por Rémy Herrera [*]
e Zhiming Long [**]
Por que falar de enigma?
O êxito manifesto da economia chinesa, ilustrado especialmente por uma taxa de crescimento muito rápida do produto interno bruto (PIB) – de facto, a mais elevada do mundo em média ao longo das últimas três décadas –, mas também pelo papel de líder que hoje ela tende a ocupar no seio dos países do Sul, é muitas vezes comentado nos media e na literatura académica. Entretanto, um mistério continua a rodear este fenómeno, nomeadamente porque o conteúdo e por vezes a própria realidade dos debates entre economistas chineses – ainda que muito controversos e abrangendo o espectro político completo que vai do marxismo ao neoliberalismo – não são percebidos na sua justa medida pelos comentadores ocidentais. [1] Estes últimos estão com efeito constrangidos a apoiarem-se sobre dados estatísticos e fontes de informação geralmente elaboradas por instituições ocidentais (ou multilaterais, mas sempre dominadas pelas potência ocidentais), que traduzem visões externas à China. Este prisma centrado no ocidente, ideológico por natureza, é deformador – pelo menos tanto, há que reconhecer, quanto aquele com que são tratados os discursos oficiais das autoridades chinesas.
Além disso, também há dificuldades devido a incertezas transmitidas por certos termos utilizados acerca da China (como o de “emergência”), ou certas categorias ambíguas (como a dos “BRICS”), assim como à indeterminação – para não dizer confusão – que acompanha as tentativas de caracterização do sistema político-económico em curso neste país. Estas dificuldades, complexas como se vê, explicam que fora da China as opiniões sobre a evolução desta sociedade, por vezes muito categóricas, são frequentemente mal documentadas e pouco escoradas. À direita, o que é celebrado é o triunfo aparente de um capitalismo vigoroso em território chinês, mesmo que se considere aberrante sua combinação com a “ditadura comunista”. À esquerda – ou, digamos, sobretudo entre marxistas –, talvez mais do que em qualquer outro tema, o leque de desacordos a seu respeito está amplamente aberto, indo da franca desaprovação frente às gritantes desigualdades de riqueza que induz este dinamismo económico até à esperança finalmente reencontrada de uma nova super-potência capaz de se contrapor ao hegemonismo estado-unidense. O poderio crescente da China intriga, fascina, provocando aqui admiração, ali inquietação, mas para todos o crescimento da sua economia no fundo permanece um enigma.
É neste contexto singularmente nebuloso que no ocidente parece se ter estabelecido um consenso no seio das instituições da ideologia dominante quanto a certas “evidências” sobre a China. Uma das mais enraizadas é a ideia segundo a qual a China teria “emergido”, e seu crescimento económico “descolado”, após as “reformas” ditas de “abertura” do fim dos anos 1970, ou seja, de facto após a morte do presidente Mao Zedong em 1976. O presente artigo pretende por em causa este consenso e fornecer elementos de reflexão para desenredar o “enigma” deste crescimento chinês – sem pretender dissipar, longe disso, toda a complexidade.
Acumulação de capital, crescimento da produção e “emergência” de longo prazo
Uma das ideias mais difundidas sobre a China é que ela teria “emergido” recentemente. O conceito de “emergência” – tal como aquele de “BRICS”, forjado pelos think tanks das finanças estado-unidense – sugere que um “descolamento” seria encarável no quadro da mundialização, apesar dos disfuncionamentos do sistema mundial capitalista, no entanto desfavoráveis aos países do Sul. Entretanto, ao aceitar esta ideia de que a economia chinesa teria “emergido”, ou “descolado”, exactamente após – e somente após – o desaparecimento de Mao, adere-se, implicitamente, a uma das variantes da seguinte argumentação. Em primeiro lugar, a economia chinesa não teria realmente começado a se desenvolver senão graças à sua “reorientação” e sua “abertura” ao sistema mundial capitalista adoptada sob a influência do número um chinês, Deng Xiaoping, na sequência do 11º Congresso do Partido Comunista Chinês (PCC) em Dezembro de 1978 – e incidentalmente, algumas semanas mais tarde, do reconhecimento diplomático da República Popular pelos Estados Unidos, em Janeiro de 1979. Em segundo lugar: seria óbvio que a economia chinesa não teria feito outra coisa senão estagnar durante o período maoista do socialismo – como estagnaria de facto, pela sua natureza por assim dizer, toda economia socialista. E, terceira variante deste mesmo raciocínio, acrescenta-se o argumento segundo o qual a China se teria modernizado quase imediatamente depois (por magia?) de os seus altos dirigentes políticos terem decidido abandonar, se não a etiqueta de “comunismo”, pelo menos as instituições do socialismo, para orientá-las rumo a formas do sistema capitalista.
