© AP Photo / Natacha Pisarenko (Sputnik)
Por Javier Tolcachier, de Córdoba-ARG, no site do Centro de Estudos de Mídia Barão de Itararé:
“Em consequência, o papel da imprensa mudou radicalmente. Já não consiste essencialmente em debater, mas interpretar e contribuir a apontar as decisões do governo com os argumentos que este pode aportar” – Max Ruchner, Neue Zürcher Zeitung, outubro de 1933
A frase da epígrafe não foi extraída do Decreto 117/2024, com a qual Milei promoveu intervenção nos meios públicos da Argentina. A sentença pertence ao comentarista de um jornal suíço que explica com essas palavras a Lei Alemã para Editores, sancionada alguns meses depois de que Adolf Hitler conquistara, em março de 1933, a cessão do poder legislativo e a quebra da separação dos poderes através da Lei de Plenos Poderes. Coincidências históricas fortuitas ou habitual proceder autocrático?
O decreto atual, publicado no Boletim Oficial da República Argentina, ordena a intervenção das sociedades do Estado Educ.Ar, Télam, Radio y Televisión Argentina (RTA) e Conteúdos Públicos pelo período de um ano, com possibilidade de ser ampliado.
As novas autoridades têm poder para modificar a estrutura orgânica e funcional, os contratos de funcionários, bem como revisar a administração de compras e contratações. A disposição determina enxugar a estrutura (“racionalizar”, no jargão neoliberal), ou seja, realizar demissões, anular programas e projetos e até mesmo fechar algumas instalações, tornando mais atraente a venda a possíveis investidores.
O grupo hegemônico Clarín, que já ostenta uma posição dominante na televisão aberta e a cabo, rádio e imprensa escrita, ademais de empreendimentos em telefonia móvel, fixa e conectividade de Internet, figura, como não poderia ser diferente, como um dos principais interessados no negócio.
Para além do óbvio viés mercantil privatista, a medida tem como objetivo disciplinar jornalistas da esfera pública, sob ameaça explícita de perderem sua fonte de trabalho. O rótulo de “nhoque” (ver nota de rodapé), “casta”, “jornalista militante” e inclusive “golpista” são alguns dos estigmas utilizados para calar qualquer voz crítica à política do governo, por meio de censura explícita ou autocensura.
O ataque à liberdade de expressão e à pluralidade informativa na Argentina não se restringe a esta ofensiva contra os meios de comunicação públicos e seus trabalhadores e trabalhadoras. O desprezo pela democracia comunicacional por parte do governo atual é total e se desenvolve em várias frentes.
A desfinanciação
Uma das primeiras medidas da administração Milei foi proclamar a eliminação total do orçamento oficial em meios de comunicação por um ano. O corte, anunciado como parte da política de austeridade não afeta de forma igual a meios privados e a meios comunitários. Ainda que a publicidade oficial investida por governos anteriores era dirigida majoritariamente à esfera privada e aos meios digitais, a dependência desses recursos por parte de veículos de comunicação que não atuam apenas visando lucro é muito maior.
O presidente do Foro Argentino de Rádios Comunitárias (Farco), Juan Delú, comentou a respeito: “Com este argumento de que não há dinheiro no Estado, haverão grupos que seguirão sendo financiados de outra maneira. Os que vão cair são outros setores. O efeito será a monopolização da informação no discurso público”.
É um fato conhecido o modo com o qual determinados jornalistas e meios favoráveis ao poder, para além de publicidade paga por grandes empresas, recebem obscuras contribuições, sob a justificativa de suposta realização de consultorias ou assessorias, ou simplesmente em “sobres” (jargão argentino que significa quantia de dinheiro, uma espécie de ‘jabá’) que “ninguém” envia, controla ou recebe, ao menos formalmente.
Ao mesmo tempo, a chamada “Lei Ônibus” incorporou em seu articulado móvel – determinado por negociação de votos no Congresso – a supressão do Fundo de Fomento Concursável para Meios de Comunicação Audiovisual (FOMECA), que promove projetos de comunicação populares, comunitários, cooperativos, associativos, rurais e de povos originários, representando uma pedra angular em seu financiamento.
A intenção de cercear a pluralidade informativa ficou evidente e manifesta pelo fato de que este fundo, criado a partir da chamada “Lei de Meios” (Lei 26.522 de Serviços de Comunicação Audiovisual), sancionada em 2009 durante o mandato presidencial de Cristina Fernández de Kirchner, é sustentado por um imposto pago por todos os meios de comunicação. Ou seja, não representa nenhum tipo de oneração extra ao tesouro nacional.
