Com uma narrativa contundente, o filme Notas sobre um Desterro retrata a memória silenciada de uma Palestina sob ocupação. O documentário estreia no Festival Olhar de Cinema, em Curitiba.
Katia Michelle
Em 2018, dois brasileiros atravessaram as estradas da Cisjordânia com equipamentos de filmagem e uma pergunta: como sobrevivem os que resistem? Foram recebidos por uma família brasileira-palestina no vilarejo de Kobar. A intenção era singela — registrar a vida cotidiana em uma terra ocupada. O que nasceu como uma narrativa sobre convivência, transformou-se, sete anos depois, em um projeto maior e urgente: o inédito documentário Notas Sobre um Desterro.
O filme, que estreia no dia 14 de junho no Festival Olhar de Cinema, em Curitiba, parte de imagens registradas antes da escalada de violência em Gaza, mas se recompõe à luz do 7 de outubro de 2023. Dirigido por Gustavo Castro, curitibano criado entre debates estudantis e viagens pela América Latina, o documentário se propõe a descortinar o passado e expor fragmentos de uma história que insiste em ser apagada.
Notas sobre um Desterro é um filme em primeira pessoa, com alcance coletivo. Entrelaça registros de 2018, imagens históricas de arquivos e vídeos atuais compartilhados nas redes sociais pelas próprias vítimas do genocídio em Gaza. Não há narração didática nem vocabulário técnico — a realidade mostrada é bruta e o olhar é sensível. O resultado é um ensaio visual que se recusa a ceder ao esquecimento.
“A experiência me permitiu testemunhar o que significa viver sob um regime colonialista de apartheid, que segrega e oprime o povo palestino”, diz Castro.
Sobre a produção
A viagem à Palestina aconteceu em 2018. Durante 30 dias, Castro e Rafael de Oliveira, fotógrafo e um dos produtores do filme, cruzaram inúmeros postos de controle militar, lá chamados de checkpoints, e viram de perto a humilhação e a violência a que a população palestina é submetida diariamente.
O projeto amadureceu nos anos seguintes com a entrada da produtora e roteirista Juliana Sanson e do montador e também roteirista Ticiano Monteiro. O filme, então, foi estruturado na forma de ensaio em primeira pessoa e ganhou profundidade com uma intensa pesquisa histórica e iconográfica. “O filme não é apenas sobre a Palestina; é sobre como o mundo vem se posicionando diante da catástrofe palestina há quase oito décadas”, diz Juliana.
Para o diretor, esse é um dos poucos filmes brasileiros sobre a Palestina e nasce da urgência de um posicionamento global sobre o que está acontecendo hoje em Gaza. “O mundo não pode ser cúmplice e nós não podemos deixar de nos posicionar diante da barbárie. A nossa forma de fazer isso é por meio do cinema”, diz.
Notas sobre um Desterro é, acima de tudo, um filme que recusa a neutralidade. Onde a diplomacia fracassa e a imprensa hesita, ele avança — câmera em punho, sem pedir licença. Depois da exibição no Olhar de Cinema, o documentário partirá para o circuito de festivais nacionais e internacionais.
Serviço:
O filme Notas sobre um Desterro será exibido no dia 14 de junho, às 13h30 em duas salas no Cine Passeio. No dia 18 de junho, a exibição acontecerá às 18h45. Mais informações no site do Festival Olhar de Cinema.
Notas sobre um Desterro
Sinopse
As filmagens do encontro com uma família brasileira-palestina na Cisjordânia de 2018 são revisitadas após 7 de outubro de 2023. O que era para ser um filme sobre as possibilidades de coexistência em uma terra ocupada, se transforma em uma brutal reflexão sobre colonização, apartheid, genocídio e a recente proliferação de imagens de guerra, produzidas pelas próprias vítimas de um massacre que se repete no curso do tempo.
Sobre o diretor
Gustavo Castro é diretor, diretor de fotografia e editor. Realizou mais de 30 documentários sobre temas sociais na América do Sul, Amazônia e Oriente Médio. Em 2025, lança seu primeiro longa como diretor: Notas sobre um Desterro, um filme-ensaio sobre a questão Palestina.
