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Sputnik – EUA fornecem detalhes da ampla operação conduzida no Brasil durante ano eleitoral, que incluiu mobilização da CIA e do Pentágono. Apesar de ter como alvo as Forças Armadas e produzido dossiês sobre generais, operação não deve abalar alinhamento dos militares brasileiros aos EUA, acredita analista.
Dossiês sobre generais brasileiros, mobilização do Pentágono e ampla pressão diplomática: detalhes da operação conduzida pelos EUA em ano eleitoral no Brasil foram revelados pelo professor de Relações Internacionais da FGV-SP, Oliver Stuenkel, em entrevista recente a podcast produzido pelo portal G1.
O especialista realizou entrevistas com diplomatas e funcionários do governo dos EUA para mapear a operação de Washington, que teria como objetivo evitar um golpe de Estado conduzido por militares bolsonaristas no Brasil.
“Essa campanha, diferente de outras no passado, não envolveu só o Departamento de Estado dos EUA […], mas também o Pentágono, a CIA e a Casa Branca”, disse Stuenkel no podcast O Assunto. “O mensageiro principal do governo dos EUA foi o secretário de Defesa, ou seja, o chefe do Pentágono.”
O pesquisador nota que o chefe do Departamento de Defesa dos EUA, Lloyd J. Austin III, e o diretor da CIA visitaram o Brasil em 2022, ainda que seja “muito pouco comum que esse tipo de liderança visite um país logo antes das eleições”.
Motivos geopolíticos
A mobilização dos EUA para lidar com um assunto brasileiro teria sido motivada por considerações geopolíticas. Ocupados com desafios estratégicos em outras regiões do mundo, os EUA teriam agido preventivamente para evitar uma crise na América Latina.
“Em um mundo muito turbulento, os EUA já tinham muitos problemas na Ucrânia, na Ásia. Um diplomata americano me disse: a última coisa que a gente queria ter era uma grande crise na América Latina“, revelou Stuenkel.
Presidente dos Estados Unidos da América, Joe Biden e o presidente da República do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, durante fotografia oficial, na Casa Branca, Washington, EUA, 10 de fevereiro de 2023
© Foto / Palácio do Planalto / Ricardo Stuckert / CC BY 2.0
Para o professor de história latino-americana e política comparada na Universidade de Denver, Rafael Ioris, os EUA se voltam para a América Latina somente se há ameaça à sua influência na região.
“Essa é a visão histórica que os EUA têm da América Latina, como se fosse o seu quintal”, disse Ioris à Sputnik Brasil. “A América Latina não é prioridade para os EUA, desde que ela esteja garantida. Desde que a situação na região esteja tranquila, para que os EUA possam se ocupar de outros assuntos.”
Atualmente, os temas que mobilizam os EUA na América Latina são “migração, Venezuela e eventualmente ambições demasiadas de um país ou outro para sair da esfera de influência”, elencou Ioris. “É uma trajetória clássica que continua, infelizmente.”
Manifestantes em Washington, DC, durante protesto contra a postura ameaçadora dos EUA em relação à Venezuela
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Por outro lado, o especialista lamenta a consolidação da narrativa de que os EUA seriam responsáveis pela eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2022, ou mesmo pela manutenção da democracia no Brasil.
“O governo Biden não é responsável pela eleição de Lula. Isso foi resultado do ativismo social brasileiro e da formação de uma grande frente ampla pela eleição dele”, considerou Ioris. “Não podemos negligenciar o papel da sociedade civil brasileira.”
Publicidade da operação
A decisão de funcionários do governo dos EUA de tornarem públicas as suas ações no Brasil em 2022 chama a atenção. Ainda em junho de 2023, diplomatas e figuras relevantes, como o ex-embaixador dos EUA no Brasil, Thomas Shannon, detalharam os esforços de Washington para repórteres do jornal britânico Financial Times.
A pesquisa do acadêmico Oliver Stuenkel também conta com entrevistas e documentos fornecidos por funcionários do governo dos EUA, o que demonstra disponibilidade e intenção de publicizar uma operação que, inicialmente, foi conduzida nos bastidores.
O subsecretário de Estado dos Estados Unidos para Assuntos Políticos, Thomas Shannon, que foi embaixador no Brasil (foto de arquivo)
© Folhapress / Pedro Ladeira
O motivo para tornar públicas as suas ações junto a instituições brasileiras não ficou claro para os especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil. No entanto, Ioris aventou a hipótese de uma prestação de contas.
“As declarações de [Thomas] Shannon soam como se fosse cobrar a conta do governo [brasileiro], em função de declarações bastante autonomistas feitas por Lula na área de política externa”, disse Ioris. “O que é descabido, porque Lula tem boas relações com os países do Norte.”