O calhamaço da Lei “Bases y puntos de partida para la Libertad de los Argentinos”, apelidada “Lei Ônibus” por sua extensão e pelo amplo leque de matérias sobre as quais pretende legislar – várias delas chocando frontalmente com a Constituição Nacional da Argentina – também expressa a intenção de eliminar a Defensoria do Público de Serviços Audiovisuais, excluindo os artigos 19 e 20 da já mencionada Lei de Meios.
Em sua apresentação à Relatoria Especial para Liberdade de Expressão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), a Defensoria manifestou que “caso prospere esta proposta legislativa, implicará uma vulneração do princípio de não regressão em matéria de direitos humanos e, em especial, uma afetação aos direitos à liberdade de expressão das audiências”.
Enredar, desinformar e reprimir
Os veículos de propaganda e contrapropaganda preferidos do novo governo são as plataformas digitais, as mal chamadas “redes sociais”, que em realidade são propriedade de poderosos conglomerados econômicos transnacionais.
Neste campo, o governo tem contratado um grande número de operadores digitais (os famosos trolls), que atacam de maneira instantânea qualquer crítica dirigida a Milei e seus ministros, simulando serem ativistas libertários sob contas anônimas. Sem dúvida, esse expediente se sustenta pela contratação de aplicações e empresas de monitoramente sobre as publicações que se realizam nas plataformas.
Ademais de dominar o relato público, esta forma de controle persegue fins ainda mais funestos. Uma publicação no X (antigo Twitter) – e que foi logo apagada – da conta verificada da atual ministra de Segurança Pública, Patrícia Bullrich, afirmava que seriam investigadas as fontes dos ataques dirigidos ao presidente através daquela rede. O “tuíte” dizia que “com as forças armadas, se necessário for, entraremos em cada casa para verificar se há posse legal de qualquer tirpo de armas que possam atentar contra a República”. Um discurso tenebroso que revela, sem nenhum tipo de pudor, a direção mental e política de quem o escreve.
Longe de qualquer especulação interpretativa, o protocolo indicado pela ministra Bullrich escalou, na segunda sessão de debate da Lei Ônibus, em repessão aos jornalistas que tentavam cobrir a mobilização massiva no entorno do Congresso. O saldo foi de 50 feridos.
A comunicação governamental, ademais das coletivas de imprensa protagonizadas pelo porta-voz Manuel Adorni, acontece principalmente através da rede X sendo fortemente direcionada aos partidários de Milei, que enchem o governo de loas sempre que acionados, fortalecendo um efeito de “bolha” característico. Com suas mensagens através da rede hoje controlada pelo magnata sul-africano Elon Musk, Milei emula a conduta do ex-presidente e novamente candidato republicano nos Estados Unidos, Donald Trump, ou o recentemente reeleito em El Salvador, Nayib Bukele, todos reconhecidos defedensores do culto à democracia unipessoal, se é que isso existe.
Elon Musk é um dos principais interessados em comprar – obviamente por um preço conveniente, baixo e vil – a Arsat, empresa do Estado argentino que gerencia serviços de transmissão de dados, telefonia e televisão, garantidora da soberania comunicacional e do acesso à conectividade orientada à igualdade social.
Dessa forma, em meio a um panorama de confusão generalizada turbinada intencionalmente pelo atual governo “libertário”, um fator fica claro: no que diz respeito à comunicação, a liberdade não somente não avança, como a destrói.
Corolário ao fim da edição
Enquanto o cronista se esforçava em dar as últimas pinceladas nesta nota, uma sessão na Câmara de Deputados definia o retorno da Lei Ônibus à comissão, ou seja, à estaca zero, devido às divergências na aprovação das minutas do texto. Esse fato freou, por ora, a meia-sanção que o governo esperava obter para encaminhar o projeto ao Senado.
Enquanto tudo isso ocorria, o presidente argentino chorava no Muro das Lamentações, em Jerusalém. Resta saber se suas lágrimas têm relação com a oposição que suas políticas sofrem ou se provém de um real arrependimento por suas ações anteriores.
* Javier Tolcachier é investigador do Centro Mundial de Estudos Humanistas, comunicador na agência Pressenza e militante humanista.
Nota:
* O nhoque (gnocchi em italiano) é uma massa que tradicionalmente se consome nos lares argentinos sempre aos dias 29 de cada mês, já que é barata e apta aos últimos dias do mês, quando os salários das famílias já se esgotaram. Com este mote, faz-se referência aos empregados acomodados que aparecem uma vez no mês para ‘mostrar serviço’, sempre próximos à data do pagamento.