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sexta-feira, 26 julho, 2024

O enorme perigo associado à privatização de bancos

Campanha para restaurar o Glass Steagall Act.

Prabhat Patnaik [*]

Há objeções fundamentais ao plano do governo para privatizar pelo menos alguns dos bancos do sector público. Elas centram-se em torno do fato de que um tal movimento mudaria o padrão de posicionamento do crédito, afastando-o de atividades produtivas e em direção à especulação, afastando-o da agricultura camponesa e em direção ao big business (com perigosas implicações para a viabilidade camponesa, a segurança alimentar e o emprego) e afastando-o dos destinos internos em favor dos globais. Estas objeções são bem conhecidas e têm sido muito discutidas. A sua pertinência tem sido sublinhada pelo fato de que os bancos do sector público indiano ficaram completamente imunes durante a “crise dos empréstimos sub-prime” de 2008. Mas o governo, preocupado mais em agradar o big business interno e estrangeiro do que com o bem-estar da nação, ignora-os como era de esperar. Entretanto, o meu objetivo aqui não é reiterar estas objeções; é apontar um outro grave perigo da privatização que tem sido menos discutido e que o país não se pode permitir ignorar.

Durante o período dirigista, os empréstimos bancários eram utilizados primariamente para cumprir necessidades de crédito a curto prazo, tais como financiar a manutenção de inventários em estabelecimentos comerciais e industriais, ao passo que as necessidades financeiras a longo prazo, para a formação de capital fixo, eram satisfeitas através de um conjunto de instituições financeiras especializadas que haviam sido criadas apenas para esta finalidade. Estas instituições obtinham os seus fundos de fontes governamentais, tais como os lucros do Banco de Reserva da Índia, e concediam empréstimos a taxas de juro baixas, inferiores às taxas que os bancos cobravam, e muitas vezes mesmo a taxas de juro reais negativas (ou seja, as taxas nominais que cobravam eram inferiores à taxa de inflação) a fim de encorajar o investimento.

No entanto, com a “liberalização” todo este acordo mudou. As anteriores instituições financeiras especializadas desapareceram na sua forma antiga, algumas como o IDBI convertendo-se em bancos. As necessidades financeiras a longo prazo das unidades deviam agora ser satisfeitas através do mercado de capitais, de onde também as instituições financeiras existentes para conceder empréstimos a longo prazo deviam igualmente angariar os seus fundos. Mas se um projeto de investimento não fosse suficientemente rentável, ou fosse demasiado arriscado, então os capitalistas, ao invés de se aproximarem do mercado, começavam a aproximar-se dos bancos do sector público, mesmo para empréstimos a longo prazo. E os bancos acabaram por conceder grandes empréstimos, especialmente para projetos de infraestruturas, com o governo a pressioná-los para assim fazer. Em consequência, os bancos do setor público, precisamente porque o governo os pode obrigar a conceder os empréstimos que deseja, desenvolveram balanços que pressagiam perigo.

Os bancos obtêm os seus recursos dos depósitos do público, os quais podem ser retirados pelo público a qualquer momento. Se uma parte significativa destes recursos for usada para conceder empréstimos a longo prazo para investimento, isso os expõem a potenciais crises de falta de liquidez. Se muitos depositantes decidirem subitamente retirar os seus depósitos, então o banco entra em colapso. E mesmo que apenas uns poucos depositantes queiram retirá-los e circule o boato de que o banco pode enfrentar iliquidez, então há uma corrida ao banco que o leva ao colapso. Para impedir tal possibilidade, os bancos cujos passivos são a curto prazo, geralmente também possuem ativos que são a curto prazo. Uma vez que ativos a curto prazo, por definição, podem ser liquidados sem envolver muita perda de valor, o perigo colocado a um banco por uma súbita retirada de depósitos é assim minimizado. Mas se os ativos forem a longo prazo, então sua venda súbita envolve uma perda substancial, a qual portanto torna uma retirada súbita de depósitos muito mais difícil de negociar.

Os bancos do sector público não deram apenas empréstimos a longo prazo para a aquisição de ativos. Muitos dos empréstimos que deram são para projetos de infraestrutura, os quais têm um longo período de gestação, em que tempo e derrapagens de custos são comuns e onde lucros aparecem, se algum, só após um longo período de tempo. O facto de uma boa parte de tais empréstimos poder ser contada entre os “ativos não rentáveis” (“non-performing assets”, NPA) dos bancos não deve constituir uma surpresa. Mas mesmo aquela parte que não é contabilizada oficialmente como NPA, não obstante, insere-se na categoria de “ativos em situação de stress”. Assim, os bancos do sector público foram pressionados pelo governo, não só a conceder empréstimos a longo prazo, mas também a conceder “empréstimos em situação de stress”. Em suma, eles estão sentados em cima de um vulcão que pode entrar em erupção a qualquer momento.

