Montevidéu (Prensa Latina) Quando tocam os tambores do candombe, os brancos ficam pretos, diz o músico e percussionista uruguaio Álvaro Salas Gularte sobre as raízes de uma prática que é reconhecida como patrimônio cultural imaterial de seu país.
Por Orlando Oramas León
Correspondente-chefe no Uruguai
O candombe une outras práticas com herança geracional e reconhecimento oficial do patrimônio imaterial, como o tango, a milonga, o pericón, as payadas, a guasquería e toda a cultura que acompanha a indústria da lã, que foi um dos primeiros apoios à economia do Uruguai.
RESISTÊNCIA CULTURAL DOS ESCRAVOS AFRICANO
O candombe e seus “chamados” são considerados uma prática de resistência cultural dos africanos escravizados que contribuíram para a identidade uruguaia. Resulta em tambores, danças, cantos e, no carnaval, espetáculo musical e teatral.
Soam três tambores que, do menor ao maior, têm os nomes chico, repique e piano, cujo diálogo resulta numa polirritmia complexa e com tonalidade distinta.
“Mas não esqueçamos que quando começou a colonização na América Latina havia índios e aqui estavam os Charrúas, Guaraníes, Guenoas, entre outros povos, aí entra a fusão do tambor com a parte indígena”, disse Salas Gularte à Prensa Latina.
DO TANGO E DA MILONGA
A polêmica continua a respeito das origens de Carlos Gardel, o mais reconhecido cultivador do tango, gênero e fenômeno cultural compartilhado pelas duas margens do Rio da Prata há mais de um século.
Outros rios, mas com tinta, enchem artigos e livros sobre sua nacionalidade, uruguaia de nascimento (Tacuarembó) e argentina de adoção, e o tango, com sua música, dança e versos como ponto comum.
A Milonga é outra expressão da identidade uruguaia compartilhada com regiões de países vizinhos: uma grande área do Rio da Prata Argentina e, em certa medida, o estado brasileiro do Rio Grande do Sul.
Caracteriza-se pelo compasso 2/4, o que o torna mais vivo que o tango, do qual se diferencia em ritmo, técnica e “tempo”.
Na verdade, são variantes musicais que recebem o mesmo nome. No final do século XIX tornou-se uma vertente de dança que regressou no século XX juntamente com as orquestras de tango.
Tem um estilo mais lento, cantado e inicialmente acompanhado de violão, que continua a gozar de validade na canção popular composta e executada no Uruguai, a “milonga oriental”.
Alfredo Zitarrosa é considerado o maior intérprete de milonga do Uruguai e um de seus compositores e intérpretes mais universais.
PERICÓN E PAYADA
O património cultural imaterial ou “vivo” refere-se às práticas, expressões, conhecimentos ou técnicas transmitidas pelas comunidades de geração em geração.
O Uruguai adere à Convenção da UNESCO de 2003 para sua salvaguarda. O livro “Conhecimento compartilhado. Processo de inventariação do patrimônio cultural imaterial do Uruguai” é um título de referência incontornável.
O Pericón tem ali o seu espaço, reconhecido nessa categoria em cerimônia realizada no Salão dos Passos Perdidos do Palácio Legislativo no dia 15 de junho de 2023.
É uma prática cultural que vem das contradanças europeias e envolve dança, música e produções literárias com raízes profundas no Uruguai e na região. É dançado aos pares, em quatro passos e trajes tradicionais e, sobretudo, nos feriados nacionais e nas festas das cidades do interior.
Também de mãos dadas com a herança gaúcha carioca de origem hispânica está a arte da payada, que se define pelo contraponto improvisado dos intérpretes, em desafio acompanhado de violão com acorde de milonga e humor satírico.
A improvisação em décima é a mais comum na região, embora existam outras variedades também presentes.
Seus protagonistas aparecem vestidos com trajes gaúchos que remetem às suas origens rurais, por isso esse gênero também é considerado uma verdadeira teatralização da figura do gaúcho, revitalizada a cada apresentação.
A GUASQUERIA
Este ofício caracteriza-se por trabalhar o couro cru bovino ou de cavalo, com técnicas de trançado e torneamento, entre outras. A sua finalidade era funcional, mas tornou-se estético e social decorar o cavalo durante as festividades.
Os Guasqueros partilham uma origem regional que remonta aos tempos coloniais, onde espanhóis e indígenas contribuíram para a criação desta prática. Está associada à grande abundância de gado que caracterizou (também hoje) o Uruguai desde a sua introdução no século XVIII.
A guasquería sofreu as vicissitudes do campo e da pecuária, principalmente. O despovoamento das áreas rurais e o desaparecimento de muitas das grandes fazendas de antigamente fizeram com que os guasqueros permanecessem quase exclusivamente em centros povoados.
Por sua vez, a emigração de jovens para áreas urbanas afetou a transmissão do comércio. Da mesma forma, a presença de novos recursos para o trabalho na pecuária (transporte de gado em caminhões, tarefas rurais realizadas em caminhões ou outros veículos) e a concorrência das fibras sintéticas também afetaram a guasqueria no Uruguai.
Mas continua a ser válido em diversas áreas do trabalho rural e festivo, com reconhecimento patrimonial desde 2010.
CULTURA DA LÃ
O Sistema Cultural da Lã faz parte do Patrimônio Cultural Imaterial do Uruguai. Foi, junto com a guasquería e o pericón nacional, o terceiro ativo intangível a receber tal distinção.
“A lã não é apenas uma forma de produção, mas uma tradição que é transmitida de geração em geração”, segundo o ministro da Educação e Cultura, Pablo da Silveira.
Abrange um conjunto de saberes e práticas interdependentes de produtores e trabalhadores do campo, tosquiadores e classificadores de lã, artesãos de tinturaria, tecelagem e feltragem, industriais, trabalhadores da indústria, designers e artistas plásticos que a utilizam como matéria-prima.
O Uruguai se posiciona como um dos quatro polos industriais de exportação de lã lavada e penteada do mundo, e seus tosquiadores têm reconhecimento internacional.
A cultura da lã faz parte do ADN deste país sul-americano, assim como a milonga, o candombe, o pericón, as payadas e outras manifestações do seu património imaterial.