Obra recupera a trágica história vivida pela jovem judia durante a Segunda Guerra Mundial
Adelto Gonçalves (
Nascido em Monte Alegre, hoje Telêmaco Borba, no Paraná, mas tendo vivido até a juventude em Itararé, Silas Corrêa Leite (1952) descende, por parte de pai, de judeus da Ilha da Madeira, convertidos como cristãos novos, e, por parte de mãe, de índios guaranis e de negros de Angola. Por isso, ao acumular, com todas essas ascendências, as cotas de dores de tantas gerações que viveram as angústias e vicissitudes da diáspora, do genocídio e da escravatura, sentiu-se no dever de tentar reconstituir a história da adolescente alemã de origem judia Annelies Marie Frank (1929-1945), Anne Frank, nascida em Frankfurt, que, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), escondida num abrigo em Amsterdã para fugir das atrocidades que eram cometidas por soldados nazistas, escreveu um diário que, mais tarde, tornaria o seu drama conhecido em todo o mundo.
Como se sabe, o famoso “Diário de Anne Frank” registra a história dessa jovem que viveu o medo de ser levada com sua família para um campo de concentração em meio ao caos da Segunda Guerra Mundial e ser consumida pelas atrocidades que eram cometidas por soldados nazistas. Antes disso, a uma época que lembra um pouco o ambiente vivido no Brasil de 2019 a 2022, a família de Anne Frank, diante da ascensão de Adolf Hitler (1889-1945) com sua pregação de ódio aos judeus e em razão da má situação econômica do país, decide mudar para Amsterdã, onde Otto Frank (1889-1980), o patriarca, fundaria uma empresa que comercializava pectina, agente gelificante para a preparação de geleias.
A 1º de setembro de 1939, quando Anne estava com dez anos, a Alemanha nazista acabaria por invadir a Polônia, dando início à Segunda Guerra Mundial. Passados uns meses, em maio de 1940, os nazistas também invadiriam a Holanda, sem encontrar muita resistência. Logo, os judeus começaram a ser segregados, com as crianças sendo isoladas numa escola e os adultos proibidos de continuar a gerir negócios. Com isso, o pai de Anne ficaria na iminência de perder a fábrica. E, diante da perseguição, na primavera de 1942, ajudado por amigos, ele começaria a instalar um esconderijo no anexo secreto da sua empresa, no nº 263 da rua Prinsengracht.
Perante a ameaça iminente, Otto Frank e a família, ao lado de mais quatro pessoas, acabariam por se instalar precariamente no chamado Anexo Secreto, local muito apertado e onde era difícil até respirar. Agarrada à família, Anne, vivendo aquele clima de medo, procuraria permanecer silenciosa e acabaria por encontrar na possibilidade de escrever um diário a única saída para continuar vivendo.
II
A partir desse diário que Anne escreveu e que, bem mais tarde, viria a se tornar famoso, por iniciativa de seu pai, o único do clã que sobreviveu aos horrores da Segunda Guerra Mundial, Silas Corrêa Leite se propôs a escrever o que, em sua imaginação, poderia vir a ser um segundo diário da jovem judia e, ao mesmo tempo, uma homenagem à escritora experimental que sonhava virar jornalista.
Nesta obra, mesmo que seja uma história contada com certo distanciamento, o autor procurou compreendê-la com as mesmas lágrimas e esperanças, com as mesmas cinzas da personagem. “Assim, e muito além da longa estrada das fogueiras cor de laranja; muito além do farol do fim do mundo; muito além do vale da sombra da morte; muito além da estrada de tijolos amarelos que um poeta roqueiro cantou décadas depois, é este romance”, define o autor, para quem a sua obra deve ser vista como um testemunho de que a esperança é a inteligência da vida. “Criar a partir da dor é humano, demasiado humano”, reconhece. “Mas é até mesmo por isso como um inventado leitmotiv de registro histórico também desses tempos tenebrosos”, acrescenta.
III
É de se lembrar que Anne, com 13 anos, passa a viver no esconderijo e, durante os dois anos em que teve de ficar escondida, escreve o que vê e o que se vai passando no Anexo Secreto, registrando o que também sente em sua alma, seus sentimentos, aspirações e vontade de sobreviver. Escreve histórias curtas, inicia um romance e anota passagens que lia no Livro de Belas Frases. Mais tarde, ela tem a ideia de reescrever seus diários e transformá-los numa única história, com o título Her Achterhuis, que quer dizer O Anexo Secreto.