Ora, ao assim fazer, três realidades fundamentais ficam ao mesmo tempo ocultadas. A primeira, no entanto grandiosa, é a profundidade milenar da história. Pois se é incontestável que a China de facto “emergiu” na cena mundial, isto não foi há 40 anos, como repete o leitmotiv absurdo dos media dominantes, mas, enquanto civilização importante – e Estado-nação –, há… vários milhares de ano. O peso da China pôde atingir um terço do PIB mundial no começo do século XIX. [2] E é preciso manter consciência de que não foi senão graças à vitória da revolução maoista em Outubro de 1949 que foi possível por fim ao século de guerras havia dilacerado o país, continuamente, desde a agressão britânica da Guerra do Ópio em 1842 e dos assaltos lançados pelas potências ocidentais que haviam desmembrado este país. A segunda realidade deixada de lado é que quando na China o crescimento do PIB começou a ultrapassar regularmente a marca dos 10%, na década de 1980 (contra 3% registados nos Estados Unidos), o essencial das estruturas e instituições do socialismo ainda estavam em vigor. O terceiro facto a recordar aqui, muito frequentemente esquecido na literatura, é a rapidez relativamente forte da taxa de crescimento do PIB chinês antes da morte de Mao.
Este último ponto é suficientemente importante, e esquecido, para que nele insistamos por um instante. É verdade que o crescimento económico acelerou-se a partir dos anos 1980 – ao ponto de colocar a China, a partir desta época, e apesar do seu nível bastante fraco de rendimento per capita, longe dos outros países ditos “socialista” ou de “economia historicamente planificada” durante esta mesma década. Ainda seria preciso reconhecer que o crescimento do produto material líquido (ancestral do PIB) já havia sido muito elevado no decorrer dos dez anos que antecederam a decisão de “reformar” a economia para abri-la ao sistema mundial. [3]
Segundo os dados fornecidos pelo Banco Mundial, expressos em preços constantes (base 1980) e em médias decenais, a taxa de crescimento económico da China atingia 6,8% entre 1970 e 1979 – ou seja, mais do dobro daquela dos Estados Unidos neste período (a 3,2%, a preços constantes de 1980). [4] E se se examinam agora as séries oficiais de PIB publicadas pelo National Bureau of Statistics (NBA) da China nos seus China Statistical Yearbooks [5] , fonte de qualidade e fiável, desde a sua criação (em 1952) até os nossos dias (2015), expressos em preços constantes com base em 1952 e homogeneizados para levarem em conta rupturas estatísticas que assinalaram a transição da contabilidade do Material Product System (MPS, de tipo soviético) para o System of National Accounts (SNA, “moderno”) [6] , observamos que a taxa de crescimento do PIB chinês, que em média anual era de 8,3% entre 1952 e 2015, era, por sub-períodos, de 6,3% entre 1952 e 1978 – o que é forte – e de 9,9% de 1979 a 2015 – o que é muito forte. Mas se se puser entre parênteses todos os primeiros anos da República Popular que vão de 1952 a 1962 (ou seja, entre o cumprimento da unificação do território continental e o período muito perturbado da ruptura com a União Soviética), é uma taxa de crescimento anual médio do PIB chinês de 8,2% que se regista entre 1963 e 1978 – o que reflecte um crescimento muito rápido, considerando que este período compreende a Revolução Cultural.
