“Jesus Cristo umpuana Yurupari – Jesus expulsou os demônios”.(Pequeno Catecismo Português e Nheengatú. Manaus. 1944)
Jurupari não é o diabo. Mas a Unidos da Tijuca espalhou que é. Com o enredo sobre o povo do guaraná, o carnavalesco Jack Vasconcelos, bem intencionado, debateu a demarcação das terras e a resistência indígena, o que foi muito bom. Mas ao seguir o catecismo, afrontou as crenças ameríndias, quando exibiu Jurupari como “a força do mal, que vive na escuridão possuído por energias malignas semeadoras do ódio” e fez desfilar na Avenida o carro “A maldade de Jurupari avança sobre a floresta”.
Exu também não é o diabo, uma invenção do colonizador que foi rejeitada pela Grande Rio, campeã do carnaval carioca. O seu samba-enredo Sete Chaves de Exú desconstruiu a imagem racista e preconceituosa. Cantando e sambando, combateu a demonização do candomblé, da umbanda e das macumbas, que está internalizada em corações e mentes e que incitam agressões físicas, ameaças a terreiros, pichações em templos e propaganda do ódio nas redes sociais contra as religiões afro-brasileiras.
Essa aula no sambódromo sobre a intolerância religiosa foi possível porque os carnavalescos da Grande Rio tiveram o cuidado de escutar, entre outros, dois Luízes que entendem do riscado: o Simas e o Rufino, citados na bibliografia por eles consultada. Dessa forma, as sete chaves abriram o conhecimento sobre o astucioso e brincalhão Exu, a energia mais próxima do ser humano. Assim, o orixá da comunicação, abriu caminho para a escola campeã que desfila outra vez neste domingo, 1º de maio, ao nascer do sol.
– Lá na encruza, a esperança acendeu. Firmei o ponto, grande rio sou eu.
Já a Unidos da Tïjuca, com o “samba do catequista doido”, misturou tudo e classificou os atuais invasores de terras indígenas como “filhos-demônios de pele clara de Yurupari”. Só que o diabo é cristão, mas Jurupari não – como escreveu a propósito de Exu o teólogo e doutor em Ciência da Religião, Hermes C. Fernandes. O enredo seria outro se ouvissem os indígenas do Rio Negro, especialmente Edilson Martins Melgueiro, que pertence justamente ao clã do Jurupari e é o mais recente doutor indígena na praça.
Dabacuri epistemológico
Edilson, falante de Nheengatu como primeira língua, se doutorou nessa sexta (29) em linguística na Universidade de Brasília (UnB) e nos ofereceu um dabacuri epistemológico com sua tese O Nheengatu de Stradelli aos dias atuais, à semelhança da oferenda do ebó em forma de tese de Luiz Rufino sobre Exu e a pedagogia das encruzilhadas defendida há cinco anos na UERJ. Religiões indígenas e de matriz africana tiveram satanizadas igualmente suas divindades.
O ritual do dabacuri celebra a fartura e a união entre os povos, com um troca-troca de saberes, cantos, danças, narrativas, alimentos e bebidas. Os saberes compartilhados por Edilson, situados no campo da documentação linguística e dos estudos lexicográficos, se centraram na atualização do dicionário de Nheengatu do conde italiano Ermano Stradelli publicado em 1929, que registrou aspectos culturais – culinária, rituais, usos medicinais de plantas, tabus, crenças, entre elas a narrativa mítica do Jurupari.
Orientado pela doutora Ana Suelly, Edilson, em plena pandemia que o prostrou com o coronavírus, criou um banco de dados para elaborar um dicionário com os verbetes atualizados, acrescentando em cada um deles, além da tradução, informações gramaticais para uso das escolas do Rio Negro (e também das escolas de samba, como gargalharia Exu, o gozador).
A função de dicionários, especialmente os bilingues, é fixar sentidos. Em quase todos, Jurupari é apresentado como o demônio, o espírito do mau. Stradelli, porém, ouviu o intelectual indígena Maximiano José Roberto, cuja narrativa mítica apresenta a versão original, na qual Jurupari é herói cultural, legislador, criador de normas e usos transmitidos oralmente e uma das figuras míticas mais representativas das grandes culturas ameríndias.
O nosso Jurupari
Portanto, essa representação indígena contradiz os missionários que desde o período colonial converteram Jurupari no demônio e difundiram tal imagem através da catequese. Os frades franciscanos do Vaupés, frei Coppi e Matheus, chegaram a fechar mulheres numa capela, em 1883, e cuspiram na máscara de Jurupari para condenar o que chamavam de “falsa religião”. Os índios expulsaram os dois frades que levaram a máscara para a Itália, hoje em exibição no Museu Etnográfico Pigorini, em Roma.
