Atílio Boron*
É uma pergunta que me fazem com frequência. Minha resposta muitas vezes decepciona meus interlocutores porque é sim, mas também é não.
Para sua surpresa, digo-lhes que é preciso distinguir entre as crenças e valores do presidente e de seu círculo mais próximo de colaboradores e as características da ordem político-estatal imposta no país.
Ou seja, a natureza do bloco no poder e seu caráter de classe, as políticas específicas que implementa e o alinhamento internacional proposto pelo Governo. Para entender o fenômeno que nos preocupa, é preciso separar um do outro: o perfil de valores do presidente, de um lado, e o funcionamento e a direção das políticas públicas, de outro.
Durante os anos da Segunda Guerra Mundial, e até o período pós-guerra, vários estudos foram conduzidos nos Estados Unidos sobre o tema do autoritarismo e da personalidade autoritária. O mais famoso foi publicado em 1950 sob o título A Personalidade Autoritária, um livro de mais de mil páginas que teve entre seus principais autores ninguém menos que Theodor W. Adorno, uma das figuras mais destacadas da Escola de Frankfurt, que emigrou para os Estados Unidos no pós-guerra.
Ao longo de vários anos, Adorno e seus colegas desenvolveram uma escala complexa para medir atitudes e valores autoritários, violentos, homofóbicos, racistas, cínicos, intolerantes e antissemitas, no que foi um megaestudo realizado sob a sombra sinistra lançada pelos campos de extermínio nazistas do outro lado do Atlântico.
Eles apropriadamente chamaram esse instrumento de medida de “escala F” para o fascismo. Se aplicarmos esse estudo a um personagem como Javier Milei, ele sem dúvida obteria uma das maiores pontuações na escala e seria caracterizado pelos pesquisadores como um fascista. O mesmo vale para muitos dos que compõem a comitiva presidencial e, claro, numerosos representantes de La Libertad Avanza, do PRO e também, por que negar, do heterogêneo espaço nacional-popular.
Mas as características pessoais de um líder, mesmo de um presidente tão reacionário como Milei, não são suficientes para caracterizar uma forma de Estado. Recordemos que, na bibliografia clássica sobre o assunto, desde os fundadores do Partido Comunista Italiano, Antônio Gramsci e Amadeo Bordiga, em diante, o fascismo foi caracterizado como uma “forma excepcional de Estado capitalista”, ou como uma “ditadura aberta do grande capital” pelo anarcocomunista francês Daniel Guerin em seu clássico Fascismo e Grande Capital, publicado em 1936.
Na mesma linha está o trabalho do teórico marxista greco-francês Nicos Poulantzas, autor de uma obra de síntese excepcional intitulada Fascismo e Ditadura, publicada originalmente na França em 1970. Os autores que acabei de mencionar, assim como muitos outros, sublinham o fato de que o fascismo “nacionaliza” a economia capitalista ao mesmo tempo em que realiza uma profunda reorganização do aparato estatal com o objetivo de consolidar a hegemonia dos capitalistas sobre o resto das classes e camadas populares. Nas experiências dos fascismos clássicos – Itália e Alemanha – esse processo teve um marcado viés nacionalista na medida em que ambos os governos desafiaram a divisão do mundo que as potências coloniais haviam resolvido com a Primeira Guerra Mundial.
O caso argentino revela algumas semelhanças com os casos mencionados acima, o que dá suporte parcial à caracterização desta “democradura” argentina como fascista. É claro que a tragédia sociopolítica que está assolando este país faz parte de uma tendência global, porque figuras fascistas estão surgindo com força em todos os lugares: Donald Trump, Nayib Bukele, Georgia Meloni, Viktor Orban e os líderes da gangue franquista na Espanha. O que está por trás dessa infeliz epidemia política? Resposta: a crise geral do capitalismo e a tentativa, fadada ao fracasso, mas ainda assim uma tentativa, de resolver essa situação apelando à violência institucionalizada.
No entanto, seria um erro grosseiro ignorar as diferenças significativas que separam o caso argentino de seus antecessores: o culto supersticioso aos mercados é uma novidade do que, com alguma pressa, poderíamos chamar de “fascismo colonial”, um dos primeiros rebentos que germinou nos regimes de apartheid na África do Sul e na Namíbia. O que temos na Argentina é um regime como o fascista, um fascismo 2.0?, igualmente desdenhoso das instituições democráticas, mas que reorganiza o aparato estatal para que a toupeira presidencial possa cumprir sua autoproclamada missão de destruí-las e assim instituir o reinado dos mercados, e isso marca uma diferença intransponível com os fascismos clássicos. O mileísmo propõe uma fórmula política que renuncia a qualquer pretensão de autodeterminação nacional para se tornar um simples peão da vontade imperial.
Há outras semelhanças e diferenças que não temos tempo de discutir neste breve texto. Entre elas, a substituição do antissemitismo virulento dos fascismos clássicos pelo alinhamento incondicional ao regime sionista de Israel, cujo genocídio do povo palestino é endossado pelo “regime” ou “democracia” de Milei.
Em todo caso, como Estado capitalista de exceção, o objetivo perseguido por aqueles e o perseguido por este é o mesmo: consolidar a supremacia das classes dominantes locais e seus parceiros imperiais, destruir os avanços democráticos e sociais alcançados ao longo de um século de lutas, instaurando um apartheid social, praticar com infinita crueldade o lento, mas letal, genocídio dos pobres e vulneráveis e fazer da Argentina a dócil executora dos desígnios de Washington.