Paulo Moreira Leite*
A mídia do pensamento único acaba de enfrentar um vexame antológico, que expõe fraquezas vergonhosas imensas num momento delicado como o atual. Estou falando de um certo Jonathan Diniz, aquele brasileiro preso em Caracas e libertado após dez dias em circunstâncias até agora não esclarecidas.
Incapaz de reconhecer quem se tratava e o que pretendia, nossa mídia fez o papel semelhante ao da inesquecível Kate Lyra no programa de humor Praça da Alegria, duas décadas atrás. Atriz norte-americana, ela encarnava uma turista incapaz de reconhecer as verdadeiras intenções dos cidadãos que a abordavam na rua, com ofertas maliciosas e muito duplo sentido. “Brasileiro é tão bonzinho…”, dizia ela.
Martirizado como vítima do bolivarianismo chavista, a passagem de Jonathan Diniz por um presídio do serviço de inteligência do governo da Venezuela foi acompanhada com um zelo e atenção que nossos jornais e revistas jamais dispensaram — por exemplo — às vítimas de barbaridade da PM de Geraldo Alckmin ou de Pezão.
Enquanto ficou preso, Jonathan foi assunto de reportagens diárias nos telejornais da Globo, naquele esforço típico de quem faz o aquecimento para uma grande crise que deverá ter um grande desfecho. Depois de solto, chegou a dar uma entrevista por email ao Estado de S. Paulo na qual lhe perguntaram se havia sido torturado. “Tortura depende do ponto de vista,” respondeu, firmando uma jurisprudência originalíssima para uma matéria estudada seriamente há décadas, na qual só são conhecidos dois pontos de vista — o da vítima e o do carrasco, o resto sendo puro embuste.
Apresentando-se como titular de uma ONG de nome em inglês que só se podia enxergar em sua página no Facebook, beneficiando crianças miseráveis que ninguém conhece, exibindo um altruísmo que não combina com solidariedade real mas sugere conhecidos contos-do-vigário, nosso personagem tanto podia ser um agente da CIA se fazendo passar por maluco ou vice-versa. Ou quem sabe possuir uma terceira identidade que será revelada num próximo vídeo gravado em local desconhecido dos Estados Unidos. Na última versão, o benfeitor declara-se “médium” e diz que por essa razão chegou a ser internado seis vezes.
Jonathan também informa, em vídeo, que até sua prisão foi uma farsa, uma ação premeditada. O objetivo era reforçar os cofres de sua campanha a favor das “crianças pobres da Venezuela”.
Essa hipótese tem credibilidade zero junto a interlocutores ligados ao chavismo que consultei em Caracas. Eles estão convencidos de que Jonathan chegou à Venezuela — onde um visto de turista para um cidadão brasileiro tem validade por 90 dias — como braço de organizações internacionais que tentam atuar no país sob a bandeira de ações humanitárias e assim instituir bases operacionais no território venezuelano. O período de atuação, exatamente quando a oposição tentava impedir a convocação da Assembléia Constituinte, também era o ideal para isso, pois deixou o país sob a atenção direta da imprensa mundial.
O possível disfarce humanitário justifica o discurso permanente em defesa de crianças carentes e o cuidado de evitar toda e qualquer declaração que pudesse definir uma ligação com os adversários internos e externos do governo Maduro.
Ainda que essa hipótese não tenha sido demonstrada, é certo que a Venezuela de hoje é alvo direto de aventureiros, agentes provocadores, sabotadores em busca de um trocado, espiões profissionais — e até ativistas bem intencionados, engajados nos dois lados do confronto.
Este é o cenário comum a toda nação que possui imensas riquezas naturais e enfrenta uma crise de bom tamanho, como se viu na Espanha dos anos 30, em Cuba nos anos 50, no Chile nos 70 e assim por diante.
Atos de sabotagem econômica produzidos cotidianamente pela manipulação do cambio paralelo ajudam a entender a falta de remédios nas farmácias e até de alimentos nos supermercados. Mas são apresentados pela mídia com naturalidade, como se fossem a consequência inevitável, a merecida punição em função de uma política econômica afastada das regras brutas do mercado e do estado mínimo.
Para fazer uma boa cobertura, bastaria admitir que os venezuelanos têm o direito de buscar um caminho diferente daquele seguido por seus vizinhos para prestar atenção ao que acontece por lá, desconfiar de versões bonitinhas demais, convenientes além da conta.
Mas não. Muito mais fácil, mais confortável, é enxergar o mundo com o olhar colonizado e os reflexos automáticos que apenas procuram confirmar os próprios preconceitos, atendendo necessidades e conveniências.
Este é o ponto essencial. O episódio mostrou o alinhamento ideológico de quem já perdeu a capacidade de enxergar fatos que possam contrariar sua visão de mundo e sua propaganda, preferindo descrever a realidade de acordo com desejos e preconceitos, sem procurar entender como ela é.
Isso se aplica, sabemos todos, à cobertura da Lava Jato e, em particular, às escandalosas denúncias contra Luiz Inácio Lula da Silva, que envolvem um triplex que comprovadamente não lhe pertence.
Mas também se manifesta na cobertura internacional, com um alinhamento absoluto em relação a diplomacia norte-americana, em particular quando se trata de participar do massacre contra o governo de Nicolás Maduro, hoje o inimigo principal de Washington, uma das ultimas peças no tabuleiro de dominó jogado por aliados e cafetões dos EUA no Continente.
Sabemos agora que o caso é uma farsa. Mas teria sido suficiente um pequeno esforço de honestidade intelectual para reconhecer uma história fabricada, como a Escola Base de triste memória.
O saldo, inevitável, é fazer um previsível papel de bobo, como alertei aqui neste espaço, num vídeo que começou a circular na internet assim que surgiram os risíveis detalhes da história. Quem já assistiu sabe, há tempos, que estava diante de um caso ridículo, digno da personagem de Kate Lyra.
* Jornalista e escritor Paulo Moreira Leite é diretor do 247 em Brasília