Mas o que é realmente a acumulação do capital na China? Esta acumulação pode ser medida. Num artigo que os autores destas linhas publicaram recentemente na revista científica de referência nos EUA especializada sobre a China (a China Economic Review ), chegámos a construir várias séries temporais originais de stocks de capital físico no período longo (1952-2015) [7] – para utilizar esta nova base em outras investigações, mas também porque, no momento actual, os institutos chineses de estatísticas ainda não puseram à disposição do público dados oficiais de stocks de capital. [8] Nossas séries, calculadas pelo método do inventário permanente, podem ser consideradas de boa qualidade em relação àquelas que existem na literatura [9] , por várias razões: nossos stocks iniciais são estimados a partir de um procedimento de cálculo mais rigoroso do rácio capital- output do que as das outras bases; os fluxos de investimento são estritamente consistentes com o perímetro estatístico dos stocks; nossos esforços são concentrados na construção de índices de preços dos investimentos adaptados ao conteúdo exacto destes stocks; e as taxas de depreciação retidas são avaliadas por tipo de bens de capital a fim de deduzir uma taxa de depreciação total da estrutura de conjunto do capital.
Ora, se examinarmos atentamente nossa nova base de dados, constatamos que as taxas de crescimento médio do stock de capital que chamamos “produtivo” (compreendendo todos os equipamentos, máquinas, ferramentas, instalações industriais, mas não os edifícios residenciais nem o valor das suas terras) foram de facto muito próximas nos dois sub-períodos 1952-1978 e 1979-2015: 9,7% para a primeira e 10,9% para a segunda. E se retivermos no presente um stock de capital produtivo ampliado, incluindo igualmente os inventories (importantes para calcular a velocidade de rotação do capital circulante em economia marxista), vemos que o ritmo médio de acumulação deste stock de capital amplo foi mesmo ligeiramente mais elevado durante o sub-período 1952-1978 (10,41%) do que no decorrer do sub-período 1979-2015 (10,39%). E se se seleccionar um capital ainda mais extenso, integrando além disso os edifícios residenciais e suas terras – portanto componentes não directamente produtivos –, a taxa de crescimento deste stock de capital muito amplo ainda era rápida no sub-período 1952-1978, em média de 9,1% contra 10,9% de 1979 a 2015.
Portanto é claro que o esforço de acumulação de capital não é um fenómeno recente, mas que foi decidido e planificado continuamente pelas autoridades chinesas durante as seis décadas decorridas. E é este esforço prolongado de acumulação – permitido nomeadamente por transferências de excedente das zonas rurais – que explica o êxito da industrialização e, em grande medida, a muito forte taxa de crescimento do PIB.
Despesas de educação e de investigação
Entretanto, outros factores tiveram certamente de actuar neste dinamismo da economia. Trata-se, em particular, dos investimentos realizados na educação e na investigação. Como medi-los? A tarefa não é fácil, mas tentámos fazê-lo num outro artigo publicado numa revista académica de Londres. [10] Reconstruímos em séries temporais longas (1949-2015) indicadores de níveis de recursos educativos da população chinesa. Pois tais séries tão pouco existem nos anuários oficiais, e as séries relativas aos stocks de “capital humano” existente na literatura, como aquelas das Penn World Tables (2013) ou de Barro e Lee (1993), apresentam graves limites. [11]
Propusemos nossas próprias séries de stocks de formação da população esforçando-nos por trazer elementos de respostas a estas insuficiências. Assim, permanecemos fieis à definição que o NBS dá do nível de educação atingido pela população (o que conduz a integrar não só as pessoas titulares de diplomas como também aquelas que ainda se encontram na escola e mesmo aquelas que renunciaram no decorrer dos estudos). Tivemos em conta igualmente as mudanças de durações dos ciclos educativos decididos na sequência das reformas educativas sucessivas e tomámos em consideração a influência das campanhas de alfabetização e de formação dos adultos. Determinámos portanto stocks de recursos educativos, assim como seus aumentos (accrétions) respectivos – o que requer calcular os números médios de anos de estudos das pessoas por categoria de educação e os pesos destes indivíduos na população.
