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domingo, 3 novembro, 2024

O fim do mundo unipolar e a alternativa multipolar

Daniel Vaz de Carvalho
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Disse o Papa Francisco que a III Guerra Mundial já tinha começado “aos bocadinhos”. É uma correta abordagem da situação atual. A questão que se coloca é: quando começou? Para o “apagão” histórico em vigor, começou em 24 de fevereiro de 2022. Porém, se a memória não for perdida podemos localizar este início em 16 de janeiro de 2014 ou talvez mesmo em junho de 1991, com o início do desmembramento da Jugoslávia. O que se passou depois culminou na reunião da OTAN no final de junho em que a Rússia foi classificada como a maior e mais direta ameaça à segurança dos países da OTAN e as “as ambições e políticas coercivas da China desafiam os nossos interesses, segurança e valores”.
Quando uma aliança militar se exprime desta forma o que se há-de esperar? Talvez preparar-nos para o pior e esperar que não seja tão mau. É difícil imaginar o que se seguirá, mas olhando para o passado, vimos o que a “drôle de guerre” do início de 1940 se tornou até 1945.
Mas há outra reflexão a fazer. Os grandes mestres do marxismo, mesmo nos piores momentos não deixaram de perspetivar a solução prática das contradições com que se deparavam, apoiados no aprofundamento teórico. Para além de Marx e Lenine, seguiram está via Lukaks, Gramsci e tantos outros. Sem esquecer Álvaro Cunhal e o seu Rumo à Vitória, numa fase em que o fascismo em Portugal e o imperialismo pelo mundo pareciam imparáveis. E isto era fundamental, pois como oportunamente nos lembra o prof. Luo Siyi:   “apenas aqueles com informações de alto nível podem julgar com precisão todas as etapas específicas e que políticas necessárias precisam ser adotadas”.
Ainda há pouco tempo, tudo parecia correr bem para o imperialismo. As crises aproveitadas como ventos favoráveis para os desígnios oligárquicos. Fossem financeiras, sanitárias, bélicas, os seus analistas lá estavam para justificar o primado dos interesses privados transnacionais e a oligarquia financeira, apresentados como liberdade face à “o caminho da servidão” (F. Hayek) que o poder do Estado constituiria.
A unipolaridade estrutura-se no “Consenso de Washington” (a globalização neoliberal), apoiado por sete esquadras navais e 13 porta-aviões, mais de oitocentas bases militares dos EUA no estrangeiro, um domínio quase total da comunicação social, redes de acólitos, propagandistas e mercenários aliciados pelo mundo inteiro. Mas todo este poder é como um colosso com pés de barro: está em permanente contradição com a realidade.
O neoliberalismo como teoria económica assemelha-se àquele navio de guerra sueco, o Vasa, a mais imponente construção naval do século XVII, que na primeira viagem, logo ao sair do porto, recebendo algumas rajadas de vento, afundou-se e aí permaneceu até ser recuperado e transformado em museu – talvez à estupidez da vaidade humana.
O neoliberalismo fundamenta-se na procura do lucro máximo, sendo o capital financeiro o orientador da gestão económica e social. Uma economia que sobrepondo os interesses privados aos coletivos, fracassou totalmente na resolução dos problemas com que deparava: desde os anos 1990 as economias capitalistas entraram em estagnação e as crises sucederam-se: nos anos 1990, em 2001, 2005, 2007, 2011, 2021, persistindo, sem nunca serem resolvidas.
Mesmo a inflação, cujo controlo foi considerado objetivo fundamental dos Bancos Centrais do sistema, encontra-se descontrolada. Como de costume, as medidas tomadas limitam-se a piorar as conjunturas e a propagandear desculpas. A funcionalidade do neoliberalismo, está para a economia, como aquele navio para a navegação…
Um dos grandes problemas que o neoliberalismo coloca, consiste na difusão quase absoluta no meio universitário desde há mais de três décadas: seduz pela “elegância” das suas deduções matemáticas, mas não passa disto, os resultados práticos são desastrosos: sucessivas crises, crescentes e obscenas desigualdades, a economia e os povos agrilhoados a dívidas impagáveis. Por exemplo, em termos líquidos os juros recebidos pelos bancos dos EUA atingem num ano mais de 510 mil milhões de dólares (usdebtclock.org). No papel tudo parece perfeitamente convincente e racional oferecendo certezas, gerando arrogância perante a dúvida e desprezo pela degradação das condições de vida das populações.
