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domingo, 6 outubro, 2024

O assassinato de Shireen Abu Akleh e a política de morte israelense

Por Michelle Ratto/Le Monde Diplomatique

Shireen fez uma escolha política pelo jornalismo e pela mídia digital porque ela soube cedo que a arquitetura da violência colonial-sionista se expande para além desses espaços físicos tridimensionais

Shireen Abu Akleh nasceu durante o inverno de 1971, em Jerusalém, quando a cidade revivia os tratores e os tremores da campanha militar de ocupação colonial da Palestina. Oriunda de uma família árabe-cristã, Shireen partiu ainda jovem – quando órfã de pai e mãe – para estudar fora de um cenário de guerra. Na juventude, chegou a frequentar o curso de Arquitetura em uma universidade da Jordânia, mas logo desistiu.
Como ser arquiteta e ao mesmo tempo assistir à destruição de edifícios, de paisagens, do meio ambiente e vidas de seu território, de sua história e de sua memória? Essa perturbadora realidade pode não ter sido a principal razão de sua desistência do curso, mas, sem dúvida, Shireen logo percebeu que, para combater o regime colonial empreendido por Israel, não lhe bastava analisar arquitetonicamente seu projeto calculado de apagamento do espaço e a guerra infraestrutural (Weizman, 2002) que provocou e ainda provoca a demolição em massa de cidades e vilarejos palestinos.
Afinal, em qual espaço o Estado israelense leva a cabo suas operações militares para a destruição e roubo de territórios? Na superfície da terra? Em águas marítimas? No espaço aéreo? Shireen fez uma escolha política pelo jornalismo e pela mídia digital porque ela soube cedo que a arquitetura da violência colonial-sionista se expande para além desses espaços físicos tridimensionais. Um projeto colossal de fragmentação da espacialidade palestina que não envolve apenas arquitetos/as, engenheiros/as e arqueólogos/as, mas veículos das grandes mídias internacionais e empresas de tecnologia da informação, empenhadas na reprodução da cartografia imagética israelense e na ampliação ilegal de suas fronteiras políticas.
No âmbito discursivo da construção de uma geopolítica imaginativa do Ocidente sobre “Israel”, “Palestina”, a esfera midiática internacional sempre atendeu ao lobby israelense. O literário palestino Edward Said nos deixou uma variedade de obras alertando para o discurso orientalista presente nas diversas instituições do saber, servindo de locus pedagógico que dissemina discursos e funciona como um dos motores da fábrica de imagens, ideias e paisagens sobre a nação, sobre o homem e a mulher palestina. Shireen era tão ciente do perigo de tal discurso que pessoalmente optou pelos estudos da língua hebraica para compreender mais profundamente a narrativa israelense sobre a guerra demográfica ali instalada.
Na década 1990, aos 20 anos, a comunicadora já era correspondente em Jerusalém Oriental para a Al Jazeera, fazendo a cobertura de ações militares e relatando violações de direitos humanos. No estopim da segunda Intifada (Levante Popular), Shireen foi a principal jornalista mulher-árabe-palestina a cobrir as ofensivas de Israel que deixaram mais de 7 mil palestinos mortos entre 2000 e 2005.
Quantas balas é preciso para apagar a Palestina?
Shireen estava a serviço da Al Jazeera, no dia 11 de maio de 2022, quando foi alvejada no rosto pelas forças israelenses. Ela cobria uma incursão militar no campo de refugiados de Jenin (cidade localizada ao norte da Cisjordânia) e demolições em massa de estruturas palestinas. Testemunhando com seus próprios olhos os escombros de casas palestinas sendo “sepultadas” pelos moradores desapropriados. Em uma nota publicada pela Al Jazeera no mesmo dia de seu assassinato, a rede acusa, com base no direito internacional, o assassinato da jornalista como sendo um crime de guerra. Outras agências de notícias internacionais – inclusive brasileiras – também têm se pronunciado a respeito. A Autoridade Palestina, Estados nacionais e organizações de direitos humanos como a ONU e a Anistia Internacional exigem a intervenção do Tribunal Penal Internacional na investigação da execução extrajudicial.
Não por coincidência, há um ano, no dia 15 de maio de 2021, o Estado de Israel bombardeou o prédio que sediava a rede Al Jazeera na Faixa de Gaza. Também não é pura coincidência que, há 74 anos, as forças sionistas europeias iniciaram a primeira etapa do processo de “limpeza étnica da Palestina” – ou Nakba (catástrofe), no dia 13 de maio de 1948, um dia antes do estabelecimento do “Estado de Israel”. A operação ocasionou o êxodo de mais de 800 mil nativos de seus lares e vilarejos. Alguns se refugiaram nas regiões de Gaza e Cisjordânia, outros em países árabes vizinhos. Um Estado fundado na morte, pois que estabelecido sob corpos e escombros palestinos.
O que a aniquilação do corpo da Shireen e dos milhares de outros comunicadores, ativistas, paramédicos e civis palestinos (incluindo menores) tem a nos dizer? Palestinas e palestinos têm chamado o colonialismo, a violência e a produção de políticas de morte – necropolítica (Mbembe, 2018) pelo Estado de Israel de “Nakba continuada”. Ou seja, os territórios que ainda “restam” e o corpo palestino são transformados em matéria-prima para fins de domínio (neo)colonial.