Ressalta das nossas estimativas que as taxas de crescimento médio do stock total de recursos educativos chineses têm sido extremamente próximas no sub-período 1949-1978 (de 4,19%) e no sub-período 1979-2015 (4,22%). E se considerarmos um stock educativo “produtivo”, efectuando os cálculos a partir da população activa (e não total, como anteriormente), então as taxas de crescimento médio deste stock de recursos educativos foram de 5,07% de 1949 a 1978 e 3,55% de 1979 a 2015, ou seja, mais elevado no sub-período que antecedeu as reformas de 1978.
Em consequência, o investimento no sector da educação também deve ser analisado como um processo de longo prazo, importante nos primeiros anos da República Popular pois visava a massificação da educação – isto, paralelamente à generalização do sistema de saúde pública e à extensão das infraestruturas a todo o território nacional. Trata-se de um dos pilares centrais da estratégia conduzida pela revolução na duração longa, que contribuiu decisivamente para a solidez e o dinamismo da economia actual.
Mas e quanto a (fluxos de) despesas de investigação e desenvolvimento (I&D)? A China não integrou o sistema de contabilização internacional das actividades I&D senão em 1986. Isso não significa que o país não tenha começado a investir em I&D senão a partir de 1986, mas que antes desta data é impossível ter acesso a dados homogéneos sobre o assunto. Diante deste constrangimento, elaborámos séries temporais originais, desta vez pelos fluxos de despesas de I&D, remontando o mais longe possível no passado (1949-2015). Retivemos todas as massas orçamentais, elementos de entidades económicas públicas (centro de investigação, universidades, empresas, etc) ou privadas, ainda que a proporção da I&D que saia destes últimos nos orçamentos totais permaneça, até o presente, relativamente menor. Recordamos que só em 1984 uma empresas privada foi autorizada a funcionar na República Popular e que a primeira legislação relativa à actividade das diversas actividades do sector privado dada de 1988. No que se refere aos anuários do NBS, as “despesas de I&D das empresas industriais de médio e grande porte” ainda se elevavam a menos de 6,5% do conjunto das despesas de investigação do país em meados dos anos 2000.
E os cálculos que efectuámos na base destas séries reconstruídas dão taxas de crescimento médias das despesas de I&D da ordem dos +14,5% ao ano no período 1949-2015, mas convém observar que o ritmo médio de acréscimo destas despesas de I&D foi claramente mais forte no sub-período 1949-1978 do que no seguinte (1979-2015). Evidentemente, os níveis tecnológicos dos primeiros anos e os de hoje são diferente e, além disso, o sistema de investigação pública teve de ser construído a partir do zero – o que explica em parte o crescimento muito rápido das despesas de I&D dos primeiros anos. Entretanto, é preciso compreender que os esforços efectuados pela China em matéria de I&D estão longe de terem sido insignificantes logo desde o início da revolução e que também eles devem ser analisados como uma estratégia construída pacientemente e continuamente que deu os seus frutos a longo prazo.
Por outras palavras, a China, cujo nível de desenvolvimento científico e tecnológico já não tem nada a invejar em relação aos mais avançados países industrializados capitalistas, não começou a promover suas actividades de investigação com a sua recente integração na mundialização, mas sim muito antes – de facto, desde a vitória da revolução, ainda que a natureza destas actividades se tenha refinado consideravelmente nestes últimos anos. Em termos simples, o que dizemos é que a estratégia de desenvolvimento da revolução dispôs as condições para o êxito actual da economia e que este êxito se inscreve na continuidade do passado, ao invés de estar em contradição com ele.