O bispo do Amazonas, D. Frederico Costa, em Carta Pastoral a seus amados diocesanos” (1909) reconheceu o erro da Igreja. Mesmo assim, o Catecismo das Missões Salesianas (1944) insistiu em traduzir para o Nheengatu “demônio” como Jurupari (pergunta 35, pg. 8). Muita gente, inclusive indígenas convertidos, encasquetaram na cabeça que Jurupari é mesmo o capiroto. Em sua sinopse, a Unidos da Tijuca confirma: “Yurupari jamais triunfará. Ele não vai vencer. Ele nunca irá nos exterminar”.
Ao mesmo tempo em que proibiam o uso das línguas indígenas, os missionários se dirigiam nelas a falantes monolíngues para detonar suas culturas e religiões. Catecismos, dicionários e escolas, incluindo as de samba, são usados para doutrinação. Felizmente, oito das 12 escolas de samba do Rio, levaram para a avenida o protagonismo negro, com críticas ao racismo. Mas o protagonismo indígena ficou de fora.
Jurupari, aqui destacado em função do carnaval, não constitui o foco central da tese de Edilson, que explica:
– “Embora Jurupari, para os Baniwa, seja o nome de um dos 23 clãs, para nós se trata realmente de entidade ancestral, que legislou regras sobre tabus e costumes, para nos orientar espiritualmente e com respeito ao mundo material. Outros aspectos mencionados por Stradelli pertencem mais à cultura amazônica em geral e diferem de como nós, Baniwa, concebemos o nosso Jurupari”.
Velhos troncos
O mais novo doutor indígena em linguística pela UnB cita Stradelli, para quem os usos, leis e preceitos ensinados por Jurupari e conservados pela tradição ainda hoje são professados e escrupulosamente observados por numerosos indígenas do Amazonas das mais diversas proveniências, e em todo o caso largamente influíram e, pode-se afirmar, influem ainda em muitos lugares do nosso interior sobre os usos e costumes atuais.
– O desconhecimento – escreve Stradelli – tem decerto produzido mais mal-entendidos, enganos e atritos do que geralmente se pensa. Ao mesmo tempo, porém, tem permitido, como tenho tido mais de uma vez ocasião de observar pessoalmente que, ao lado das leis e costumes trazidos pelo cristianismo e pela civilização europeia, subsistam ainda uns tantos usos e costumes, que, embora mais ou menos conscientemente praticados, indicam quão forte é a tradição indígena.
A tese de Edilson é um “tesão” de 526 páginas. Ele consultou os “velhos troncos”, entre elas sua mãe, dona Maria do Carmo, que assistiu a defesa lá do Alto Rio Negro numa sala virtual. Desta forma, atualizou 8.900 verbetes, o que foi possível fazer porque como falante de Nheengatu tem o controle da língua e pôde assim construir um discurso metalinguístico sobre ela. Trata-se de uma contribuição original para a educação indígena, para a linguística e para o Brasil e – gargalharia outra vez Exu – para o samba.
A boa intenção do carnavalesco da Unidos da Tijuca, que obteve o 9º lugar e ficou de fora do desfile das campeãs, não foi suficiente para romper com a blindagem cognitiva que nos aterroriza desde a infância, nos cega e nos impede de acessar os saberes ancestrais apagados pelo fundamentalismo e pelo teocentrismo do colonizador, como bem observou Luiz Rufino sobre as religiões de matriz africana.
Jurupari e Exu – o mesmo combate.
P.S.1 – Edilson Martins Melgueiro: O Nheengatú de Stradelli aos dias atuais: uma contribuição aos estudos lexicais de línguas Tupi-Guarani em perspectiva diacrônica”. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Linguística. Brasília. UnB. 2022. 526 pgs.
Banca: Ana Suelly Arruda Câmara Cabral (orientadora), Jorge Domingues Lopes (coorientador), Helena da Silva Guerra Vicente (UnB), Eliete de Jesus Bararuá Solano (UEPA), José Ribamar Bessa Freire (UNIRIO-UERJ), Gersem José dos Santos Luciano (UFAM convidado de honra), Thiago Pires (UnB suplente)
P.S. 2 – Informantes e colaboradores da tese: Francisco Cirineu Martins (Baniwa), Melvino Fontes Olimpio (Baniwa) e Zilma Henrique (Baré), além dos “velhos troncos” cujas entrevistas foram gravadas: Maria do Carmo Martins, Francisco Fontes, Germano Malaquias e já falecidos, mas que permanecem vivos nesta tese: dona Josefa Baré e seu Pedro.
Referências bibliográficas:
Andrea Palladino: Ermanno Stradelli, il figlio del serpente incantato. Documentário (52 min). Produção Executiva Astrid Lima. Società Geografica italiana. 2006
Héctor H. Orjuela: Yurupary Mito, Leyenda y Epopeia del Vaupés . Bogotá. Instituto Caro y Cuervo. 1983.