Ficha Técnica
Direção: Gustavo Castro
Roteiro: Juliana Sanson, Ticiano Monteiro e Gustavo Castro
Produção: Juliana Sanson e Rafael Oliveira
Empresa Produtora: Fabulário Filmes
Montagem: Ticiano Monteiro
Direção de Fotografia: Gustavo Castro
Design de som: UG Audio / Ulisses Galetto
Música original: Grace Torres
Animações e design: Raro de Oliveira
Elenco: Gustavo Castro, Mohammad Abdel Latif, Ruayda Rabah, Khaled Mohammad Hussein Abdel Latif, Jamile Abdel Latif, Jihad Mohamad Habas, Ali Abur, Nicola Shaheen, Husney Wasef, Ualid Rabah
ENTREVISTA UALID HABAH
Ualid Rabah é presidente da FEPAL – Federação Árabe Palestina do Brasil.
Filho de pais palestinos que imigraram para o Brasil nos anos 1960, ele nasceu em Toledo (PR) e viveu por 15 anos em Maringá, onde se formou e atuou como jornalista por mais de uma década. Durante sua trajetória, envolveu-se ativamente em movimentos estudantis e sindicais, fortalecendo seu compromisso com causas sociais e políticas.
Reside há 21 anos em Curitiba. Em 2018, sua família acolheu a equipe do documentário Notas Sobre um Desterro, reforçando seu vínculo com a memória e a resistência palestina no Brasil.
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Qual foi a sua participação e da sua família no filme Notas sobre um Desterro? Que memórias ou momentos desse processo mais o marcaram?
Curiosamente, arriscaria dizer que o filme decorre de uma relação pessoal e de trabalho minha com Rafael Martins Oliveira, um dos implicados no projeto que resulta em Notas sobre um Desterro. Sou militante do movimento nacional palestino no Brasil desde ao menos 1984 e o assunto sempre esteve presente em meu cotidiano. Claro que isso chega, de uma forma ou outra, às pessoas com as quais convivo, embora não igualmente para todas.
Aí começa, então, a diferença: Rafael tem visão de mundo que o leva à defesa dos direitos humanos, porta de entrada para querer conhecer mais sobre questões candentes no mundo, a Palestina dentre elas. É disso que resulta uma viagem dele à Palestina, na condição de fotógrafo, acompanhado de outro profissional de comunicação, Leandro Taques. Dela resulta um impressionante registro fotográfico, que virou exposição pública em vários lugares do Brasil, com sucesso por onde passou.
E foi nesta viagem que tiveram contato com nossa família em Kobar, na Palestina ocupada, na região de Ramallah (Cisjordânia), nossa cidade ancestral por parte de pai. Ruayda, uma de minhas irmãs, havia retornado à Palestina em 1999 e passou a residir em Kobar no início dos anos 2000. Ela que os recebeu na condição de principal anfitriã.
A mesma coisa anos depois, já com Rafael acompanhado de Gustavo, o diretor de Notas sobre um Desterro. E tudo andou para chegar até os dias de hoje e com o sucesso que aguarda este filme.
Ao final das contas, a gente nunca imagina que de relações cotidianas, muito comuns a todas as pessoas, podem surgir iniciativas que podem impactar muitas milhares de pessoas, talvez milhões. Acho que isso é o que mais impressiona e marca.
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A hospitalidade oferecida pela sua família foi fundamental para a realização do filme, criando um espaço de escuta e partilha. Na sua visão, como esse tipo de ação contribui para mostrar e preservar a memória coletiva palestina e a fortalecer a identidade de um povo que enfrenta constantes tentativas de silenciamento?
É importante registrar, primeiro de tudo, como dado humano fundamental e para além da luta nacional palestina por autodeterminação: a hospitalidade é um traço fundamental em nossas existências. A hospitalidade é uma das características apontadas como essenciais nos árabes, até dita em escolas. Lembro de ter aprendido que essa seria a principal característica dos árabes. Logo, a melhor recepção sempre acontece na Palestina, e não pela necessidade de mostrarmos ao mundo nossa causa. Aliás, a hospitalidade se dá apesar da nossa causa, que nos impõe dificuldades que, não raro, prejudicam nossas capacidades de recepção. Ainda assim, por tudo que ouço, somos distinguidos por este traço.
