Carlos Carvalhas [*]
Como se sabe, em Bretton Woods Keynes procurou que fosse adoptada uma moeda composta de várias moedas com diversas ponderações, o “Banco “, para as transações internacionais. Tal não veio a acontecer. Os americanos impuseram o dólar.
Esta imposição é nos historicamente explicada pelo facto de, terminada a guerra, os EUA serem os maiores detentores de ouro e também o país que, tendo sido dos menos afetados pelo conflito, era o que se encontrava em melhores condições económicas.
Mas há um outro aspecto de grande relevância que não é mencionado.
Os EUA possuíam a bomba atómica.
Ora na história da humanidade, nas relações internacionais, a superioridade no armamento militar desempenhou sempre o papel determinante, na relação de forças, dominação, imposição.
Desde o sílex, o bronze, o ferro, as armas de repetição, a bomba atómica e, nos nossos dias, os drones e os mísseis hipersónicos.
Isto para dizer que a situação da guerra que estamos a viver na Europa seria diferente se a Federação Russa não tivesse atualmente superioridade militar neste tipo de armamento decisivo. E é esta relação de forças no plano do armamento militar conjugado com o poderio económico da República Popular da China que também torna muito mais efetiva a ameaça aos privilégios do dólar.
Pela primeira vez no quadro internacional, nomeadamente depois do desaparecimento da União Soviética, há uma grande potência econômica, a fábrica do mundo e uma potência militar, a Federação Russa que põem em causa a hegemonia americana e o sistema monetário internacional tal como o temos conhecido. E tudo leva a crer que terão força para o fazer.
Da mesma maneira que em Bretton Woods o resultado foi a lei do mais forte também na nova relação de forças mundial a China e a Rússia estão em condições de pôr em causa o domínio absoluto dos EUA e do dólar e inclusivamente poderem vir a ser um polo de atracção para países que querem garantir a sua independência.
As sanções à Federação Russa e a captura das reservas de dólares, euros e títulos de tesouro pertencentes ao Banco Central da Rússia, tal como já o tinham feito a outros países, mostraram ao mundo que a detenção de reservas em dólares e divisas dos países da NATO, não dá nenhuma segurança.
Recorda-se que o fizeram contra o Irão, o Iraque, a Jugoslávia, o Zimbabwe, a Birmânia, a Venezuela, a Síria, a Líbia e o Afeganistão…
Até agora, a questão esteve em como romper a hegemonia americana que assenta a sua força no poderio militar – complexo militar-industrial – [1], no dólar, no domínio das agências internacionais e das agências de informação, nas leis extra territoriais, tribunais arbitrais privados [2] – e até na indústria do entretenimento (Hollywood, Netflix).
Mas desta vez, o quadro internacional é diferente. Há a China, há a Federação Russa e há outros grandes países que desejam também ter a sua liberdade de movimentos como é o caso da Índia e até da Arábia Saudita, que neste momento sofre a pressão dos Estados Unidos da América para que não venda o seu petróleo à China aceitando yuans.
A força militar dos Estados Unidos permitiu que as matérias-primas e designadamente os produtos petrolíferos fossem negociados em dólares desde o acordo de Nixon com a Arábia Saudita, conferindo a esta moeda o estatuto de reserva mundial e um estatuto de confiança e solidez que não corresponde sequer à realidade.
Esta confiança (fidúcia) permite-lhes até usar a rotativa na impressão de dólares para os usarem conjunturalmente nas revoluções coloridas e na desestabilização deste ou daquele país que não se submeta.
O dólar é o maior sistema Ponzi-D. Branca da história. No seu tempo De Gaulle já tinha chegado à conclusão que se os dólares que circulavam na Europa regressassem aos Estados Unidos da América não havia ouro no Fort Knox para a sua troca, tal como estabelecido nos acordos de Bretton Woods. Na atualidade se os dólares que circulam no mundo regressassem aos Estados Unidos não haveria nem ouro, nem património, nem bens e serviços que lhes correspondessem.
O dólar está enraizado por decénios de domínio norte-americano e é aceite normalmente nas transações internacionais o que não significa que não tenha pés de barro.
O confisco das reservas em dólares em títulos de divisas americanas à Federação Russa levou a que está viesse a exigir o pagamento das suas exportações de gás em rublos defendendo assim a sua moeda que em vez de se ter afundado se tem apreciado até agora.[3]
Para alguns economistas e comentadores internacionais, a ligação do rublo ao gás e ao ouro deu lugar a uma nova moeda “gásrublo”, que pode marcar o início de uma nova relação de forças no sistema financeiro internacional conjuntamente com outras moedas no quadro de um mundo multipolar ou bipolar.