Assumindo-se como alter ego do espírito de Anne Frank, Silas Corrêa Leite produz um texto com uma linguagem fluida, intercalando-o com reproduções de textos clássicos, alguns extraídos do Velho Testamento bíblico, citações de filósofos, poetas e escritores como Hannah Arendt (1906-1975), Rainer Maria Rilke (1875-1926), Fernando Pessoa (1888-1935), Franz Kafka (1883-1924) e outros, e até a reprodução de um poema anônimo encontrado na parede de um dos quartos de crianças judias do campo de extermínio nazista de Auschwitz.
Mais adiante, escreve, como se fosse Anne Frank: “Sou uma passageira clandestina numa Estação Tempestade qualquer, mas, escrevendo desesperadamente e sem parar às vezes sinto que enlouqueço e assim de mim vou deixando rastros. Escrever me faz um monstro; escrever para mim é uma doença? Muitas coisas morrem em nós, antes de definitivamente também por fim morarmos em nós”.
Quem vier a ler a obra de Silas Corrêa Leite terá também a oportunidade de conhecer com minúcias a história de Anne Frank, inclusive o que se deu com a família depois que o esconderijo foi descoberto, quando todos foram detidos ao lado de outras duas pessoas que os ajudavam, sem que se saiba até hoje o verdadeiro motivo que levou a polícia nazista a praticar a ação. Isso deu-se a 4 de agosto de 1944, dois anos depois. Apesar da busca, uma parte dos escritos de Anne seria preservada, bem como outros documentos que escaparam à sanha nazista.
Após passar pelo serviço de inteligência da polícia de segurança alemã, as pessoas escondidas foram enviadas para o campo de concentração e extermínio de Auschwitz-Birkenau, numa viagem de três dias, em más condições de higiene, com mais de mil pessoas apertadas em vagões que geralmente levavam gado. Mais de 350 pessoas que viajaram com Anne foram imediatamente mortas nas câmaras de gás. E Anne enviada para o campo de trabalho para mulheres, com a sua irmã e a sua mãe, enquanto Otto Frank acabou num campo para homens, tendo sobrevivido a toda a barbárie nazista.
No início de novembro de 1944, Anne é transportada novamente. Juntamente com a sua irmã, foi deportada para o campo de concentração de Bergen-Belsen. Os seus pais ficaram em Auschwitz. As condições em Bergen-Belsen eram também miseráveis: quase não havia comida e o frio era horrível. Em consequência disso, Anne, como a sua irmã, ficou com febre tifoide. Em fevereiro de 1945, ambas morreram das consequências dessa doença, primeiro Margot e, pouco depois, Anne, em Bergen-Belsen.
Em 1947, encerrada a guerra, Otto Frank publicou o diário da filha, que seria traduzido para mais de 70 idiomas, venderia milhões de exemplares e seria adaptado para o teatro.
IV
Além de contista e romancista, Silas Corrêa Leite é poeta, letrista, professor, bibliotecário, desenhista, jornalista, ensaísta, blogueiro e membro da União Brasileira de Escritores (UBE). Nos últimos tempos, lançou Campo de trigo com corvos (Jaraguá do Sul-SC, Design Editora, 2007); Gute-Gute, barriga experimental de repertório (Rio de Janeiro, Editora Autografia, 2015); Goto, a lenda do reino encantado do barqueiro noturno do rio Itararé (Florianópolis, Clube de Autores Editora, 2013); Tibete, de quando você não quiser ser gente (Rio de Janeiro, Editora Jaguatirica, 2017); Ele está no meio de nós (Curitiba, Kotter Editorial, 2018); O lixeiro e o presidente (Curitiba, Kotter Editorial, 2019); Transpenumbra doArmagedon (São Paulo, Desconcertos Editora, 2021); Cavalos Selvagens, romance imaginativo (Curitiba/Taubaté: Kotter Editorial e Letra Selvagem, 2021); A Coisa: muito além do coração selvagem da vida (Cotia-SP, Editora Cajuína, 2021); e Lampejos (Belo Horizonte, Sangre Editorial, 2019).
É autor ainda de Porta-lapsos, poemas (São Paulo, Editora All-Print, 2005); O Homem que virou cerveja, crônicas (São Paulo, Giz Editorial, 2009); e Favela stories, contos (Cotia-SP, Editora Cajuína, 2022). Seus trabalhos constam de mais de cem antologias, inclusive no exterior, como na Antologia Multilingue de Letteratura Contemporanea, de Treton, Itália, e Christmas Anthology, de Ohio/EUA. É autor do primeiro livro interativo da Internet, o e-bookO rinoceronte de Clarice, que virou tema de tese de mestrado na Universidade de Brasília (UnB) e de doutoramento na Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
(*) Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Fernando Pessoa: a Voz de Deus (Santos, Editora da Unisanta, 1997); Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003, São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), O Reino a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo – 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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