Daniel Vaz de Carvalho
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Disse o Papa Francisco que a III Guerra Mundial já tinha começado “aos bocadinhos”. É uma correta abordagem da situação atual. A questão que se coloca é: quando começou? Para o “apagão” histórico em vigor, começou em 24 de fevereiro de 2022. Porém, se a memória não for perdida podemos localizar este início em 16 de janeiro de 2014 ou talvez mesmo em junho de 1991, com o início do desmembramento da Jugoslávia. O que se passou depois culminou na reunião da OTAN no final de junho em que a Rússia foi classificada como a maior e mais direta ameaça à segurança dos países da OTAN e as “as ambições e políticas coercivas da China desafiam os nossos interesses, segurança e valores”.
Quando uma aliança militar se exprime desta forma o que se há-de esperar? Talvez preparar-nos para o pior e esperar que não seja tão mau. É difícil imaginar o que se seguirá, mas olhando para o passado, vimos o que a “drôle de guerre” do início de 1940 se tornou até 1945.
Mas há outra reflexão a fazer. Os grandes mestres do marxismo, mesmo nos piores momentos não deixaram de perspetivar a solução prática das contradições com que se deparavam, apoiados no aprofundamento teórico. Para além de Marx e Lenine, seguiram está via Lukaks, Gramsci e tantos outros. Sem esquecer Álvaro Cunhal e o seu Rumo à Vitória, numa fase em que o fascismo em Portugal e o imperialismo pelo mundo pareciam imparáveis. E isto era fundamental, pois como oportunamente nos lembra o prof. Luo Siyi: “apenas aqueles com informações de alto nível podem julgar com precisão todas as etapas específicas e que políticas necessárias precisam ser adotadas”.
Ainda há pouco tempo, tudo parecia correr bem para o imperialismo. As crises aproveitadas como ventos favoráveis para os desígnios oligárquicos. Fossem financeiras, sanitárias, bélicas, os seus analistas lá estavam para justificar o primado dos interesses privados transnacionais e a oligarquia financeira, apresentados como liberdade face à “o caminho da servidão” (F. Hayek) que o poder do Estado constituiria.
A unipolaridade estrutura-se no “Consenso de Washington” (a globalização neoliberal), apoiado por sete esquadras navais e 13 porta-aviões, mais de oitocentas bases militares dos EUA no estrangeiro, um domínio quase total da comunicação social, redes de acólitos, propagandistas e mercenários aliciados pelo mundo inteiro. Mas todo este poder é como um colosso com pés de barro: está em permanente contradição com a realidade.
O neoliberalismo como teoria económica assemelha-se àquele navio de guerra sueco, o Vasa, a mais imponente construção naval do século XVII, que na primeira viagem, logo ao sair do porto, recebendo algumas rajadas de vento, afundou-se e aí permaneceu até ser recuperado e transformado em museu – talvez à estupidez da vaidade humana.
O neoliberalismo fundamenta-se na procura do lucro máximo, sendo o capital financeiro o orientador da gestão económica e social. Uma economia que sobrepondo os interesses privados aos coletivos, fracassou totalmente na resolução dos problemas com que deparava: desde os anos 1990 as economias capitalistas entraram em estagnação e as crises sucederam-se: nos anos 1990, em 2001, 2005, 2007, 2011, 2021, persistindo, sem nunca serem resolvidas.
Mesmo a inflação, cujo controlo foi considerado objetivo fundamental dos Bancos Centrais do sistema, encontra-se descontrolada. Como de costume, as medidas tomadas limitam-se a piorar as conjunturas e a propagandear desculpas. A funcionalidade do neoliberalismo, está para a economia, como aquele navio para a navegação…
Um dos grandes problemas que o neoliberalismo coloca, consiste na difusão quase absoluta no meio universitário desde há mais de três décadas: seduz pela “elegância” das suas deduções matemáticas, mas não passa disto, os resultados práticos são desastrosos: sucessivas crises, crescentes e obscenas desigualdades, a economia e os povos agrilhoados a dívidas impagáveis. Por exemplo, em termos líquidos os juros recebidos pelos bancos dos EUA atingem num ano mais de 510 mil milhões de dólares (usdebtclock.org). No papel tudo parece perfeitamente convincente e racional oferecendo certezas, gerando arrogância perante a dúvida e desprezo pela degradação das condições de vida das populações.
O dito ocidente, vive enredado nos seus mitos, reduzindo conceitos de eficiência a critérios financeiros, postos em prática como grandes descobertas em gestão. Os seus próceres são acarinhados pelo grande capital, premiados e promovidos a lugares cimeiros. As suas contas bancárias acompanharam está tonalidade triunfal, enquanto os procedimentos neoliberais vão destruindo a economia.
O mito dos “mercados” correspondeu à financeirização da economia, dominada pela especulação e usura, apoiada em paraísos fiscais, percorrida pela corrupção e pela fraude, tendo como suporte os bancos centrais. Os “mercados” dominados pelas transnacionais e cartéis, serviram e servem de arma de agressão social e opressão contra os povos, concretizada na chantagem dos juros e na austeridade – sobre os salários, causadores da inflação… preexistente. Vive-se no mundo das fábulas.
Outro mito neoliberal é o do “equilíbrio competitivo”, talvez a ideia mais estúpida e perversa alguma vez formulada em economia, que como disse Keynes (para não ir mais longe) não tem qualquer validade real. Em dois séculos de capitalismo industrial os pressupostos do chamado “equilíbrio competitivo” nunca existiram.
