OSergey Latyshev [*]
Há um certo número de razões – tanto externas como internas – para a Rússia não ter pressa na sua operação especial na Ucrânia. Conhecendo-as, entende-se tudo.
A utilização pelos EUA e a Europa da Ucrânia terrorista que eles alimentaram como “isco” para a Rússia levou à situação descrita na anedota acerca de um caçador e um urso: não fica claro quem está a guardar quem. Ou o urso está a manter o caçador, ou o caçador está a manter o urso. E se a princípio parecia a muitos no ocidente que a Rússia caíra numa armadilha quando o plano de mudar a Ucrânia para a regime amistoso – ou pelo menos neutral – falhou no princípio de Março, agora estão a ficar sóbrios. Antigos “parceiros” agora começam a entender: foi o ocidente que realmente caiu numa armadilha.
A Rússia, pelo seu lado, abriu uma janela de oportunidades sem precedentes – juntamente com um senso da sua própria força e uma determinação de no futuro viver para si própria e do modo que entender. Isto tornou-se possível pelo choque com o ocidente na Ucrânia, onde será melhor não se apressar e nem tanto por razões táticas e sim por razões estratégicas. Porque prolongar a guerra na Ucrânia permite a Moscou executar o desligamento com o ocidente, sem o qual a Rússia não será capaz de desenvolver-se normalmente e sem que seja reversível. Isto enfraquece, acima de tudo, a Europa e os Estados Unidos, desacredita-os aos olhos do resto do mundo, minando a base do poder económico e financeiro do ocidente.
Suicídio da Europa
Ao falar em 17 de Maio numa reunião sobre a situação na indústria petrolífera, o Presidente da Rússia Vladimir Putin chamou a política de países europeus no sector da energia de “auto-de-fé económico”, “suicida”. Porque ao romper a cooperação com a Rússia, cujo rendimento nesta área aumentou dramaticamente devido à ascensão rápida dos preços, a Europa torna-se sistematicamente, no longo prazo, a região com os mais elevados custos do mundo em recursos energéticos.
Isto, enfatizou Putin, afetará negativamente a competitividade da indústria europeia e privará o continente da oportunidade de aumentar a atividade económica. O presidente russo não sente pena da Europa, porque a sua política é assunto dela. Mas o que importa é o que Putin disse a seguir: “A Rússia deve atuar pragmaticamente e cuidar primariamente dos seus próprios interesses económicos”. Ele prometeu que Moscou “atuará antecipadamente, transformando os passos mal concebidos e caóticos de “países ocidentais” em vantagem sua. O presidente russo lamentou mesmo ser impossível esperar que continuasse a haver erros sem fim, bastando atuar pragmaticamente a partir das realidades.
Na verdade há aqui um problema. Bruxelas, por exemplo, está muito ansiosa por adotar o sexto pacote de sanções contra a Rússia, o qual prevê a recusa de 27 países da UE a comprar petróleo russo durante seis meses e cessar de importar produtos petrolíferos no fim do ano, o que minaria a sua economia e assestaria uma poderosa pancada nos padrões de vida e na estabilidade social. Mas isto já não pode acontecer, porque na Europa (recordar a Hungria) nem todos perderam a cabeça, embora haja alguns loucos que já falam num sétimo pacote…
Os números confirmam-no
O que Putin quis dizer ao falar na insana política anti-russa do ocidente, o qual está constantemente a atirar nos próprios pés? No facto de que a inflação na área euro continua a estabelecer recordes. Como foi informado no relatório da Comissão Europeia (CE) de 16 de Maio, os preços em termos anuais aumentaram de 4,6% no quarto trimestre de 2021 par 6,1% no primeiro trimestre de 2022. De acordo com os resultados do segundo trimestre de 2022, a inflação subiu para 6,9%. A inflação geral na zona euro em Abril de 2022 era de 7,5%, a qual é a mais alta de toda a sua história, admite a CE. Está previsto que a inflação na área euro no fim de 2022 será de 6,8%, a qual é duas vezes mais elevada do que o indicador real do ano “COVID” de 2021. O ódio e a rejeição da Rússia terá de ser pago e é caro.
