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quinta-feira, 3 outubro, 2024

Lei de Ajuste para migrantes continua sendo motivo de disputa entre Cuba e EUA

Noticias Aliadas
Adital

Daniel Vásquez

A Lei de Ajuste, que há meio século facilita a admissão de cubanos nos Estados Unidos como refugiados, para viverem e trabalharem legalmente, continua sendo um dos grandes motivos de censura de Havana contra Washington, na nova etapa das relações diplomáticas iniciada há um ano. E, em especial, a raiz da crise migratória que, desde novembro último, protagonizam milhares de moradores da ilha, na América Central.

O reinício das relações entre os países, após hostilidades desde a década de 1960, foi defendido pelo presidente democrata Barack Obama, como um modo de desmontar uma política que não deu os resultados esperados pela Casa Branca, para promover mudanças interna na ilha. Assim como uma aceitação de que a etapa da Guerra Fria terminou e que se requerem políticas mais eficazes para influir na ilha comunista e, por sua vez, reforçar a liderança de sua nação, na América Latina.

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Cubanos temem que o restabelecimento das relações entre Cuba e EUA acabe com a Lei de Ajuste.

Os discursos conciliadores de Obama e do presidente cubano, Raúl Castro, em dezembro de 2014, quando, surpreendentemente, tornaram pública a vontade de restabelecerem os vínculos diplomáticos, acionou o alarme de milhares de pessoas, que temem que a aproximação entre ambos os governos derrube o marco jurídico que permitiu que cidadãos cubanos possam entrar nos EUA desde 1966, reclamando a condição de refugiados do comunismo e, depois de um ano, podem solicitar a residência permanente.

Os dados oficiais dos EUA revelam a chegada de mais de 43 mil cubanos durante o ano fiscal 2014-2015 – 24.278 chegaram no ano fiscal anterior, outubro 2013-setembro 2014, o qual inclui não apenas quem recentemente saiu de Cuba, como também aqueles que estavam estabelecidos em outros países. Mas que ainda assim continuavam vendo a Florida como terreno familiar, espécie de terra prometida onde existem condições vantajosas para prosperarem em um meio cultural afim.

No ano passado, Havana redobrou suas reivindicações contra a Lei de Ajuste, o programa para acolher médicos cubanos, e o asilo para os cubanos que chegam a solo estadunidense, com o argumento de que essas políticas já não teriam sentido, quando ambos os países estão normalizando as relações. E, ao mesmo tempo, pediu o fim do embargo econômico, comercial e financeiro de mais de meio século, o qual o governo cubano culpa pelos fracassos econômicos internos.

Assim reiterou, em 29 de dezembro, Raúl Castro ante o parlamento cubano, quando declarou que “a política de ‘pés secos-pés molhados’, o Programa de Língua Estrangeira para profissionais médicos cubanos e a Lei de Ajuste Cubano continuam sendo o principal estímulo para a emigração irregular de Cuba para os Estados Unidos”. E destacou que “temos reiterado ao Governo dos Estados Unidos que, para normalizar a relação bilateral, o bloqueio deve ser retirado e o território que usurpa a Base Naval de Guantánamo deve ser devolvido”.

“Lei assassina”Ao longo de anos, a imprensa oficial cubana considerou que a Lei de Ajuste é uma “lei assassina” porque propicia saídas ilegais da ilha, e que a população arrisca a vida em alto mar a fim de chegar à Flórida. Mas, em 2015, a reivindicação foi redobrada, alegando que o êxodo de cubanos provoca instabilidade em países vizinhos, por onde atravessam os moradores da ilha, que até fim do ano passado voavam de Havana ao Equador e percorriam por terra cerca de 5 mil quilômetros para chegarem aos EUA.

Outros argumentos que, historicamente, Cuba declara contra a mencionada lei é que ela provoca um êxodo de força de trabalho qualificada, reivindicação que foi reforçada desde que estudos demográficos corroboraram uma tendência ao envelhecimento da ilha, baixa natalidade e estagnação do crescimento populacional. Analistas e imprensa oficial já expressaram seu alarme pelo impacto desta situação para o desenvolvimento econômico.

“Hoje, um cubano trabalha em média para o sustento de quatro ou cinco pessoas, e estima-se que essas cifras sejam duplicadas. Devemos nos habituar que funcionaremos, incluindo o âmbito do trabalho, com uma população de 60 anos e mais, em sua maioria”, explicou o sociólogo Antonio Aja, diretor do Centro de Estudos Demográficos, em recente entrevista à imprensa cubana, e alertou para a necessidade de desenvolver políticas públicas para enfrentar esse fenômeno.