Alinhados na globalização neoliberal, os países ficaram, portanto, submetidos a um policiamento supranacional – a unipolaridade – que julga e aplica sanções, aos que fogem ou procuram fugir ao “Consenso” da autoproclamada “comunidade internacional”. Para ser mantido o “mercado livre”, o governo não pode desempenhar funções de regulação e planeamento econômico nem organizar a economia para ter como prioridade as necessidades sociais. Se o fizer pode ser penalizado como “totalitário”. Para ser “democracia” tem de sobrepor os interesses do capital monopolista e transnacional aos dos trabalhadores.
A clique neoliberal faz passar, com o álibi da “competitividade”, a imagem de um patronato de almas patrióticas, “criadoras de emprego” acima de qualquer suspeita, apesar do planeamento fiscal e dos paraísos fiscais, face a um proletariado tendencialmente golpista, sorna, que deve ser tratado como tal, segundo o lema: todos são culpados, até prova em contrário, sujeitos à ditadura empresarial.
Na economia, a variável independente é o investimento, a variável dependente o salário. Depois de Marx, isto mesmo reconheceu Keynes. O neoliberalismo inverteu os dados: só reconhece uma variável econômica: o salário. O restante é deixado ao sabor dos interesses do capital, travestidos de “livre iniciativa privada” e “mercado”.
A desindustrialização, sintoma de bloqueio do progresso, foi outra resultante destes procedimentos, apresentados como êxito pelo habitual pensamento oco dos propagandistas: era a “sociedade do conhecimento” e das “tecnologias digitais”.
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Perante esta situação, independentemente do resultado dos atuais conflitos é fundamental analisar as alternativas para a resolução dos problemas que conduziram à atual situação de crises bélicas, econômicas e sociais. Os partidos da social-democracia/socialismo reformista subverteram as noções de capitalismo dependente e relações imperialistas, assumindo o neoliberalismo, como solidariedade “europeia” e “atlantismo”. Uma economia feita em nome de 1% com 99% acorrentados a dívidas públicas e privadas.
Nisto consiste a democracia que o ocidente admite. Mas democracia seguramente que não é isto, não é o que Washington e Bruxelas definem e praticam. Diz Bernie Sanders: nos EUA enquanto a maioria lutava para pagar as necessidades básicas, os 700 ultramilionários ficaram durante a pandemia 2 milhões de milhões mais ricos e os quadros das administrações com rendimentos 350 vezes superiores aos trabalhador médio. Mais de 600 000 cidadãos são sem abrigo, mas gente como Elon Musk, Jeff Bezos e outros compram iates de 500 milhões de dólares e vivem em mansões com 25 casas de banho.
No vocabulário orwelliano de hoje, “democracia” significa qualquer país que apoie a política externa dos EUA. Bolívia e Honduras tornaram-se “democracias” desde seus golpes, juntamente com o Brasil. O Chile, sob Pinochet era uma democracia de livre mercado. O mesmo acontecia com o Irã sob o xá e a Rússia sob Yeltsin – mas não desde que elegeu presidente Vladimir Putin, tal como a China sob o presidente Xi.
Uma alternativa, tem de terminar com a grande farra da especulação, do endividamento, das privatizações e da flexibilidade laboral, que, diziam, trariam crescimento e emprego. Por tudo isto, ser de esquerda, começa por não permitir o domínio do capital sobre a sociedade e afirmar a soberania democrática numa sociedade não capitalista. Um governo que controle os interesses financeiros, agindo em nome dos 99% e evite que os lucros sejam pagos na forma de juros. Juros não são uma despesa comercial, são uma despesa parasita predatória, não permitindo que um grupo social seja autorizado a converter o interesse geral no seu próprio interesse existencial. E isto é socialismo, diz Michael Hudson.
Na atualidade enquanto os EUA e a UE continuam agarrados ao neoliberalismo, uma alternativa estrutura-se, a partir das experiências da China e da Rússia, alargando-se a um maior número de países, dividindo o mundo em dois campos, sinal de que a hegemonia dos EUA está a terminar.
Esta hegemonia, significa que os Estados que se afastem da consigna neoliberal e da sua globalização, podem ser sancionados política e economicamente como “totalitários”. A tentativa dos EUA arvorarem um poder comparável ao do papado medieval com suas excomunhões e interdições, perde, tal como no passado, credibilidade e capacidade interventiva. Isto mesmo, está patente nas sanções contra a Rússia, que a grande maioria dos países se recusou a seguir.
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O sistema de instituições, que tinham impulsionado o ciclo de acumulação norte-americano, não garante mais o desenvolvimento progressivo das forças produtivas. Um novo ciclo de acumulação – euroasiático – implicando uma mudança do centro institucional, produtivo, financeiro e tecnológico do desenvolvimento econômico mundial está em curso, sendo atualmente a experiência chinesa o centro da criação de uma nova ordem mundial (Sergei Glazyev, p.129). É, portanto, fundamental a compreensão dos seus princípios.
A Rússia, tem em curso a estruturação de um sistema econômico que Putin explicitou no seu discurso de 17 de junho, baseado em seis princípios:
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Primeiro princípio: abertura ao exterior, estabelecendo cooperação económica e projetos conjuntos, em parcerias iguais com Estados soberanos, contribuindo para o desenvolvimento global.
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Segundo princípio: confiança na liberdade empresarial. Toda iniciativa privada destinada a beneficiar a Rússia deve receber o máximo de apoio e espaço para ser posta a operar.
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Terceiro princípio: uma política macroeconómica responsável e equilibrada, não seguindo o ocidente, não replicando a amarga experiência de desencadear uma espiral inflacionaria e perturbar as finanças.
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Quarto princípio: justiça social sustentando o desenvolvimento.
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Quinto princípio: priorizar o desenvolvimento das infraestruturas subjacentes à política económica.
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Sexto princípio: alcançar genuína soberania tecnológica, não dependendo de instituições estrangeiras em componentes criticamente importantes.