Os Estados Unidos e os falcões ocidentais impuseram sanções a um país que possui matérias-primas fundamentais e em quantidade para abalar os mercados mundiais e que, no plano militar, está em condições de lhes fazer frente.
Acresce que a Federação Russa conta com a China até por necessidade objetiva deste país, que tem vindo a ser diabolizado, de se defender de uma futura agressão que já se desenha nos Estados Unidos.
Esta operação de pagamento de gás em rublos, para já, tem resultado e se a evolução da guerra for favorável à Federação Russa, as sanções podem vir a estimular um bom número de países a repensar a sua estratégia em matéria das suas reservas num processo de afastamento do dólar.
Por enquanto o peso das moedas chinesa e russa nas reservas dos bancos centrais é ainda relativamente pequeno, mas esta situação pode vir a alterar-se [4]. A China já foi diretamente e indiretamente ameaçada. Em 2017 o secretário do Tesouro norte-americano Steven Mnuchin admitiu cortar o acesso da China ao sistema de pagamento em dólares se não aplicasse as sanções da ONU contra a Coreia do Norte para a dissuadir de prosseguir com o desenvolvimento de mísseis e armas nucleares.
A China tem vindo a tomar, paulatinamente, medidas no plano monetário e financeiro para defender a sua independência.
Por exemplo, sendo hoje o primeiro importador mundial de petróleo bruto, a China tem procurado utilizar esta posição para conseguir que, pelo menos, uma fracção significativa das suas importações seja paga com a sua moeda.
Está a procurar consegui-lo com a Arábia Saudita, como já foi dito, e tem contratos a prazo com a Rússia e com o Irão.
A cooperação entre a China e a Rússia no domínio energético, no domínio financeiro, monetário e no sistema de pagamentos reforçou-se ainda mais nos últimos anos o que é um dado importante na atual relação de forças mundiais.
A China para o Ocidente foi parceira, hoje é rival e os seus dirigentes sabem também que por vontade dos americanos já seria inimiga.
A União Europeia e o Euro
A posição da UE de total seguidismo em relação à política americana veio também demonstrar que a detenção de reservas em euros não dá quaisquer garantias.
Para além das fragilidades evidenciadas pelo sistema de pagamentos entre bancos centrais do euro, sistema (Target 2), os países do Euro, ao seguirem as posições americanas, liquidaram também qualquer veleidade desta moeda poder constituir-se como uma reserva fiável e segura para os países emergentes. [5]
A persistência e até agravamento dos desequilíbrios entre a maioria dos países da zona euro com a Alemanha indiciam que uma nova crise do euro não é de excluir o que torna o euro ainda menos confiável. Esta perspectiva real é também impulsionada pela situação da inflação pelo COVID e agora pela guerra na Ucrânia que vai levar ao aumento das taxas de juro o que será extremamente negativo para os países mais endividados como é o caso de Portugal.
As baixas taxas de juro e as taxas de juro negativas desempenharam na prática a função de reestruturação das dívidas dos países endividados. Diminuição das taxas de juro, alongamento dos prazos e até haircut quando as taxas se apresentaram negativas.
Mas esta reestruturação, sem ser nomeada, pode ser interrompida pelo aumento das taxas de juro que já está em perspectiva e este aumento pode nem sequer ser suave. A “euribor” tem vindo a aumentar e os últimos empréstimos da Republica têm se realizado em condições mais onerosas.
A Alemanha reviu a sua previsão de taxa de inflação para este ano para 6,17% quando previa 3,3% em janeiro e não vai deixar de pressionar para o aumento das taxas de juro.
O prolongamento desta guerra em solo europeu, estratégia dos Estados Unidos da América, para confessadamente enfraquecer a Rússia, vai levar ao agravamento substancial da situação social, financeira e económica em toda a Europa com consequências políticas e faturas mais pesadas para os países endividados que as procurarão endossar aos trabalhadores e aos povos.
As afirmações dos dirigentes europeus têm sido no mínimo pouco prudentes e não têm ido na direção de uma solução negociada do conflito.
A senhora Van der Leyn declarou que “se trata de uma guerra económica total “contra a Rússia. Mas as sanções têm também o seu reverso como já estamos a verificar.
Quanto ao rublo, a Rússia aprendeu com as sanções que lhe foram impostas em 2014. Foi tomando medidas. Criou um embrião de um sistema de transferência de dinheiro para contornar a exclusão do SWIFT e tem contado com o sistema chinês; foi acumulando ouro – estima se mais de duas mil toneladas nestes anos –, estabeleceu um preço fixo para a sua compra em rublos e tem reforçado ano após ano as trocas financeiras bilaterais com os seus principais parceiros nas suas respectivas moedas. Isto sem subestimar os efeitos sociais, económicos, financeiros e políticos das pesadas sanções cuja extensão vai também depender da duração do conflito e do apoio que a China dê. [6]
Há muitas variáveis em jogo. Uma previsão é difícil. Qual a evolução e o desfecho desta guerra? Mesmo sabendo-se que a verdade é a primeira vítima da guerra, a mentira continua a fazer o seu caminho.