Só que a hospitalidade não é um mero receber bem, algo a que até hotéis estão obrigados. Na Palestina este é um traço cultural. Então o hóspede, o visitante da Palestina, é automaticamente imerso pelo anfitrião em todos os aspectos da vida, da colheita da azeitona às criações de cabras, de visitar os sítios arqueológicos mais importantes e antigos do mundo à visita a uma família beduína. Sem contar que terá contato com poesia e bordado, música e dança, a culinária, e das casas, não dos restaurantes. A culinária palestina chegou a ser considerada a melhor do mundo, veja só!
E é nesse processo automático, natural e involuntário, que o visitante da Palestina enxerga a ocupação e entende a luta palestina por libertação nacional. Andando a Palestina ele enxerga o regime de apartheid, a opressão, o roubo de terras, de água, os postos de controle militar e a brutalidade que os soldados israelenses praticam neles. O mais despretensioso dos turistas verá isso tudo sem que tenha ouvido uma só locução política ou histórica.
Claro que os mais esclarecidos verão com seus olhos tudo aquilo que leram, ouviram ou assistiram a respeito. É uma espécie de doutorado em campo. No caso concreto da construção de Notas sobre um Desterro, este parece ser o caso, com a diferença que virou filme, isto é, contará ao mundo sobre uma limpeza étnica cotidiana, sobre um genocídio televisionado. E isso tem impacto e peso na opinião público.
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O livro A Palestina é dos palestinos e o filme Notas sobre um Desterro parecem dialogar de forma muito profunda. Como o senhor vê essa conexão entre as duas obras na luta contra o apagamento histórico e cultural da Palestina?
As duas afirmam que a Palestina é habitada por seu povo originário milhares de anos antes de estrangeiros euro-judeus, inspirados por ideologia colonialista e racista, o sionismo, pisarem os pés na Palestina. Mas uma, A Palestina é dos palestinos, é a transcrição de manifestações em palestras havidas no Universidade Federal do Paraná, muito circunscritas ao momento genocidário vivido pelo povo palestino em Gaza desde 7 de outubro de 2023. Então nesta obra, neste livro, há algo como que resumo sistematizado das razões da atual fase do genocídio palestino, com datas precisas, nomes, fatos históricos e políticos e, claro, os dados do extermínio em curso, que visam demonstrar que a solução final buscada pelos estrangeiros sionistas é, proporcionalmente, o maior genocídio da histórica.
Notas sobre um Desterro exporá a mesma coisa, mas em linguagem que, ao meu ver, humaniza mais, pois mostra não números e dados históricos, mas, sim, as pessoas que a gente conta nesses dados estatísticos e históricos. São pessoas de carne e osso, seus sentimentos frente ao extermínio em curso, suas vidas acontecendo. Usando da inteligente colocação do cineasta palestino Imad Burnat (5 Câmeras Quebradas), em Notas sobre um Desterro as pessoas verão que ocupação não é apenas uma palavra.
A coincidência é que ambas acontecem no Brasil, com brasileiros falando, ainda que no meu caso haja descendência palestina. No Brasil há pouco originariamente brasileiro sobre a Palestina. Embora já haja mais do que antes, especialmente no campo acadêmicos, a maior parte do que temos é tradução de obras estrangeiras, seja na literatura, seja nas obras históricas e políticas a respeito do tema. No cinema então nem se fala: é mínimo, diria inexistente o que temos de produção nacional. Então temos que coisas produzidas no Brasil e por brasileiros é um dado novo a ser considerado.
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Sabemos que a arte tem um poder transformador. Qual o papel que o cinema e a literatura vêm desempenhando na resistência palestina e na construção de pontes com o público internacional?