Na principal economia da Europa, no país mais afetado pelo desligamento com a Rússia – a Alemanha – segundo o seu gabinete de estatística a inflação alcançou os 7,3% no mês de Março. Isto é o recorde dos últimos 40 anos. A última vez que tal nível de inflação na Alemanha foi observado foi no fim de 1981 devido às consequências da guerra Irão-Iraque. Curiosamente, em Fevereiro deste ano, a inflação alemã era de 5,1% e em Janeiro de 4,9%. Ou seja, o crescimento, como se pode ver, é causado primariamente pelos eventos na e em torno da Ucrânia e isto é só o começo. O fuel oil e os preços dos combustíveis na Alemanha também mostraram a mais alta de crescimento anual dos últimos 50 anos. Em Abril de 2020, o Gabinete Federal de Estatística da Alemanha relatava:
“Tais eventos até então foram observados só em conexão com as duas crises petrolíferas de 1974 e 1980 e com a crise dos mercados financeiros e económica de 2008-2009. Contudo, em nenhuma destas crises o aumento dos preços dos combustíveis no consumidor, em base anual, foi mais alta do que em Março de 2022”.
Os estatísticos alemães ligaram diretamente este fenómeno ao conflito na Ucrânia.
Isto é realmente impressionante: ao longo do ano passado, o preço da gasolina premium aumentou em 41,9%; o do gasóleo em 62,6%; o do fuel oil leve em 144%, e na média o preço do combustível motor ascendeu 47,4%. Não é de surpreender, portanto, que tudo na Alemanha esteja rapidamente a tornar-se mais caro. Segundo a revista Focus, os custos das eletricidade para empresas aumentaram em quase 70% em comparação com o ano passado, ao passo que os preços do carvão, madeira, fertilizantes e trigo aumentaram em mais de 20 a 25%. E haverá mais: quando no fim do ano os burgueses receberam um novo cálculo dos serviços de utilidade pública, será um desastre real par o país. E o mesmo acontecerá a outros países europeus importantes. Ao mesmo tempo, o pacote total de “assistência” da UE à Europa é de dois mil milhões de euros!
Em suma, os europeus estão a arruinar-se e a jogar dinheiro fora de modo a que possam continuar a viver com os cintos apertados à mercê daqueles que podem – ou não podem – providenciar-lhes fontes de energia barata. Será que a Europa, que está a ficar mais pobre e pejada com migrantes ilegais à espera de algo completamente diferente enfrentará isso – tanto o povo como a sua classe política? Há grandes dúvidas acerca disto. Na Rússia, naturalmente, a inflação também aumentou e um período de transição difícil está pela frente, mas o nosso patamar de sofrimento historicamente é muito mais alto. Os russos definitivamente sobreviverão, sabendo que agora estão a trabalhar para si próprios e o seu país, o qual se tornará mais rico e melhor no futuro previsível. Os europeus não têm de todo perspetivas brilhantes.
Tão pouco será doce para os Estados Unidos
A situação nos Estados Unidos não é muito melhor. Com Joe Biden a inflação atingiu um máximo de 40 anos nos seus 14 meses de poder. Os preços dos combustíveis dispararam apesar da disponibilização das reservas de petróleo pelas autoridades. Um amigo americano queixou-se de que quando foi à loja para comprar um refrigerador obteve uma “experiência quase comunista”: ao invés de cerca de 20 marcas, como antes, havia apenas três disponíveis, dentre as quais ele tinha de escolher. A recessão que realmente se verificou nos Estados Unidos está menos relacionada com as tentativas de Washington de “enfraquecer” a Rússia com a guerra na Ucrânia e mais com a crescente guerra comercial com a China.
Contudo, a Ucrânia também contribuiu para a crise americana, a que o senador republicano Rand Paul, reduzindo a afetação de quase US$40 bilhões a Kiev (de facto, ao complexo militar-industrial americano, lobistas no Congresso e responsáveis ucranianos ladrões), não deixou de mencionar. O senador, cujo exemplo é a ser adotado por cada vez mais políticos republicanos, justificou a sua posição dizendo que “a maior ameaça aos Estados de Unidos de hoje é a dívida nacional, a inflação e o colapso do dólar”, a situação com a migração ilegal nas fronteiras do sul e não a Ucrânia. Porque os americanos já não pode mais permitir-se desempenhar o papel dos polícias do mundo em detrimento do seu orçamento. No entanto, a Ucrânia tornou-se o maior receptador do mundo da “ajuda militar” dos EUA, ultrapassando o Egito e mesmo Israel.