Comparações internacionais
Para bem apreender que a dinâmica e a potência actuais da economia chinesa não são simples resultantes “naturais” da abertura à mundialização (e em particular da adesão à Organização Mundial do Comércio, em 2001), parece importante ver isto em termos de comparações internacionais. Para assim fazer, utilizaremos uma fonte padrão que ninguém suspeita de favoritismo em relação ao poder comunista: o gui das Historically Planned Economies do Banco Mundial. Este anuário, publicado em 1992 por P. Marer e seus co-autores, permite comparar a China antes de 1991 com uma trintena de países socialistas (que hoje são na maior parte antigamente socialistas). [12]
E o que revele a leitura deste documento é, novamente, que a economia chinesa já esta dinâmica, no seu conjunto, em relação aos outros países socialistas, antes (e em torno) da morte de Mao. Este foi o caso, por exemplo, para a taxa de crescimento do sector industrial, que atingiu em média +7,9% por ano na década de 1970, ou seja, o segundo lugar dos países de economia administrada, diante da URSS (6,2%) e muito adiante de todos os outros (salvo a Jugoslávia para a indústria). A velocidade de cruzeiro da economia chinesa foi portanto atingida muito tempo antes da sua adesão à OMC. No decorrer dos anos 1980, com efeito, quando o país ainda dispunha da maior parte das instituições socialistas, ela registava taxas de crescimento muito fortes em todos os sectores em comparação com os outros países ditos “socialistas”. Assim, de 1980 a 1989, a China já se classificava no primeiro lugar deste grupo para o crescimento da agricultura (+6,3%), da indústria (+12,6%), da construção (+12,%) e mesmo dos serviços (+10,6%); resultados frequentemente situados claramente adiante dos outros países. [13]
Enquanto um pouco por toda a parte na academia ou nos media dominantes lê-se e ouve-se que a “descolagem” da economia chinesa seria devida à abertura à mundialização, de nossa parte pensamos ser útil acrescentar – o que raramente é o caso – que um tal crescimento não se tornou possível senão graças aos esforços e realizações cumpridas sob Mao. E só devido à condição de esta abertura ter sido firmemente e eficazmente controlada pelas autoridades chinesas é que ela pode ser considerada como tendo contribuído mais recentemente para os êxitos económicos do país. É por ter sido submetida aos imperativos internos de satisfação dos objectivos e necessidades domésticas, e plenamente integrada numa estratégia de desenvolvimento cuja coerência é sem equivalente nos países do Sul, que esta abertura pôde produzir efeitos positivos sobre a China. Sem esta estratégia, que é a obra do PCC – como esquecê-lo? – a abertura ao sistema mundial capitalista, como em tantos outros lugares no Sul e no Leste, teria inevitavelmente implicado a desestruturação, mesmo a própria destruição, da economia nacional.
Além dos progressos sociais e do êxito do processo de industrialização já evocados, um elemento essencial que também contribuiu para o desenvolvimento extraordinário da economia foi a resposta dada à questão agrária. Queremos aqui insistir no facto de que a China é um dos poucos países do mundo a ter assegurado – e continuar a assegurar –, na lei, o acesso à terra para a vasta maioria das massas camponesas. Este facto é sem igual junto aos seus vizinhos asiáticos – com excepção daqueles que efectuaram uma reforma agrária radical associada a uma revolução socialista, como no Vietname. Múltiplas violações do direito e tentativas destinadas a limitar este acesso têm sido observadas nos últimos anos (nomeadamente, pelo viés de cessões indevidas de terras públicas por autoridades locais, seguidas de expropriações de famílias), mas face a estes casos abusivos, certamente numerosos, ergueram-se resistências camponesas.
Estes factos dão uma ideia da importância da questão agrária nos debates internos na liderança política chinesa, como aqueles que atravessam a sociedade actual no seu conjunto. Percebe-se aqui a impossibilidade de compreender as evoluções profundas deste país sem colocar o campesinato no centro da análise. Pois o constrangimento maior que pesa sobre a China continua o de dever alimentar mais de 20% da população mundial com menos de 7% das terras aráveis do planeta. Isto corresponde a um quarto de hectare de terra cultivada por habitante na China, contra o dobro na Índia (e 100 vezes mais nos Estados Unidos). Este desafio alimentar, imenso, não pôde ser enfrentado senão graças à afirmação do acesso à terra para o campesinato, que continua, até o presente, a contribuição mais preciosa da herança revolucionária maoista.
