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sexta-feira, 26 julho, 2024

Genocídio, fascismo e negacionismo no debate público brasileiro

Presidente Lula em coletiva de imprensa em Adis Adeba, quando ele comparou a ofensiva isarelense contra a população de Gaza com o Holocausto (Ricardo Stuckert/PR)

Não é surpreendente que a extrema direita esteja tão interessada nesses temas, na utilização desses termos como objetos de desqualificação de oponentes, assim como na distorção dos conceitos e seus significados. A recente iniciativa de pedido de impeachment contra Lula é uma figura ilustrativa desse quadro

Odilon Caldeira Neto/Le Monde Diplomatique

O debate público brasileiro ampliou, nos últimos anos, um campo aberto pela disputa dos usos dos conceitos (como fascismo, genocídio e negacionismo) e seus significados. Muitas vezes, os conceitos são empregados como termos de desqualificação política, o que pouco auxilia na compreensão entre os passados traumáticos e os fenômenos da história recente. Por isso, além do desafio para compreender essa disputa, é importante considerar como esses conceitos são mobilizados em identidades políticas em disputa.

O fascismo, por exemplo. Existe uma consolidada bibliografia sobre as interfaces entre a extrema direita brasileira recente e os “padrões fascistas”, seja em níveis nacionais ou transnacionais. O campo de estudos diverge em algumas questões sobre a amplitude, caracterização e delimitação, mas não discute se houve essa presença, porque não se trata de uma questão meramente conceitual, mas de como grupos se usam desse conceito conformando identidades. E se existe uma identidade forjada no antifascismo, há uma contrapartida das extremas direitas, que compreendem que há nisto um problema político a ser resolvido. Parcelas das direitas globais buscam imputar o fascismo e suas variações ao campo da esquerda, não necessariamente como conceito, mas adjetivo, mobilizando a percepção negativa do termo. Algumas tendências utilizam argumentos mais sofisticados e de análise sobre as origens ideológicas dos fascismos, outros operam a partir de pastiche, como um “debate” ingênuo sobre os termos do nome do NSDAP – no caso, o “nacional-socialismo”.

Já sobre o conceito de genocídio, no caso brasileiro, essa questão envolve aspectos como os debates sobre a colonização e escravidão e suas implicações. Naturalmente, estão inseridos em um campo de estudos que discute a não singularidade do holocausto (sem que isso defina qualquer esvaziamento deste, é importante frisar). Como conceito, o genocídio é situado historicamente, inclusive em torno do evento fundacional da ONU, em 1948, durante a Convenção para a Prevenção e Punição de Crimes de Genocídio. Porém, situar o genocídio como fenômeno histórico não significa distanciá-lo do cotidiano de violências direcionadas existentes ao longo do último século. Por isso, o campo de estudos sobre o genocídio, em grande medida, toma o próprio conceito como referência e um alerta. Isto é, os genocídios são fenômenos que precisam ser diuturnamente combatidos. Nos últimos anos e no contexto da pandemia, o termo genocídio cruzou novamente com a radicalização do cotidiano político e a gestão de Jair Bolsonaro. Esse é um tema ainda candente, pois a caracterização de genocídio tem implicações políticas, morais e jurídicas, de modo que se transformou em um aspecto sensível à extrema direita local.

O negacionismo é outro ponto importante, principalmente o negacionismo do holocausto, que é um tema de impacto político mais amplo e de amplitude global. O negacionismo do holocausto tem um caráter nítido de associação imediata aos dois outros conceitos mobilizados politicamente de modo recorrente. Poucas pessoas dirão que este negacionismo não está associado ao fato de uma experiência genocida (seminal para a discussão do próprio conceito), e efetivamente associada ao contexto do nazismo na era dos fascismos. Em suma, ser considerado negacionista do holocausto é um princípio de associação também aos temas do genocídio e dos fascismos.

Então, não é surpreendente que a extrema direita esteja tão interessada nesses temas, na utilização desses termos como objetos de desqualificação de oponentes, assim como na distorção dos conceitos e seus significados. A recente iniciativa de pedido de impeachment contra Lula é uma figura ilustrativa desse quadro. Não é apenas um procedimento de crítica ao posicionamento do governo brasileiro no cenário internacional, mas também uma operação de realocação do extremismo de direita no debate público, desde bolsonaristas até outras tendências, como o Movimento Brasil Livre e seus apoiadores.

Assim, esses três conceitos (genocídio, negacionismo e fascismo) são objetos de disputa não somente em suas definições, mas principalmente em como e quando eles serão mobilizados como adjetivos e categorias de denúncia no jogo político e na construção de uma identidade coletiva, sobretudo no campo político. Por isso, é necessário cuidado contínuo nesses temas e na mobilização dos conceitos. Isso não impede a existência de debates nos campos de estudos (longe disso, não há tema “pacificado”), tampouco a participação pública, seja de indivíduos e de grupos organizados.

Entretanto, é importante considerar as implicações desse esporte coletivo que se tornou os usos e abusos do passado recente. Nesse debate, a extrema direita brasileira utilizará esses tópicos como sanitização dos problemas recentes e recorrentes, mas também em uma busca contínua pela atribuição dessas categorias aos adversários políticos. Esse não é um fenômeno novo, aliás. Não espanta, portanto, o alinhamento de grupos e lideranças bolsonaristas com expoente do governo de Benjamin Netanyahu.

Ao manejar termos como “genocídio”, “negacionismo” e “fascismo” no jogo político, essas tendências operam um duplo movimento – o apagamento da história recente do extremismo de direita no Brasil, e o uso políticos desses termos, para uma abordagem profundamente moralista.

Isso não quer dizer que os conceitos perderam a validade no debate público. Ao abordar temas como o fascismo, o genocídio e o negacionismo, é importante considerar como esses conceitos são historicamente construídos, e considerar que os fenômenos que dão nome às coisas não são objetos perdidos no passado. Os conceitos, assim como a história, devem servir como alerta contra fenômenos em curso ou em processo de construção. A função dos conceitos no debate público é justamente trazer embasamento no debate. Por isso é necessário buscar a rigidez conceitual, para entender a atualidade desses temas tão importantes no cotidiano local e global atual.

Odilon Caldeira Neto é professor do Departamento de História da Universidade Federal de Juiz de Fora e coordenador do Observatório da Extrema Direita.

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