O dito ocidente, vive enredado nos seus mitos, reduzindo conceitos de eficiência a critérios financeiros, postos em prática como grandes descobertas em gestão. Os seus próceres são acarinhados pelo grande capital, premiados e promovidos a lugares cimeiros. As suas contas bancárias acompanharam está tonalidade triunfal, enquanto os procedimentos neoliberais vão destruindo a economia.
O mito dos “mercados” correspondeu à financeirização da economia, dominada pela especulação e usura, apoiada em paraísos fiscais, percorrida pela corrupção e pela fraude, tendo como suporte os bancos centrais. Os “mercados” dominados pelas transnacionais e cartéis, serviram e servem de arma de agressão social e opressão contra os povos, concretizada na chantagem dos juros e na austeridade – sobre os salários, causadores da inflação… preexistente. Vive-se no mundo das fábulas.
Outro mito neoliberal é o do “equilíbrio competitivo”, talvez a ideia mais estúpida e perversa alguma vez formulada em economia, que como disse Keynes (para não ir mais longe) não tem qualquer validade real. Em dois séculos de capitalismo industrial os pressupostos do chamado “equilíbrio competitivo” nunca existiram.
Alinhados na globalização neoliberal, os países ficaram, portanto, submetidos a um policiamento supranacional – a unipolaridade – que julga e aplica sanções, aos que fogem ou procuram fugir ao “Consenso” da autoproclamada “comunidade internacional”. Para ser mantido o “mercado livre”, o governo não pode desempenhar funções de regulação e planeamento econômico nem organizar a economia para ter como prioridade as necessidades sociais. Se o fizer pode ser penalizado como “totalitário”. Para ser “democracia” tem de sobrepor os interesses do capital monopolista e transnacional aos dos trabalhadores.
A clique neoliberal faz passar, com o álibi da “competitividade”, a imagem de um patronato de almas patrióticas, “criadoras de emprego” acima de qualquer suspeita, apesar do planeamento fiscal e dos paraísos fiscais, face a um proletariado tendencialmente golpista, sorna, que deve ser tratado como tal, segundo o lema: todos são culpados, até prova em contrário, sujeitos à ditadura empresarial.
Na economia, a variável independente é o investimento, a variável dependente o salário. Depois de Marx, isto mesmo reconheceu Keynes. O neoliberalismo inverteu os dados: só reconhece uma variável econômica: o salário. O restante é deixado ao sabor dos interesses do capital, travestidos de “livre iniciativa privada” e “mercado”.
A desindustrialização, sintoma de bloqueio do progresso, foi outra resultante destes procedimentos, apresentados como êxito pelo habitual pensamento oco dos propagandistas: era a “sociedade do conhecimento” e das “tecnologias digitais”.
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Perante esta situação, independentemente do resultado dos atuais conflitos é fundamental analisar as alternativas para a resolução dos problemas que conduziram à atual situação de crises bélicas, econômicas e sociais. Os partidos da social-democracia/socialismo reformista subverteram as noções de capitalismo dependente e relações imperialistas, assumindo o neoliberalismo, como solidariedade “europeia” e “atlantismo”. Uma economia feita em nome de 1% com 99% acorrentados a dívidas públicas e privadas.
Nisto consiste a democracia que o ocidente admite. Mas democracia seguramente que não é isto, não é o que Washington e Bruxelas definem e praticam. Diz Bernie Sanders:  nos EUA enquanto a maioria lutava para pagar as necessidades básicas, os 700 ultramilionários ficaram durante a pandemia 2 milhões de milhões mais ricos e os quadros das administrações com rendimentos 350 vezes superiores aos trabalhador médio. Mais de 600 000 cidadãos são sem abrigo, mas gente como Elon Musk, Jeff Bezos e outros compram iates de 500 milhões de dólares e vivem em mansões com 25 casas de banho.
No vocabulário orwelliano de hoje, “democracia” significa qualquer país que apoie a política externa dos EUA. Bolívia e Honduras tornaram-se “democracias” desde seus golpes, juntamente com o Brasil. O Chile, sob Pinochet era uma democracia de livre mercado. O mesmo acontecia com o Irã sob o xá e a Rússia sob Yeltsin – mas não desde que elegeu presidente Vladimir Putin, tal como a China sob o presidente Xi.