Segundo o Washington Post, os Estado Unidos gastaram cerca de US$2,7 mil milhões nestes objetivos entre 2013 e 2021. Contudo, desde o começo da operação militar especial russa na Ucrânia, o volume desta “ajuda” montou a US$3,8 mil milhões. Metade do novo pacote (os ucranianos terão de pagar por tudo se a Ucrânia sobreviver) no montante de US$40,1 bilhões refere-se a necessidades militares. Tudo isto, francamente, desce pelo ralo, assim como a “ajuda” ainda maior a fantoches no Afeganistão. Repetimos, responsáveis americanos e locais corruptos e o complexo militar-industrial além mar lucra com isto. Mas este dinheiro definitivamente não irá para hipersónicos, “guerras das estrelas” e assim por diante. E em parte – na forma de troféus – em geral irá para a Rússia.
E quanto à Rússia?
Naturalmente, viver numa era de mudança é sempre difícil, embora interessante. Toda a questão aqui é que é impossível escapar do destino. Mas é importante entender se estamos a mover-nos para a frente ou para trás com o nosso país. Quando alguém lê a a notícia de que, como declarado pelo primeiro-ministro da Rússia Mikhail Mishutin, “o governo está a lançar um projeto federal para criar 30 escolas avançadas de engineering em universidades de várias regiões do país” a fim de “alcançar independência tecnológica no tempo mais breve possível” na base de uma “indústria forte e diversificada”, entende que na Rússia está tudo certo. E que o ocidente nesta matéria, ao procurar ferir-nos, de fato nos ajuda.
E aqui estão mais notícias do mesmo tipo, a aparecerem constantemente depois de 24 de Fevereiro. A Comissão Governamental sobre Atividade Legislativa aprovou um segundo pacote de medidas para apoiar a economia, incluindo um dos mecanismo de nacionalização da propriedade de companhias estrangeiras que abandonam o mercado russo. Isto permite aos tribunais introduzirem administração externa em organizações em que mais de 25% das ações são possuída por pessoas estrangeiras de estados não amistosos, no caso de término de atividades. Isto é uma proteção contra bancarrota e uma medida para salvar empregos. Tudo está explicitado claramente: era seu – tornou-se nosso.
A Bloomberg considerou o rublo como a melhor divisa em termos de fortalecimento contra o dólar. A taxa de câmbio efetiva real do rublo contra divisas estrangeiras aumentou em cerca de 34% em Abril deste ano, de acordo com o Banco Central. Um rublo forte é benéfico para os consumidores, pois significa menos inflação, especialmente da “importada”, e é uma ajuda excelente para produtores internos em termos de desenvolvimento da produção interna e da substituição de importações. Enquanto isso, o ministro da Indústria e Comércio concordou com uma lista de bens e de marcas que podem ser importadas para o país sem a anuência do fabricante. Algumas categorias de produtos são totalmente permitidas.
Isto é necessário para providenciar à população e aos negócios os bens e componentes que forem precisos. O Ministério da Indústria e Comércio ofereceu à venda 50 grupos de produtos sem permissão do possuidor do copyright. Dentre eles estão produtos prontos para o consumidor e componentes para carros. Isto inclui têxteis, produtos de couro, vestuário, perfumes, equipamento, telefones, computadores, equipamento áudio e vídeo e veículos produzidos por companhias estrangeiras. No total, o documento lista 200 ítens e categorias.
E como não se pode estar feliz em que o Presidente Putin tenha assinado uma lei que dá ao governo poderes extraordinários para utilizar patentes ou invenções estrangeiras se for necessário para proteger a saúde dos cidadãos? Emendas correspondentes foram feitas no Artigo 136 do Código Civil da Rússia. E o primeiro-ministro Mishutin assinou o decreto governamental nº 299, o qual permite não pagar compensação a proprietários de patentes se eles estiverem associados a países que são hostis à Rússia, de que há cerca de cinquenta.
E esta é bastante recente. O grupo automóvel francês Renault decidiu abandonar os seus ativos na Rússia devido a sanções. O seu presidente, Jean-Dominique Senard, considerou a decisão “muito difícil”. A resposta russa não tardou a vir.