Podemos dizer que a poesia, bem como a música e a dança, cumpre papeis importantes nas diásporas faz mais tempo. Mas a literatura, por exemplo, exigia tradução de autores palestinos, o que é mais recente. Neste aspecto vimos um crescimento exponencial de editoras brasileiras que lanças livros de palestinos em nosso país, os trazem para lançamentos e ventos literários. Inclusive foi assinado há poucas semanas, em São Paulo, acordo de cooperação entre a União Brasileira de Escritores e a União Geral de Escritores Palestinos, relação que aumentará os autores palestinos traduzidos para o mercado brasileiro e, o que é mais importante, levará obras brasileiras para o mercado literário palestino. E neste mesmo dia, inclusive, o presidente da União Geral de Escritores Palestinos entregou homenagem ao brasileiro Milton Hatoum, distinguido por sua obra e pela solidariedade à Palestina.
Já no cinema, embora também seja recente o alcance global de filmes e documentários palestinos, podemos dizer que impacta mais e a mais tempo no Brasil e no mundo. E aí temos um detalhe importante: o cinema chega a muito mais gente especialmente considerando que a produção palestina tem frequentado festivais internacionais, com amplo reconhecimento, premiações e público. Isso levou a diversas dessas produções serem cogitadas ao Óscar, agora, finalmente, vencido pelo documentário No Other Land.
Isso leva a que mais gente produza cinema palestino ou sobre a Palestina. É o caso agora com Notas sobre um Desterro. É importante destacar que filmes e documentários vão para as telas menores, como dos televisores das casas das famílias, por meio dos streamings, dos computadores e, claro, exibições em outras salas, os chamados cine-debates, como está acontecendo em todo o Brasil com No Other Land. E tenho certeza de que com Notas sobre um Desterro será a mesma coisa.
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Quais impactos concretos o senhor espera que o filme possa causar, tanto aqui no Brasil quanto no exterior, especialmente no que diz respeito à conscientização e solidariedade com a causa palestina?
Acredito que será grande. Penso que produtores brasileiros se verão motivados pelo exemplo pioneiro representado por Notas sobre um Desterro. Esse ineditismo animará dezenas, senão centenas, de brasileiros interessados em produzir sobre a Palestina, especialmente agora, diante do genocídio em curso em Gaza. Esse é um dado relevante.
E, claro, facilitará, pela linguagem massificante do cinema, a chegada da verdade sobre o que ocorre na Palestina a pessoas comuns, não ativistas, que não lidam cotidianamente com o tema. Não raro, essas pessoas só se servem de informação por meio dos veículos tradicionais – e hegemônicos – de comunicação, quase todos prometidos com a visão “ocidental” de mundo, logo, favoráveis ao extermínio palestino. O cinema é uma linguagem universal e encantadora. Pode-se bem informar pelo encantamento. Penso que será isso o que Notas sobre um Desterro dará ao público brasileiro.
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Na sua opinião, de que forma o Brasil — especialmente por meio da cultura e da educação — pode se envolver mais ativamente na defesa dos direitos do povo palestino?
O Brasil já é um país importante geopoliticamente, assim como economicamente. Lidera a América do Sul e Latina, bem como integra o BRICS. Sua literatura já ganha o mundo, o mesmo na sua produção televisiva. Isso tudo tem dado ao Brasil protagonismo na cena internacional, inclusive na Questão Palestina.
Mas creio que sua classe artística em geral, e a parte implicada no cinema, ainda está aquém do que o Brasil já projeta de soft power. Penso, portanto, que, com as últimas produções, o Brasil passa ocupar novo espaço também na produção cultural, a cinematográfica incluída. Em isso acontecendo, o tema da palestina ganha.
É que muito do que vemos como senso comum é ditado pelo mundo da cultura, que, por seu turno, controla parte do consenso no sistema educacional. Quando um tema ganha projeção pela cultura, como pelo cinema, todo o resto sofre reflexos. Já estamos vendo isso, na verdade, acontecer, embora a novidade, agora, é que talvez tenhamos uma produção brasileira desempenhando este papel.
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Para quem assiste a Notas sobre um Desterro e se sente comovido com a realidade apresentada, que caminhos concretos o senhor sugeriria para transformar essa emoção em ações de solidariedade?