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Segundo o governo cubano, a Lei de Ajuste fomenta saídas ilegais da ilha e põe em risco a vida da população em alto mar.

As imagens de milhares de cubanos encalhados na Costa Rica, desde meados de novembro, quando a Nicarágua os impediu de seguirem sua rota terrestre até os EUA, alegando uma ameaça para a sua segurança interna, mostram, em grande parte, rostos de homens e mulheres. Muitos deles declararam à imprensa terem formação técnica ou serem egressos universitários, e expressaram seu desejo de não retornarem a viver em sua pátria, explicando que, para empreender o êxodo, tiveram que vender todas as suas propriedades.

Os EUA reiteraram, ao longo dos últimos dois meses, que, por enquanto, não se analisa derrogar a Lei de Ajuste. No entanto, essas afirmações foram recebidas com certa incredulidade pela população, em Havana, na medida em que o restabelecimento das relações bilaterais provocou surpresa generalizada em nível mundial. Daí que cubanos entrevistados pelas Notícias Aliadas, que pediram para manterem suas identidades em sigilo, confessaram sua certeza de que ambos os governos já têm vias de entendimento, que podem trazer outras surpresas.

“Durante décadas, eu participei de grandes marchas populares na Praça da Revolução e no Escritório de Interesses de Washington, em Cuba, contra as políticas dos Estados Unidos para Cuba, no entanto, em 2014, Raúl Castro não me consultou, de nenhuma maneir,a sobre restabelecer relações com o inimigo”, explica Luisa, moradora de Havana, de 70 anos, para fundamentar sua opinião de que os presidentes de ambos os países optaram em entrarem em acordo e, depois, informarem publicamente suas decisões. “Agora, espero qualquer outra surpresa”, afirma.

Por outro lado, o estouro da crise em novembro, quando o governo do presidente Daniel Ortega, na Nicarágua, aliado de Havana, repeliu pela força a entrada de cubanos através da fronteira, seguido pelo anúncio do Equador de que restabelecia o requisito de visto para os cubanos, alimentaram os rumores, em Cuba, de que o governo da ilha estaria pressionando para que o incidente de compatriotas presos, na América Central, servisse para apontar os EUA como o grande responsável pela crise.

Protestos em Havana

A imprensa oficial cubana demorou dias para reagir e dar conta dos incidentes. A insatisfação pela retomada repentina dos requisitos de visto para viajar ao Equador motivou que cubanos, que já haviam comprado sua passagem para Quito, se concentrassem, no fim de novembro, em frente à embaixada diplomática, em Havana, para expressarem sua insatisfação contra o governo equatoriano e contra o deles próprio, reclamando, com gritos de liberdade, apesar da presença de tropas e câmeras da polícia, protestos incomuns na ilha.

“Eu vi tudo”, afirma Marisa, moradora de Havana, que acompanhou seu filho ao consulado equatoriano, quando, surpreendentemente, foi restabelecido o requisito de visto para os cubanos. “O povo protestou sem medo e exigiu que os funcionários equatorianos dessem explicações”.

O tema do êxodo migratório foi uma constante em Cuba, desde a chegada de Fidel Castro ao poder, em 1959. Durante décadas, o desejo dos cubanos de seguirem para o território vizinho foi interpretado como a máxima expressão de desacordo com o projeto socialista. Quem partia reclamava para si a condição de exilado e, em geral, tinha que suportar tortuosos trâmites ou caminhar ilegalmente, mas, agora, o êxodo do século XXI traz um forte descontentamento econômico.

pragmatismopoliticoO êxodo até os EUA expõe, de modo concentrado, as contradições interna da Ilha. O governo de Raúl Castro promoveu reformas econômicas, como propiciar o trabalho por conta própria, oferecer terras em usufruto para os camponeses, e a abertura de negócios privados de hospedagem, transporte e gastronomia. No entanto, estas políticas não prosperaram tão rápido, a ponto de motivarem esperanças de jovens e profissionais para esperarem tempos de prosperidade. Mas, por outro lado, a aprovação do próprio governo à chegada de turistas estadunidenses com dólares alimenta tacitamente, no imaginário, a imagem de que o progresso local segue imbricado aos vínculos com o vizinho nortista.

O certo é que o fluxo de cubanos até os EUA tem uma história que remonta ao século XIX e gravita sobre a ilha, suas políticas e relações diplomáticas. Um eventual fim da Lei de Ajuste cubano supõe uma mudança de cenário, mas não o fim dos estreitos vínculos migratórios com os EUA, onde existe uma comunidade de origem cubana estimada em 2 milhões de pessoas.

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Organização Não Governamental sem fins lucrativos que produz e difunde informação e análises sobre a realidade latino-americana e caribenha com enfoque de direitos

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