A catástrofe continuada: execuções extrajudiciais, demolições de casas, desapropriação, exploração predatória, subjugação, supremacia racial, segregação, vigilância, controle, monitoramento, agressão militar e regime de apartheid também se atualizam, se ampliam e se aperfeiçoam por meio de dispositivos de inteligência artificial. Tecnologias que são a base do capitalismo de vigilância e do colonialismo de dados tornam possível bombardear uma estrutura física e atingir um corpo palestino com apenas um clique. Esse mesmo dispositivo de morte “inteligente”, tão preciso e letal, assassinou a jornalista palestina mesmo Shireen utilizando um capacete e um colete à prova de bala contendo a palavra “PRESS”.
Como tentativa de justificar o assassinato, rapidamente o contexto de sua operação militar se transformou no discurso do medo, do combate a um suposto “terrorismo palestino” e da eliminação de um inimigo ficcional. Esse discurso me lembra uma manhã do dia 22 de setembro de 2015, quando eu estava na cidade de Hebron. Nesse dia, trabalhadores/as e crianças presenciavam a execução extrajudicial de uma jovem palestina, que foi divulgado pela Anistia Internacional. Hadeel Salah al-Hashlamoun só tinha 18 anos. Ela estava a caminho de sua casa para a Universidade de Hebron (era estudante de Letras) quando foi brutalmente mutilada em um posto militar de controle.
A jovem passava pela humilhante revista com detector de metais quando foi abordada por militares, que a submeteram a uma revista. Obedecendo a ordem, a estudante abria sua mochila quando, a poucos metros de distância, quatro militares dispararam, acertando primeiramente seu abdômen. Caída no chão – e sem apresentar qualquer sinal de vida – mais oito balas foram disparadas em direção ao seu corpo já morto. Aqui, a necropolítica não se reduz apenas ao aniquilamento físico do ser. Foram precisos doze tiros para o gozo e o desejo da morte simbólica da Palestina.
ShireenCartazes com fotos da jornalista, espalhados pelas ruas de Jerusalém. A inscrição do meio pode ser traduzida como “Palavras nunca morrem.” (Crédito: Osama Eid/Wikipedia)
O direito ao luto
“Nosso corpo precisa ser controlado, preso, mutilado e exterminado até na morte”, dizem palestinos e palestinas. Shireen era cristã e sua família optou por uma procissão que seria realizada em uma catedral (Cathedral of the Annunciation of the Virgin) localizada em Jerusalém Oriental. Já no percurso para a realização do velório, a família encontrou dificuldades de transferir seu corpo do hospital em Sheik Jarrah para a igreja. Militares fortemente armados bloquearam estradas e ruas para dificultar o acesso dos enlutados à Cidade Velha. Vários vídeos divulgados pelas mídias locais e internacionais mostram como todo um aparato militar foi acionado para atacar civis com bombas de gás lacrimogêneo.
Familiares e amigos que carregavam o caixão tiveram suas pernas espancadas com cassetetes pelas forças israelenses, numa clara tentativa de fazer com que o caixão fosse derrubado. Até o corpo já morto de Shireen foi brutalmente – e publicamente – desrespeitado. Por quê? O que um corpo palestino morto representa ao Estado sionista? Podemos retornar à questão do desejo sionista pela eliminação do sujeito palestino não apenas em sua dimensão física, mas também simbólica. Enquanto viva, a Shireen é retirado o direito de existir. Morta, é-lhe retirada ainda a possibilidade de ser passível de lamento, de choro e de “luto público” (Butler, 2015), no limite, a própria condição humana.
Particularmente na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, todos os cortejos fúnebres ganham uma dimensão de luto público e um caráter de protesto quando a vítima – ou “mártir” – sucumbe através de uma operação militar minuciosamente orquestrada. Um gesto simbólico de solidariedade entre palestinos/as e também uma tática de resistência contra a política da morte. Daí a importância da presença pública do corpo para as famílias e para a sociedade civil palestina durante os enterros. É uma forma de ressignificar o ato fúnebre e dizer: “a luta e o luto são do povo”. Essa é uma das razões pelas quais as autoridades israelenses demoram meses – às vezes anos – para devolver os cadáveres às famílias. Ao tentar negar aos familiares, amigos e todos que se comoveram com o assassinato de Shireen o direito ao luto, Israel busca, mais uma vez, apagar a dor da Palestina aos olhos e corações do mundo.
Michelle Ratto é bacharela em Relações Internacionais, especialista em Direito Internacional e doutoranda em Antropologia Social (UFRN). Foi observadora internacional de direitos humanos na Cisjordânia, em 2015.
Referências bibliográficas
BUTLER, Judith. “Vida precária, vida passível de luto”. Quadros de Guerra: quando a via é passiva de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
COULDRY, Nick; MEJIAS, Ulisses. The cost of connections: How data is colonizing human life and appropriating it for capitalismo. Standford University Press, 2019.
MBEMBE, Achille. “Necropoder e ocupação colonial na modernidade tardia”. In: Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 2018.
PAPPÉ, Ilan. A limpeza Étnica da Palestina. São Paulo: Sundermann, 2016.
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
WEIZMAN, Eyal. “The politics of verticality”. InOpenDemocracy25 abr. 2002. Disponível em: http://tinyurl.com/yclqxca. Acesso em 02 de março de 2022.

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