mais diversas, como a violência, as más condições de saúde e higiene, a feiura das ruas, a ignorância, etc.

Atenção, o fascismo, nos estende a sua ideologia totalizante e totalitária a todos e essa se amolda a ambientes culturais bastantes variados, como um camaleão que, sem perder a forma, toma a cor de onde está.

Vamos reconhecer também que diferentemente das camadas médias mais cerebrais, o povo se politiza pela experiência vivida do projeto de sociedade e se despolitiza por sua ausência. Os nordestinos, por exemplo, são leais a Lula em virtude de que o a experiência do Projeto de Sociedade foi mais clara para eles que saíram da miséria mais profunda aos milhões.

Em contraste com o caráter cerebral da politização da classe média, a politização do povo é visceral. Essa politização não é inferior por não ser cerebral, ao contrário, ao que parece ela tende a ser mais profunda e mais difícil de ser revertida pelo fato de que não está sujeita ao convencimento das narrativas circenses, pois fala de uma verdade experimentada e vivida e entende que o discurso que não a reconhece é que é manipulatório e mentiroso. A esquerda das camadas médias vive um universo bizantino onde as ideias são fugidios pirilampos.

Tempos de autocrítica, onde falhamos? Entendo que falhamos em não ter oferecido a contingentes ainda mais expressivos do nosso povo a experiência visceral que os governos Lula e Dilma ofereceram aos nordestinos.

O que significa isso? Que jamais poderíamos sob a alegação da responsabilidade estadual ter lavado as mãos da humanização das polícias que continuam matando negros. Que jamais poderíamos ter negligenciado com a desumanização do sistema carcerário onde se encontram presos jovens sem culpa formada muitos efetivamente inocentes em convivência impiedosa com os criminosos mais violentos, locais onde experimentam o inferno. Significa que deveríamos ter envidado os nossos melhores esforços para aniquilar a violência nas periferias onde nasce, vive e morre o nosso povo. Que deveríamos ter com maior vigor incorporado essas periferias à contemporaneidade, ao acesso à cultura, à estética urbana, ao esporte e ao lazer; que deveríamos ter assegurado a essas comunidades condições dignas para velar seus mortos, pois muitos ainda têm que ser velados em casa, na sala de 6 metros quadrados, dentre inúmeras outras coisas.

Quando sinalizo isso entre amigos, é comum que haja reações, como se isso significasse que não fizemos nada. Não se trata disto. Significa que erramos.

É evidente, por exemplo, que essa experiência visceral, juntamente com a cerebral, foi experimentada por milhares de jovens nos IFs pelo Brasil a fora e eles evoluíram como os cidadãos altivos que deveriam ser. É evidente que a renda melhorou. É evidente que a desnutrição infantil quase desapareceu. Sei de tudo.

Mas eu sei também que a mãe que teve o seu filho injustamente preso e que lá na prisão vive o impublicável, ou aqueles que continuaram tendo dificuldades para obter condições mínimas de dignidade numa vida pesada e difícil para conseguir um internamento, uma cirurgia ou um medicamento, talvez não tenham conseguido enxergar, apesar do muito que foi feito, as mudanças qualitativas capazes de produzir o salto de consciência que os nordestinos foram capazes de dar, porque ali esse fenômeno libertário se exprimiu visceralmente (comida na mesa) com maior clareza relativa provavelmente porque as condições de miséria eram piores.

O “pobre de direita” é antes de tudo uma chaga que nos responsabiliza. É ele, na verdade, em sua terrível situação de desamparo e inconsciência que aponta para nós.

 

 Jornal GGN

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