Apesar de os modos actuais de organização, de produção e de distribuição do sector agrícola estarem totalmente penetrados pelos mecanismos de mercado e já não terem grande coisa a ver com os da época maoista, a propriedade fundiária na China ainda hoje permanece estatal ou colectiva – ainda que formas degradadas sejam frequentemente encontradas, por vezes mesmo com um controle privado efectivo sobre certas terras. Mas é esta persistência da propriedade pública é uma chave que permite distinguir a situação – e o êxito – da China em relação aos outros países que têm uma dimensão continental comparável e pretensamente “emergentes”, tais como a Índia ou o Brasil, ou países regionalmente dominantes (África do Sul) para os quais a questão agrária está longe de ter encontrado condições, mesmo parciais, de solução.
Identificação de uma sucessão de “crises” e verificação da tese do Prof. Wen
Mas se o crescimento da China foi muito forte durante várias décadas, será que tal fenómeno se realizou sem dificuldades, sem solavancos? Para responder, retomemos a base de dados do PIB do NBS. O que se constata? Primeiro, verificamos que desde 1952 a evolução do PIB chinês, em preços constantes, tem a aparência de uma curva exponencial. E se se raciocinar em escala logarítmica, observamos uma situação situada em torno de uma tendência linear fortemente ascendente. Mas se se encara no presente esta dinâmica em taxa de crescimento, vêem-se surgir flutuações, ainda que a amplitude tenda a reduzir-se com o tempo, e para quatro períodos precisos, de taxas de crescimento negativas. À parte estes períodos, todos os outros anos registam um crescimento positivo do PIB, mais ou menos pronunciado. Estes quatro períodos com valores negativos são identificáveis para sete anos (dos 64 incluídos a amostra estudada [1952-2015], ou seja, apenas mais de 10% do tempo: de 1960 a 1962 (com respectivamente -1,3%, -27,8% [para o ano de 1961, de longe o mais forte recuo sofrido pelo país em seis décadas] e -9,2%), associados ao choque da ruptura de relações com a URSS; depois em 1967-68 (-4,4$ e -2,9%), o que corresponde ao início da Revolução Cultural; em 1976 (-2,0%), data da morte de Maio; e finalmente em 1989 (-4,3%), no momento dos acontecimentos de Tiennamen. Podemos portanto identificar “a olho nu”, e num contexto de tendência ascendente da taxa de crescimento económico, quatro períodos de “crises” no sentido tradicional do termo, ou seja, caracterizadas por uma taxa de crescimento negativa, portanto por uma diminuição do PIB em preços constantes (sem inflação): 1960-62, 1967-68, 1976 e 1989.
Entretanto, esta abordagem é insuficiente para dar conta das dificuldades atravessadas ao longo das seis décadas decorridas desde o início da revolução. Vamos aqui para além das aparências. Para aprofundar a análise, e complexificar o conceito de “crise”, optamos por recorrer a indicadores da taxa de lucro para a China. O método consistente em calcular taxas de lucro é habitual entre os marxistas para estudar as dinâmicas de acumulação do capital que caracterizam países capitalistas, mas não, em geral, países “socialistas”, ou cujas autoridades políticas se reclamam favoráveis ao socialismo. Ora, é inteiramente possível utilizar taxas de lucro em economia socialista, se a sua construção, ainda que a sua construção e interpretação sejam bem distintas das dos países capitalistas. [14] Construímos portanto vários indicadores da taxa e lucro do sector industrial chinês entre 1952 e 2015, a partir das nossas séries anteriores de stocks de capital físico. Estes indicadores relacionam, no numerador, um lucro ou excedente, correspondente á diferença entre o PIB e as remunerações dos trabalhadores (directas e indirectas) e, no denominador, o capital avançado, isto é, quer o capital fixo tal como o havíamos definido, quer este mesmo capital ao qual é acrescentado um capital circulante calculado a partir de uma estimativa da velocidade de rotação do capital (graças aos inventories ).
Pode-se então proceder, utilizando um método de filtragem, a uma decomposição técnica da taxa de lucro em tendência de longo prazo e ciclos de curto prazo. Duas observações podem ser feitas. A primeira é a detecção de uma tendência à baixa das taxas de lucro chinesas de 1952 a 2015, seja qual for o indicador adoptado. Se se efectuar agora uma decomposição económica das taxas de lucro, por cálculo destinado desta vez a distinguir as evoluções respectivas da composição do capital, da produtividade do trabalho e da parte dos lucros, vê-se que o fenómeno mais determinante na explicação da baixa da taxa de lucro é a alta da composição orgânica do capital (ou seja, a relação entre as partes constante e variável do capital).