“Um proprietário estrangeiro decidiu encerrar a fábrica Renault em Moscou. É o seu direito, mas nós não podemos permitir que milhares de empregados fiquem no desemprego. Portanto, decide tomar a fábrica para a cidade e retomar a produção de carros de passageiros sob a marca histórica Moskvich”, anunciou o presidente da municipalidade de Moscou, Sergey Sobyanin.
Segundo informou, a cidade tentará reter a maior parte da equipe que trabalhava diretamente na fábrica, bem como empresas relacionadas, e a “KamAZ” PJSC tornar-se-á o principal parceiro tecnológico do “Moskvich” da Fábrica Automóvel de Moscou. Na primeira etapa, será organizada a produção de carros clássicos com motor de combustão interna e no futuro serão produzidos carros elétricos.
Conclusão quanto a resultados
Em suma, caros ocidentais, vocês “congelaram” metade das reservas de ouro da Rússia e estão a pensar em roubá-las? Admitam! Aquele que semear o vento colherá a tempestade. Vocês tinham a Rússia, até 24 de Fevereiro, como uma semi-colonia econômica, extraindo a sua riqueza e o seus recursos? Recebam agora um fabricante russo! Declararam vocês uma guerra híbrida à Rússia, meus caros amigos, por se recusar a tolerar um estado terrorista criado por vocês aqui ao seu lado? Recebam uma “resposta” aqui também! É por isso que o povo não vai às ruas na Rússia a pedir que o governo acabe a guerra. Porque todos acreditam no governo e, mais importante, no futuro da Rússia. Portanto, estamos a combater na Ucrânia metodicamente e lentamente, aguardando que as Forças Armadas da Ucrânia e outros nazis “flutuem para longe”.
Com a rendição do Azovstal, isto começará em breve. Toda a atenção agora está no Donbass, o qual nas próximas semanas se tornará a sepultura das Forças Armadas da Ucrânia. Mas a Rússia ainda não está com pressa, “tomando conta dos rapazes”, deixando negociações com Kiev para coordenar questões técnicas até a rendição completa. Deixem os Estados Unidos e o ocidente como um todo despejarem dezenas de milhares de milhões de dólares e euros para “ajudar” a Ucrânia. Quanto mais os antigos parceiros da Rússia se enfraquecem, menos eficientemente eles gastam os seus recursos. Quanto mais a guerra híbrida declarada à Rússia sob o pretexto da Ucrânia continuar, mais resolutamente Moscovo cortará laços com o ocidente.
Para a Ucrânia, o que está a acontecer é de grande importância educacional: é impossível tornar-se uma ferramenta nas mãos de potências estrangeiras hostis. Ser anti-Rússia é penalizador. Quase metade da sua indústria entrou em colapso. Uma fome real está a vir, agravada pela exportação criminosa de cereais ucranianos para o ocidente nestas condições – não haverá pão no país, nem tão pouco gado que fica sem nada para comer. O que comerá você dentro de poucos meses, como aquecerão suas casas no outono e inverno, sem mencionar empresas industriais e centrais nucleares, muitas das quais simplesmente serão demolidas. Nos antigos territórios ucranianos ocupados pela Rússia, a vida será um paraíso em comparação com os territórios controlados por Kiev. Um dia, tanto na Europa como na Ucrânia, todos compreenderão que apoiar Kiev é uma causa perdida, inútil e sem esperança. Mas será demasiado tarde.
E então?
Na Ucrânia, tudo se tornará claro quando se aproximar o inverno. Ela não sobreviverá sem a Rússia. Ao mesmo tempo, os países europeus serão atingidos por uma crise que eles até temem pensar. Tendo recursos internos significativos, o mercado estado-unidense não ficará muito empobrecido. Sacos de dinheiro americano até ganharão alguma coisa com a guerra, como sempre, e enriquecer-se-ão comprando os ativos da Europa arruinada pelo desligamento feito com a Rússia. A UE terá tempos muitos difíceis, pode não sobreviver à confusão. E será ainda mais grave para a Ucrânia atual – definitivamente não sobreviverá. O “material dispensável” que a Ucrânia atualmente constitui para o ocidente inevitavelmente acabará. A Rússia também ganhará dinheiro com a restauração e desenvolvimento da nova Ucrânia. A Ucrânia como parte da Rússia é a única saída para os ucranianos a fim de não ficarem desamparados.
Ver também:
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Comprendre les dilemmes de l’économie russe aujourd’hui, de Jacques Sapir