Recordamos também que Mike Pompeu, ex diretor da CIA, afirmou com clareza: “mentimos, enganamos, roubamos”.
De um lado e do outro, a contra-informação é diária. Mas, como já foi dito, a verdade existe o que não existe é a mentira.
Se a Federação Russa atingir os seus objetivos, o Ocidente e em particular a União Europeia vai herdar uma Ucrânia com as suas infraestruturas destruídas, sem o seu coração industrial, e com acesso ao mar limitado. De qualquer maneira esta guerra em solo europeu, para além das tragédias humanas é já um manto de destruição. Do que a humanidade mais precisava e a Europa em particular não era de mais lenha para a fogueira, mas de um urgente fim das hostilidades e de um acordo de paz negociado.
Com os compromissos que a UE assumiu a fatura, só para a Ucrânia se manter à tona de água, vai ser pesada. Isto conjugado com a tendência para a estagno-inflação – baixa tendencial da taxa de lucro – , a ficção da economia de casino e a perspectiva de um novo krash – estima-se que só o mercado de produtos derivados seja 10 vezes o PIB mundial; o castelo de cartas em que assenta o sistema bancário e financeiro; a crise energética e a crise alimentar perspectivam um quadro que, o mínimo que se pode dizer, não é esperançoso.[7]
É também neste quadro que os países mais ameaçados e com potencial econômico e militar vão procurar dar passos para uma maior libertação do dólar e avançar para uma “nova ordem mundial “.
Por enquanto, apesar dos brutais desequilíbrios da economia americana, os títulos de Tesouro não têm ainda um substituto a curto prazo quanto à liquidez e rendimento e o dólar vai continuar a reinar.
Demorará também ainda muito tempo para que a China, se tem esta estratégia, se desembaraçar das suas reservas investidas em dívida americana e a internalização da sua moeda, embora seja a quarta nas transações privadas, segundo o SWIFT, é ainda muito limitada quando comparada com o seu PIB.
Dito isto, é também sabido que há situações em que a História se acelera, e esta pode bem ser a situação que estamos a viver, em que a evolução da guerra e o seu desfecho vão ser determinantes.
Num estudo saído em fins de março, de economistas do Crédit Agricole, sublinha-se que as sanções poderiam ter “engendrado uma relocalização progressiva das reservas mundiais em detrimento do dólar e do euro”.
Ao ter declarado uma guerra económica global com uma das principais potencias económica do globo, o bloco euro-atlântico pode ter acelerado, contra a sua vontade, a afirmação de um mundo multipolar.
(1) A grande inovação do complexo militar- industrial para o desenvolvimento capitalista é obliterar efetivamente na pratica a distinção literalmente vital entre consumo e destruição. ”Para além do Capital “István Mezáros pág 687. Edição brasileira. Quanto ao declínio da hegemonia americana ver na mesma edição. A crise atual, pág 1087, 25.3.
(2) Sobre este tema sugere se a leitura do livro “A Arapuca Estadounidense um lava jato mundial”.
(3) O mecanismo russo de pagamento do Gás, Ricardo Cabral, Público, 2/5/2022; Le Redoutable piége tendu par Poutine Vincent Collen, Les Echos, 19 de Maio; Como é que a Rússia está a conseguir segurar o rublo?, Sérgio Aníbal , Público, 20/5/2022.
(4 )The End of dollar dominance, Michael Roberts Blog, 30 de Março; O fim da dominância do dólar?
(5) A narrativa do BCE de que os desequilíbrios são uma consequência mecânica das compras de obrigações públicas é contrariada pela evidencia empírica de casos já estudados como o da Itália –… . Do Plano técnico ao plano político. Do sistema Target2 à fragmentação financeira da UE. Eric Dor.
(6) (Num tom pessimista _ Cold Peace – Cédric Durand, Economics, 16 de Março)
(7) O objetivo dos americanos não é o de defender o povo ucraniano , mas antes o de enfraquecer a Rússia como também a União Europeia e aumentar a dependência desta nomeadamente no plano energético, para restaurar o seu poder no seu mundo unipolar, “Não foi por acaso”, Major-General Carlos Branco, Negócios, 19/Maio/2022; Não foi por acaso.
[*] Economista.
O original encontra-se em foicebook.blogspot.com/2022/05/o-dolar-o-sistema-monetario.html#more
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