A segunda observação refere-se aos ciclos de curto prazo que pontuam as evoluções destas taxas de lucro. Repara-se numa alternância regular de flutuações para a alta e para a baixa e constata-se que estas variações cíclicas reduzem-se claramente entre os anos 1950 e o início da década de 2000, mas que a magnitude dos ciclos tende sensivelmente a acentuar-se novamente no fim do período – ou seja, desde o fim dos anos 2000 e o período actual.
Na amostragem completa (1952-2015), uma sucessão regular de momentos de variações negativas das taxas de lucro pode assim ser assinalada. Os anos de recessão descobertos pelas taxas de lucro, marcados por crescimentos das componentes cíclicas das taxas de lucro com valores negativos, são observados uma trintena de vezes no decorrer dos 64 anos estudados. Mais precisamente, um sinal negativo é assinalado em 1952, 1957, 1960-1963, 1968, 1978-1982, 1985-1987, 1990-1991, 1998-2003, 2009 e 2012-2015. Assim, vemos que já não são apenas quatro períodos que estão identificados (como sugeria o estudo rápido anterior da taxa de crescimento do PIB), mas 10 períodos com valores negativos, registados desta vez pela taxa de crescimento das componentes cíclicas das taxas de lucro, cobrindo no total cerca da metade da amostragem temporal examinada.
Reconhece-se, através destas sequências recessivas, as desacelerações que sucessivamente afligiram a história económica da China desde a fundação da República Popular – e que o Prof. Wen Tienjun tem razão em denominar as “dez crises”. [15] Depois das enormes dificuldades que o povo chinês teve de enfrentar após 1949, devidas essencialmente às destruições causadas pelas guerras e convulsões que o país havia atravessado nas décadas que antecederam a Revolução, reencontramos o traço da recessão de começa em 1952 – e cujo ponto baixo foi 1957. A grave crise do início dos anos 1960 – a pior sob a era maoista, perceptível sobretudo em 1961 – provinha dos efeitos combinados da interrupção da ajuda da URSS após a degradação do conflito sino-soviético, do fracasso relativo do Grande Salto Em Frente e de catástrofes naturais. O ano de 1968, outro ponto baixo, coincide com o endurecimento da Revolução Cultural, lançada dois anos antes. Os problemas enfrentados entre 1978 e 1982 traduzem as dificuldades da transição pós-Mao e da implantação das reformas estruturais de “abertura”. O período 1985-1986 é um dos pontos de viragem rumo à economia de mercado, nomeadamente com a execução da reforma fiscal de 1984. Depois, no momento da queda do bloco soviético, foi tentada uma breve experiência que se pode qualificar de “neoliberal”, cujo resultado foi o recuo brusco da economia em 1990-1991, acompanhada de uma explosão da corrupção. Finalmente, num contexto de forte dinamismo do PIB chinês, os declínios dos componentes cíclicos das taxas de lucro a partir de 1998 são cada vez mais atribuíveis ao impacto de choques exógenos importados, ligados à difusão dos efeitos de crises regionais ou globais sofridos pela China: crise “asiática” (1998-1999), depois crises da “nova economia” e “pós 11 de Setembro” (2001-2003), crise “financeira” dita “dos subprimes” em 2008 (na realidade crise sistémica do capitalismo), cujos efeitos foram ressentidos na China em dois tempos: em 20089 e, novamente, de modo mais durável e profundo, a partir de 2012 e até os nossos dias. [16]
Estes 10 momentos de “crises” são mais frequentemente identificáveis, paradoxalmente, no próprio momento em que o crescimento do PIB atingia simultaneamente taxas elevadas – e por vezes muito elevadas, como é o caso por exemplo, em contextos diferentes, nos anos 1963, 1978, 1986, 1991 e 2003. Por outras palavras, no caso chinês crescimento não quer necessariamente dizer ausência de dificuldades e, inversamente, crise não significa forçosamente recessão do PIB. Num país como a China, caracterizada por contradições poderosas, não nos pareceu necessário recorrer a um conceito mais amplo de “crise” para dar conta de períodos no decorrer dos quais surgiam dificuldades estruturais – isto, apesar das aparências de um forte crescimento do PIB podendo fazer crer que tudo vai bem.