A razão porque ainda não entraram em erupção e continuam a permanecer dormentes é porque estes bancos são de propriedade do governo. O público cujos depósitos foram utilizados para tais financiamentos não está em pânico:   ele tem a confiança de que se os bancos enfrentarem uma crise o governo que os possui virá necessariamente em seu resgate. E esta confiança é precisamente o que impede os bancos de enfrentarem uma crise.

Por toda a parte do mundo as crises do sistema financeiro têm-se levantado quando instituições financeiras de propriedade privada desenvolveram ao longo do tempo um desajustamento entre ativo e passivo. A crise financeira da Ásia Oriental no final do século passado proporciona um exemplo clássico. Veja-se o caso dos bancos sul-coreanos. Eles haviam atraído depósitos em divisa estrangeira e utilizaram as receitas para fazer empréstimos a nível interno para projetos de investimento a longo prazo. Isto significava um duplo desfasamento entre os seus ativos e passivos: em primeiro lugar, eles estavam “a contrair empréstimos curtos para empréstimos longos”, ou seja, a utilizar recursos obtidos através de depósitos bancários para financiar projetos de investimento; e, em segundo lugar, estavam a contrair empréstimos em moeda estrangeira para financiar projetos que não eram, eles próprios, angariadores de divisas. Inevitavelmente, a chegou crise e, quando chegou, foi particularmente grave.

Mesmo a crise financeira nos Estados Unidos em 2008 foi um reflexo de tal desajustamento. Durante a Grande Depressão a administração Roosevelt aprovou o Glass-Steagall Act em 1933 que separava estritamente a banca comercial da banca de investimento. Bancos comerciais, sendo financiados por depósitos, estavam limitados a dar empréstimos a curto prazo, ao passo que bancos de investimento, não sendo financiados por depósitos, podiam envolver-se na concessão de empréstimos para atividades bolsistas. Esta lei foi em resposta ao facto de que a Depressão vira uma corrida aos bancos pois eles aceitavam depósitos mas usaram seus recursos na bolsa, uma corrida que só foi travada através de um esforço considerável por parte do governo dos EUA, incluindo as famosas transmissões radiais “fire-side chat” de Roosevelt. Contudo, a Glass-Steagall foi revogada em 1999; e isso criou as condições nas quais o sistema financeiro mais uma vez enfrentou uma grave crise. Sem dúvida, não foi o único fator por trás da crise; houve uma grave subestimação dos riscos de crédito em todo o espectro, razão pela qual um banco de investimento como o Lehmann Brothers se afundou. Mas dada está subestimação dos riscos, o fato de bancos comerciais também terem sido expostos à crise financeira foi por terem concedido empréstimos contra ativos que anteriormente, ou seja, durante o período dirigista, não haviam sido parte do seu negócio habitual.

Na Índia, bancos do sector público também foram expostos a riscos sem precedentes por causa de imposições governamentais. Eles até agora foram poupados devido à confiança dos depositantes no sector público. Se forem privatizados, então o vulcão sobre o qual se sentam entrará em erupção e os depositantes serão enormemente e adversamente afetados. Isto não afetará apenas os depositantes; terá um grave e danoso impacto sobre a economia indiana.

Pode-se pensar que os depositantes manterão a crença, mesmo no caso de privatização, de que o governo virá em socorro do banco privatizado tal como o teria feito se permanecesse no sector público; e que esta crença impedirá qualquer crise que afete os bancos. Mas tal crença tem muito pouca justificação: a espécie de pressão política que pode ser aplicada ao governo se ele for o proprietário direto do banco estará ausente se este for de propriedade privada.

Em suma, dado o desfasamento ativo-passivo dos bancos do sector público que tem sido imposto sobre eles pelo governo, o seu lavar de mãos deles pela sua privatização será um ato de irresponsabilidade absoluta. Não só revelará aos depositantes comuns do país a possibilidade de grave perda financeira como também eliminará por um longo tempo a confiança do público no sistema bancário, provocando uma mutação das suas preferências de ativos rumo ao entesouramento de divisas e afastamento de depósitos bancários. Isto seria um movimento retrógrado que prejudicaria por longo tempo as perspectivas de desenvolvimento.

 

18/setembro/2022

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2022/0918_pd/huge-danger-associated-privatising-banks . Tradução de JF.

Este artigo encontra-se em resistir.info

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