Uma alternativa, tem de terminar com a grande farra da especulação, do endividamento, das privatizações e da flexibilidade laboral, que, diziam, trariam crescimento e emprego. Por tudo isto, ser de esquerda, começa por não permitir o domínio do capital sobre a sociedade e afirmar a soberania democrática numa sociedade não capitalista. Um governo que controle os interesses financeiros, agindo em nome dos 99% e evite que os lucros sejam pagos na forma de juros. Juros não são uma despesa comercial, são uma despesa parasita predatória, não permitindo que um grupo social seja autorizado a converter o interesse geral no seu próprio interesse existencial. E isto é socialismo, diz Michael Hudson.
Na atualidade enquanto os EUA e a UE continuam agarrados ao neoliberalismo, uma alternativa estrutura-se, a partir das experiências da China e da Rússia, alargando-se a um maior número de países, dividindo o mundo em dois campos, sinal de que a hegemonia dos EUA está a terminar.
Esta hegemonia, significa que os Estados que se afastem da consigna neoliberal e da sua globalização, podem ser sancionados política e economicamente como “totalitários”. A tentativa dos EUA arvorarem um poder comparável ao do papado medieval com suas excomunhões e interdições, perde, tal como no passado, credibilidade e capacidade interventiva. Isto mesmo, está patente nas sanções contra a Rússia, que a grande maioria dos países se recusou a seguir.
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O sistema de instituições, que tinham impulsionado o ciclo de acumulação norte-americano, não garante mais o desenvolvimento progressivo das forças produtivas. Um novo ciclo de acumulação – euroasiático – implicando uma mudança do centro institucional, produtivo, financeiro e tecnológico do desenvolvimento econômico mundial está em curso, sendo atualmente a experiência chinesa o centro da criação de uma nova ordem mundial (Sergei Glazyev, p.129). É, portanto, fundamental a compreensão dos seus princípios.
A Rússia, tem em curso a estruturação de um sistema econômico que Putin explicitou no seu discurso de 17 de junho, baseado em seis princípios:
  • Primeiro princípio:  abertura ao exterior, estabelecendo cooperação económica e projetos conjuntos, em parcerias iguais com Estados soberanos, contribuindo para o desenvolvimento global.
  • Segundo princípio:  confiança na liberdade empresarial. Toda iniciativa privada destinada a beneficiar a Rússia deve receber o máximo de apoio e espaço para ser posta a operar.
  • Terceiro princípio:  uma política macroeconómica responsável e equilibrada, não seguindo o ocidente, não replicando a amarga experiência de desencadear uma espiral inflacionaria e perturbar as finanças.
  • Quarto princípio:  justiça social sustentando o desenvolvimento.
  • Quinto princípio:  priorizar o desenvolvimento das infraestruturas subjacentes à política económica.
  • Sexto princípio:  alcançar genuína soberania tecnológica, não dependendo de instituições estrangeiras em componentes criticamente importantes.
São também apontados aspetos críticos destas orientações, para o desenvolvimento de agrupamentos de indústrias (clusters) designadamente: financiamento, propiciando crédito até dez anos com taxa de juros bonificada; baixa fiscalidade; apoio à produção numa primeira fase, subsidiando as compras dos produtos destas empresas. “Não é questão fácil, mas acho que subsídios podem vir a ser necessários para garantir o mercado.” Um quarto aspeto diz respeito à administração pública simplificada, incluindo redução de auditorias, fiscalizações e inspeções. Um quinto aspeto, “provavelmente o mais importante dos aspetos críticos”, criar mecanismos que garantam a procura a longo prazo para produtos inovadores prestes a entrar no mercado.
Será bom relembrar que as horrorosas condições de vida dos russos no período da democracia “made in USA” dos tempos de Yeltsin, foram revertidas pelo “totalitarismo” posterior. Quando Putin chegou ao poder em 2000, cerca de 75% dos russos viviam na pobreza. Muitos sobreviviam com as poupanças da era soviética. “ Em apenas alguns anos, o “cleptocrata” Putin mobilizou riqueza suficiente para reverter essas catástrofes humanas e colocar milhares de milhões de dólares em fundos para protegeram a nação em tempos difíceis que viessem a ser encontrados”.