O professor ota que os EUA poderiam ter demonstrado frustração quanto a “certos arroubos autonomistas” da diplomacia conduzida por Lula e seu assessor internacional Celso Amorim, como “confrontar Israel abertamente ou questionar o apoio à Ucrânia”.
Foco nas Forças Armadas brasileiras
A operação dos EUA no Brasil em 2022 conferiu atenção especial às Forças Armadas brasileiras, suas aliadas de longa data.
Segundo Stuenkel, a principal mensagem dos EUA para os militares no Brasil era que, “se as Forças Armadas brasileiras não reconhecerem o resultado [eleitoral], haveria uma redução drástica da cooperação militar entre os EUA e o Brasil, uma redução de todo o tipo de treinamento conjunto, de compartilhamento de inteligência e fornecimento de material bélico”.
Militar do Exército dos EUA durante visita ao Brasil para preparar o exercício militar CORE 23
© Foto / Exército do Brasil
O acadêmico da FGV-SP argumenta que as pressões do Pentágono sobre as Forças Armadas foram mais eficientes do que outras frentes da operação dos EUA, como a conduzida pelo Departamento de Estado.
Para a professora de defesa e gestão estratégica internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Adriana Marques, a operação dos EUA revela a fragilidade institucional brasileira.
“Isso lança luz sobre as limitações da nossa democracia, mostra como ela ainda é dependente”, disse Marques à Sputnik Brasil. “Se dependemos de outro país para dar a luz verde ou vermelha para um golpe, isso significa que não podemos contar com as convicções democráticas dos nossos militares.”
A pesquisadora reconhece que “os EUA ainda têm uma grande influência sobre as Forças Armadas brasileiras” e que a pressão de Washington sobre a instituição pode ter sido decisiva.
O ministro da Defesa do Brasil, Paulo Sergio Nogueira, à esquerda, o secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin, ao centro, e o secretário de Assuntos Internacionais de Defesa da Argentina, Francisco José, à direita, posam para uma foto de grupo na XV Conferência de Ministros da Defesa das Américas, em Brasília, Brasil, 26 de julho de 2022
© AP Photo / Eraldo Peres
“Os militares brasileiros têm uma dependência doutrinária dos EUA e realmente acreditam que são aliados preferenciais de Washington”, disse Marques. “Acreditam que haveria uma relação especial entre os países, como dizia Golbery do Couto e Silva.”
Dossiê de generais
O pesquisador da FGV-SP Stuenkel teve acesso a documentos, nos quais os EUA ficham membros das Forças Armadas brasileiras de acordo com as suas convicções políticas.
Os dossiês classificaram militares como “vermelhos”, caso fossem propensos a apoiar um golpe, e “verdes”, caso fossem avessos a rupturas democráticas.
“Circularam relatórios com uma avaliação específica sobre as opiniões políticas de cada general, sobre o risco que cada general brasileiro representava para a democracia. Eu vi um desses relatórios”, relatou Stuenkel.
A realização de dossiês sobre alta cúpula militar, no entanto, não deve abalar o alinhamento das Forças Armadas aos EUA, acredita Marques.
“Os EUA sempre fizeram esses dossiês. Os militares brasileiros sabem que os EUA agem dessa maneira e não acho que isso cause constrangimento nas relações”, disse Marques. “Aqueles que foram marcados pelos EUA com a cor verde ganharam o aval: são os bons militares que vão ter prestígio e acesso às benesses que os EUA oferecem na área militar.”
Ainda que o alinhamento dos militares brasileiros com os EUA siga intocável, o movimento bolsonarista pode, sim, diminuir o seu pró-americanismo após a publicidade das ações de Washington contra seus membros mais ilustres.
O comandante do Exército, general Tomás Paiva, e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, durante cerimônia comemorativa do Dia do Exército, no Quartel-General do Exército, em Brasília, 19 de abril de 2023
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“A principal bandeira que os bolsonaristas levam para manifestações de rua atualmente não é a dos EUA, mas a de Israel. Nesse sentido cultural, existe um esfriamento do grupo ‘bolsonarista raiz’ em relação aos EUA“, considerou Ioris. “Mas, claro, eles ainda torcem pela volta do [ex-presidente dos EUA, Donald] Trump.”
Um eventual distanciamento entre os EUA e grupos bolsonaristas pode ter efeitos limitados para Washington. Afinal, o que a operação dos EUA no Brasil em 2022 realmente conseguiu provar foi a ampla influência que Washington ainda tem nas instituições brasileiras.
“A relação [entre Brasil e EUA] não é uma relação entre iguais. Um lado tem muito mais poder para influenciar o outro. É, de fato, uma relação hierárquica e assimétrica“, concluiu Ioris.