Guatemala, (Prensa Latina) Doña Ernestina suplica, pede de coração para que se encontre sua filha, e põe contra seu rosto um cartaz com a foto de Lucecita para que na apareça na televisão e sequestradores lhe devolvam a sua menina querida. (PLRadio)
Quiçá muitos pensem que era muito tarde para andar em um país onde a insegurança mostra seu rosto diariamente, mas similares casos ocorrem a plena luz como diz o canal guatemalteco de televisão TN23, onde as histórias são veiculadas com boa dose de morbidez.
Desgraçadamente Lucecita não foi exceçãoem 2017. Integra a lista pelo menos 500 mulheres assassinadas ao acabar o ano, ao que se somam as gravidezes de meninas e adolescentes, a maioria por abuso sexual.
‘Reduzir a brecha desta violência é um dos maiores desafios da Guatemala’, confirmou em roda de imprensa a representante da ONU Mulheres no país, a colombiana Adriana Ordóñez, ao apresentar em 25 de novembro a campanha internacional Únete: ‘não deixar ninguém para trás’ para visibilizar este flagelo e mostrar avanços em 2030.
Em 2016 foram reportados 1,161 feminicidios, acima das cifras de 2014 e 2015, de 876 e 867 respectivamente, segundo dados oficiais.
Entre janeiro e outubro de 2017, o Ministério Público (MP) recebeu 10 963 denúncias por abuso sexual contra mulheres adultas, adolescentes e meninas, uma cifra próxima de 13 634 de todo o ano passado.
Ordoñez agregou que o Registro Nacional das Pessoas reportou que de janeiro a setembro 54 114 meninas e adolescentes de 10 a 19 anos ficaram grávidas, sendo 1 826 menores dentre 10 e 14 anos.
Para a servidora pública das Nações Unidas, a tendência de casos denunciados aumentou porque mais mulheres decidem romper o silêncio frente aos abusos apesar das pressões familiares e conjugais.
O Instituto Nacional de Ciências Forenses (Inacif) advertiu, por sua vez, que de 718 pericias genéticas praticados até setembro, 38% foi por abuso sexual e o 36% por violação continuada.
Das denúncias registradas pelo MP, as cifras mais altas correspondem a violência (91), violação (83), agressão sexual (75), ameaças (59) e maltrato infantil (55).
Fontes da Procuradoria de Direitos Humanos advertiram que o fenômeno preocupa não só pelas características de misoginia que apresenta mas também porque o número de vítimas tem mantido uma alta frequência desde 2013.
Em 2016, 65% das mortes violentas do sexo feminino cometeu-se com arma de fogo e 61% delas tinha entre 13 e 29 anos de idade.
O departamento da Guatemala registrou 48% de vítimas, seguido de Chiquimula, Retalhuleu, San Marcos e Petén, uma tendência que se mantém até hoje.
A diferença na Guatemala entre o assassinato de um homem e o de uma mulher é que às mulheres as fazem sofrer antes da morte, as violam, as mutilam, as golpeiam, argumenta a Fiscal General Thelma Aldana, que tem contribuído ao estabelecimento de uma rede especial de tribunais em todo o país para lidiar com casos de feminicidios.
O LONGO CAMINHO DA JUSTIÇA O fenômeno é muito complexo porque depende da denúncia para que seja visível, e ainda essa cultura demora em interiorizar-se em uma sociedade machista e que, por herança, destina à mulher os papéis mais servis.
Incide o longo trajeto da corrente de justiça que intervém em um processo de Violência Contra a Mulher, que vai desde relatar os fatos até a sentença penal.
Geralmente um caso pode ser estancado por meses e em alguns casos, por anos, ao ingressar à fila de espera que mantém o Organismo Judicial para atribuir uma audiência de ordem de captura, um julgado competente, e depois esperar a data para o debate oral e público.
Segundo as cifras da Promotoria da Infância e Adolescência do MP, até outubro, 180 casos por delitos relacionados com meninas e adolescentes, esperam uma audiência no Julgado de Turno de Primeira Instância Penal de Delitos de Feminicidio e outras Formas de Violência Contra a Mulher, Violência Sexual, Exploração e Tráfico de Pessoas.
Essas audiências unilaterais são, principalmente, para solicitar ordens de apreensão, de invasões, e citações a primeira declaração para pessoas envolvidas em alguma denúncia, segundo Norma Ramírez Andrade, promotora de seção anexa dessa unidade. Esse único órgão é o que atende todas as denúncias provenientes da região central (capital) e dos municípios do departamento do Guatemala.
O problema, de acordo com a fiscal, é que se em um dos processos transcorrem mais de três ou quatro meses, a vítima que denunciou tem que se apresentar novamente à promotoria a ratificar seu depoimento e repetir o procedimento.
Ramírez realçou que nos últimos 10 meses se realizaram 13 394 avaliações, das quais 83% são mulheres. Não obstante, a promotora realçou que pára todos os processos de violência contra meninas e adolescentes há somente quatro juizados, os que também atendem delitos de feminicidios.
Em um ano e meio que leva essa promotoria, têm conseguido 41 sentenças, das quais 93 por cento são condenatórias, enquanto têm 57 audiências assinaladas para a etapa intermediária.
Ao todo, 250 esperam confirmação e 77 expedientes encontram-se pendentes de atribuição de data. Existem casos em que o debate tem sido programado o fim do próximo ano, mas no pior dos casos, há atribuições de início de julgamento para setembro e novembro de 2019. As cifras são uma bofetada contra o Estado e seu papel como garantidor dos direitos das mulheres e meninas, acostumadas desde as primeiras idades a presenciar e suportar a violência doméstica como algo comum.
A Guatemala, como o resto dos países, teve até o 11 de dezembro para pôr na agenda pública a gravidade da problemática, cuja mudança passa também por instituições como a escola e a família.
Pese à burocracia judicial que impede mais avanços, há mães como Doña Ernestina que não se dão por vencidas e procuram nos meios de imprensa um pequeno espaço para visibilizar sua dor e condenação.
Mas a maior evidência de todas, que seguirá apesar do fim da campanha internacional, é um enorme número de 41 cruzes de madeira com fotos de meninas que morreram carbonizadas no Lar Seguro Virgem da Assunção, em março.
Violações, maus tratos suportaram as 41 meninas e 15 mais que sofreram queimaduras e sobreviveram à tragédia nesse centro sob supervisão estatal e supostamente destinado às proteger.
As chamadas ‘Meninas da Guatemala’ e muitas Lucecitas são cruzes no coração de um país que clama por justiça frente um Estado que aposta em desmemoria.
*Correspondente Chefa da Prensa Latina na Guatemala.