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sexta-feira, 26 julho, 2024

Instrumentalizada pela elite, a imprensa corporativa ameaça o interesse público

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REGULAMENTAÇÃO DA MÍDIA

Luís Humberto Rocha Carrijo*/Le Monde Diplomatique
A despeito de termos como certo que o ambiente cibernético propicia conteúdos falsos, ainda enxergamos ingenuamente a mídia corporativa como se ela funcionasse de maneira objetiva e plural. Nada mais equivocado.

As fake news não são uma invenção das redes sociais como a desinformação deliberada difundida pela imprensa corporativa não é uma novidade que surgiu como método para universalizar a ideologia neoliberal. Mas ambos – as redes sociais e o neoliberalismo – amplificaram sua ação e seus efeitos. A despeito de termos como certo que o ambiente cibernético propicia conteúdos falsos, ainda enxergamos ingenuamente a mídia corporativa como se ela funcionasse de maneira objetiva e plural. Nada mais equivocado.

Em países de democracia em transição, ainda sem uma tradição democrática consolidada – como se vê nos países nórdicos -, a imprensa nunca operou em prol do interesse público. Até o golpe militar, a indústria da notícia funcionava como máquina de propaganda da oligarquia. No regime militar, serviu aos generais. Os grupos de comunicação que dominam o mercado brasileiro (Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e as organizações Globo), não só apoiaram o golpe, como floresceram sob a sombra da ditadura.

Para obter benesses governamentais, proteção contra concorrência e condições favoráveis para a concentração de mercado, essas empresas colaboraram com o regime, acobertaram os crimes dos militares, as torturas, a censura, a repressão, os grupos de extermínio, e disseminaram a falsa imagem de um país triunfante, que prosperava. O crescimento econômico foi vendido para a sociedade como “milagre brasileiro”, fenômeno que beneficiou apenas a elite dominante. O bolo cresceu, mas nunca foi repartido.

Com o fim da Guerra Fria, a queda do Muro de Berlim e a dissolução da União Soviética, o neoliberalismo ganha força, uma ideologia capitalista que surge para contrapor o bem-sucedido sistema político de bem-estar social na Europa, onde os direitos sociais tinham primazia. O mundo ocidental precisava se submeter aos novos parâmetros de mercantilizar os direitos sociais e de privatizar a esfera pública por parte dos grandes grupos econômicos, em particular, do sistema financeiro.

As ditaduras na América Latina, apoiadas pela elite econômica, já não bastavam para o novo mercado que emergia. Para ajudar na transição de regime, a mídia foi reconfigurada como ferramenta de propaganda unívoca e passou a fustigar os governantes fardados com reportagens sobre corrupção e violação dos direitos humanos. Depois de desgastá-los, juntou-se – ainda que com alguma resistência -, aos movimentos sociais em prol da democracia.

Com a volta das eleições diretas, passaram a apoiar os políticos disponíveis mais flexíveis ou aqueles que poderiam abraçar por inteiro o neoliberalismo. Foi assim com Fernando Collor de Mello, que sofreu impeachment por corrupção, com Fernando Henrique Cardoso, que aprofundou as desigualdades sociais – que já existiam no regime militar -, e iniciou uma minirreforma de Estado, desvalorizando o serviço público, congelando o salário do funcionalismo federal por dez anos, e vendendo estatais lucrativas a preço de banana com subsídios do Estado via Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). A Vale do Rio Doce é um exemplo. Foi assim também com José Serra e Aécio Neves, tucanos envolvidos até o pescoço em esquemas “subterrâneos”, acusados pelo Ministério Público de corrupção em seus estados de domicílio eleitoral.

Foi assim com Michel Temer, que assumiu o governo depois do golpe parlamentar contra Dilma Rousseff, com o compromisso de retomar as reformas neoliberais iniciadas e interrompidas no governo FHC. Conseguiu num prazo veloz emplacar o Teto dos Gastos, que dificulta o reajuste salarial para o funcionalismo e trava investimentos em infraestrutura e no serviço público, e a reforma trabalhista, que tirou direitos sociais dos trabalhadores e precarizou as relações trabalhistas. Ao contrário do que fora prometido e difundido pela imprensa tradicional, não houve a tão propagandeada criação de empregos e a média salarial do brasileiro despencou. Temer só não conseguiu levar adiante a reforma da Previdência porque fora pego num redemoinho de acusações de liderar um esquema de corrupção. Mas continua sendo tratado como estadista pelos barões da imprensa por seus serviços prestados em prol do neoliberalismo.

 

Bolsonarismo

E recentemente com Jair Bolsonaro, que junto com seu ministro da Economia, Paulo Guedes – que trata o servidor público como inimigo -, tomaram o bastão de Temer e concluíram a reforma previdenciária, que tirou direitos dos mais vulneráveis e do funcionalismo público federal. A política econômica de Bolsonaro, que recebe o apoio integral da mídia dominante, também seguiu a cartilha de FHC de arrochar o funcionalismo – com a exceção dos operadores de segurança pública, por quem o presidente tem apreço. Só não tiveram sucesso em avançar na reforma administrativa por causa do bate-cabeça do governo e dos grupos de interesse.