À guisa de conclusão
Neste artigo, quisemos sublinhar a importância da análise de período longo para compreender os motores profundos do desenvolvimento económico da China desde há mais de 60 anos: os progressos sociais, a industrialização ou a resposta à questão agrária. Para aprofundar a reflexão sobre as dificuldades encontradas pela economia chineses, para além do forte crescimento do seu PIB, propusemos fazer o exame desta última à luz das taxas de lucro industriais, que construímos a partir de séries originais de stocks de capital físico chinês e considerado como indicador chave do nosso raciocínio. Ao observar as evoluções destas taxas de lucro ao longo de mais de seis décadas, percebemos que a trajectória de crescimento económico da China, excepcional tanto pela sua forma como pela sua escala, não se operou sem dificuldades. Esta é a razão porque escolhemos qualificar de “crises” períodos paradoxais, caracterizados por variações negativas das taxas de lucro, mas também por taxas de crescimento do PIB positivas, por vezes muito elevadas.
04/Abril/2018
[1] Ler: Lau K.C. and Ping H. (eds), 2003, China Reflected . Hong Kong: ARENA Press.
[2] Maddison A., 2001, The World Economy: A Millennial Perspective , Paris: OECD Development Centre Studies.
[3] Marer P. et al. , 1992. Historically Planned Economies: A Guide to the Data . Washington D.C.: World Bank.
[4] World Bank, various years, World Development Indicators . Washington D.C.: World Bank.
[5] National Bureau of Statistics of China, various years, China Statistical Yearbook , NBS, Beijing.
[6] Ver: unstats/un.org/unsd/nationalaccount/sna2008.asp.
[7] Long Z. and R. Herrera (2016), “Building Original Series of Physical Capital Stocks for China’s Economy: Methodological Problems, Proposals of Solutions and a New Database,” China Economic Review , 40(9), 33-53.
[8] Ver: Penn World Tables (www.rug.nl/research/ggdc/data/ptw) ou Chow G. (1993), “Capital Formation and Economic Growth in China,” Quarterly Journal of Economics , 108(3), 809-842.
[9] Exemplo: https://ptw-sas.upenn.edu. Para a versão 8.1, mais recente : www.rug.nl/research/ggdc/data/ptw.
[10] Long Z. et R. Herrera (2018), “Contribución a la explicación del crecimiento económico en China,” Spanish Journal of Economics and Finance (Elsevier, London) , 41(115), 1-18.
[11] A título de exemplo, a base de dados Barro e Lee é de qualidade, mas ela começa apenas em 1970 e tem uma frequência de apenas cinco anos, o que está longe de ser suficiente para as exigências da análise económica. Quanto a elas, as estatísticas divulgadas pelos PTW subestimam exageradamente os níveis educativos da população chinesa. Ver: Barro R. and J.-W. Lee, 2012, Educational Attainment Dataset , disponível em: www.barrolee.com.
[12] Marer P. et al. (1992), p. 52.
[13] Idem , pp. 50-51.
[14] Herrera R. and Z. Long (2017), “Capital Accumulation, Profit Rates and Cycles in China’s Economy from 1952 to 2014,” Journal of Innovation Economics and Management , online, 2(23).
[15] Wen T. (2009), The ‘San Nong’ Problem and Institutional Transition . Beijing: China Economic Press.
[16] Herrera R. et Z. Long (2017), “Elementos de reflexión sobre el crecimiento económico de China en el largo plazo: 1952-2014,” Temas de Economía Mundial (CIEM, Havana) , II(32).
[*] Investigador do Centre national de la Recherche scientifique (CNRS), Centre d’Économie de la Sorbonne, Paris.
[**] Professor assistente na Escola de Marxismo da Universidade Tsinghua de Pékin, Beijing, República Popular da China.
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/