Sergei Glazyev, tem criticado o Banco Central Russo, que apesar de ser uma instituição do Estado, não governamental, seguiu, uma política incompetente de orientações neoliberais. Aparentemente, as coisas terão sido alteradas. As opções que ele defende são claramente as da China. Para Sergei Glazyev, a nova ordem económica mundial estará inspirada na ideologia socialista. O Banco Central configura-se como uma entidade reguladora do Estado e deve realizar as tarefas necessárias ao desenvolvimento da economia. Para isso, é necessário envolver o Banco Central no planeamento estratégico. “Se tivéssemos realizado uma política monetária competente e de acordo com as exigências da nova ordem económica, teríamos um desenvolvimento da ordem dos 10% como a China”.
“A China constrói pacientemente o seu socialismo de mercado, passo a passo, melhorando constantemente o sistema de administração estatal, selecionando apenas as instituições que trabalham para o desenvolvimento da economia e o bem-estar da sociedade. Ao mesmo tempo que preservam as “conquistas do socialismo”, os comunistas chineses incorporam no sistema de administração pública reguladores das relações de mercado, complementando as formas de propriedade pública com as privadas e coletivas, para que a economia seja mais eficiente.” (Sergei Glazyev)
Incontornável nestas questões, diz Michael Hudson: A China trata o dinheiro e o crédito como uma utilidade pública, não como um monopólio privado. O banco central chinês não cria dinheiro para aumentar os preços do mercado de ações ou os preços dos títulos. Não cria dinheiro para sustentar uma classe financeira, porque o Partido Comunista da China não quer que exista uma classe financeira; quer que exista uma classe industrial; quer que exista uma força de trabalho industrial, mas não uma classe rentista.
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A economia de um mundo multipolar, tem de ser uma economia baseada na soberania e no controlo estatal. Aparece como uma síntese do keynesianismo – como capitalismo monopolista de Estado – e do socialismo. É uma convergência que tem de ser entendida sem os dogmatismos ao gosto dos teóricos puritanos prontos a criticar os que “sujam as mãos” na realidade, mas que nunca entenderam – nem querem que os outros entendam – que o socialismo é um processo. Assim o viram os mestres como Engels: “o movimento não é apenas mudança de lugar, mas mudança de qualidade” ou Lenine: “entre o capitalismo monopolista de Estado e o socialismo há apenas um degrau”. Que é a participação do poder popular.
A China e a Rússia oferecem um “novo modelo” para todos os países, um modelo de cooperação política e económica, que recusa os ditames da “democracia” tal como definida pelo ocidente: uma “democracia” dominada pelas oligarquias, pelo endividamento e guerras constantes, incapaz de estabelecer consistentes perspectivas de progresso e segurança para a generalidade dos cidadãos.
O mundo unipolar e neoliberal está condenado: desde há mais de uma década que a sua capacidade de reprodução alargada atingiu o limite. As tentativas de determinar as políticas e o desenvolvimento natural de países e povos fracassam face à alternativa representada pela China e pela Rússia. Na África. Ásia, América Latina países aproveitam as novas possibilidades de relações políticas e económicas internacionais participando em projetos de integração e desenvolvimento, de que a iniciativa “Belt and Road” da China é um exemplo, tal como a Organização de Cooperação de Shangai ou a União económica Euroasiática. Neste contexto, são dados passos importantes para a “desdolarização” da economia mundial, salientando-se o fato do Banco Central da Índia ter aprovado acordos de comércio internacional em rupias.
No confronto entre estes sistemas diametralmente opostos, chegámos a uma nova guerra fria que degenera na 3ª Guerra Mundial “aos bocadinhos”.
A conquista da soberania nacional num mundo multipolar anti-imperialista, abre aos povos a possibilidade de uma alternativa ao neoliberalismo, decididamente antimonopolista, antioligárquica e contra a servidão pela dívida, ou seja: um país sem monopólios privados, com regulação económica estatal em vez de um mercado livre no qual florescem oligopólios. Em que o crédito, gerido pelo poder público, é usado para desenvolver o sistema produtivo e as necessidades sociais, não para a servidão dos povos à oligarquia financeira e às transnacionais.
Ver também:
·  The Transformation of Russia: Not Only Necessary, but Also Possible!, Mikhail Delyagin
·  The Future of Russia Is Socialism, Yury Voronin
Este artigo encontra-se em resistir.info

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