Ouça em: https://diplomatique.org.br/guilhotina-especial-direito-a-comunicacao-2020-com-intervozes/

Elite econômica e mídia corporativa

Mas como se dá esse apoio da imprensa tradicional à elite econômica e política? Por que ela é estratégica e funciona tão bem? Embora sua credibilidade tenha afundado a níveis alarmantes no Brasil e em outras partes do mundo, a imprensa tem a exclusividade de definir o que é fato. Ela é autenticada pelo status quo como meio legítimo de informar o público, e essa prerrogativa está protegida constitucionalmente, o que lhe confere um poder absoluto na elaboração da visão de mundo da sociedade.

Quem compõe o status quo? São as instituições formais, que dão forma ao establishment (Judiciário, Legislativo, Ministério Público e Executivo), pelas maiores entidades empresariais do país – que representam o agronegócio, o sistema financeiro, a indústria, o comércio e os serviços -, pelas academias – quase todas privadas e pró-mercado -, e pelos think tanks – a grande maioria de linhagem liberal criada e mantida pelas maiores corporações de cada um dos setores econômicos para produzir “estudos” que corroborem a ideologia neoliberal. Essas instituições validam umas às outras continuamente para fortalecer suas condições de autenticadoras da “democracia, da economia de mercado e da livre imprensa”. Todos esses conceitos, se olhados de perto e com honestidade intelectual, não passam de slogans, porque na verdade não funcionam para aquilo que foram criadas.

Como quem dá as cartas é o mercado – essa figura metafísica que determina os rumos de uma nação (para quem tem memória ou conhecimento, nosso passado como nosso futuro não são nem motivo de orgulho tampouco promissor) –, ficamos à mercê de suas regras. Quais são elas? Eficiência e lucro. O foco está no resultado, não no processo. Responsabilidade socioambiental e compliance são palavras ao vento. Existem apenas como peça de propaganda. O que vale é o by the book, anglicismo corriqueiro dito com naturalidade nos corredores das corporações empresariais que significa “seguir à risca às regras não escritas da empresa”, em geral, ilegais ou antiéticas.

Se, como prega o neoliberalismo, o país deve ser tratado como uma empresa e o chefe de Estado deve ser um gestor, os lucros e dividendos dessa gestão serão distribuídos apenas entre os sócios. Quem são os sócios? A elite. Os servidores públicos, a classe média, os pobres e os socialmente vulneráveis não se servem dessa mesa.

Os direitos sociais passam a ser configurados como serviços que se compram e se vendem no mercado. Uma vez que esse conceito adquire outro entendimento, a democracia, no seu sentido normativo, é ferida de morte, uma vez que os direitos sociais e coletivos constituem a base de uma democracia de soberania popular. Logo, a ideologia neoliberal solapa a democracia, instrumentalizando a seu favor a imprensa, que reforça a narrativa dominante por meio do silenciamento do pensamento crítico e do cancelamento das vozes dissonantes.

A imprensa franqueia seus espaços de opinião em quase sua totalidade para porta-vozes do mercado. São economistas-chefe de bancos, são consultores financeiros, são professores de Economia de faculdades privadas, são “especialistas” de think tanks do liberalismo. Esse exército de catequizadores conversa com a linha editorial dos jornais, que, por sua vez, são caixas de ressonância dessa ideologia, falam pela perspectiva das lideranças empresariais, dos banqueiros e dos formadores de mercado.

O resultado dessa campanha organizada, sistemática, repetitiva, sem trégua faz com que se crie um senso comum. Daí nascem os mitos. Seria preciso uma revolução para quebrar paradigmas, desmascarar a dissimulação. A imprensa corporativa existe justamente com o propósito de criar fantasias, espalhar mentiras travestidas de verdade, difundir narrativas como se fossem fatos, a fim de universalizar e unificar o evangelho neoliberal sem questionamentos.

Não por acaso, não se encontram na mesma intensidade, com o mesmo destaque, conteúdos na mídia que contestem esse conjunto de ideias. Se a imprensa concede espaço a pensamentos bem estruturados, que revelem as lacunas e as contradições do neoliberalismo – carente de realidade e intelectualmente cheio de buracos -, essa ideologia, que domina metade do planeta, se autodestrói.

Assim que o jornalismo normativo é uma farsa. Suas páginas políticas e econômicas são grosseiramente peças de propaganda ideológicas, as notícias são dissimulações de ideias da elite econômica, os estudos de “especialistas” são em grande parte enganosos e os gêneros opinativos são tergiversações bem elaboradas por agentes a serviço do mercado.

Qual a saída? Usar os princípios consensuais da Unesco, organização da ONU acima de qualquer suspeita, e exemplos bem-sucedidos das democracias que preconizam o bem-estar para regulamentar a imprensa, um mercado poderoso e altamente concentrado nas mãos de meia dúzia de barões, capaz de definir por você e pela sociedade o que é verdade.

*Luís Humberto Rocha Carrijo, jornalista e mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Autônoma de Barcelona, comunicador e fundador da agência Rapport Comunica.

Leia sobre o tema na Edição 171

 

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