por Gabriel García Márquez
Já ninguém se recorda de Deus no Natal. Há tanto estrondo de corneta e fogos de artifício, tantas guirlandas de focos de cores, tantos perus inocentes degolados e tantas angústias de dinheiro que ultrapassam nossos recursos reais que podemos nos perguntar se a alguém resta um instante para perceber que semelhante alvoroço é para celebrar o aniversário de uma criança que nasceu há 2000 anos numa estrebaria de miséria, a pouca distância de onde havia nascido, uns mil anos antes, o rei David. Novecentos e cinquenta e quatro milhões de cristãos crêem que essa criança era Deus encarnado, mas muitos celebram-no se na realidade não o acreditassem. Celebram-no além disso muitos milhões que nunca o acreditaram, mas agrada-lhes a pândega, e muitos outros estariam dispostos a virar o mundo do avesso para que ninguém continuasse a acreditar. Seria interessante averiguar quantos deles crêem também, no fundo da sua alma, que o Natal de agora é uma festa abominável, e não se atrevem a dize-lo por um preconceito que já não é religioso e sim social.
Quadro de Henri Rousseau, 1844-1910. O mais grave de tudo é o desastre cultural que estes Natais pervertidos estão a causar na América Latina. Antes, quando só tínhamos costumes herdados da Espanha, os presépios domésticos eram prodígios de imaginação familiar. A criança Deus era maior que o boi, as casinhas encarapitadas nas colinas eram maiores que a virgem, e ninguém dava atenção a anacronismos: a paisagem de Belém era completada com um comboio de corda, com um pato de pelúcia maior que um leão que nadava no espelho da sala, ou com um agente de trânsito que dirigia um rebanho de cordeiros numa esquina de Jerusalém. Acima de tudo punha-se uma estrela de papel dourado com uma lâmpada no centro, e um raio de seda amarela que deveria indicar aos Reis Magos o caminho da salvação. O resultado era antes feio, mas parecia connosco, e naturalmente era melhor do que tantos quadros primitivos mal copiados do aduaneiro Rousseau.
A mistificação começou com o costume de que os brinquedos não fossem trazidos pelos Reis Magos – como sucede em Espanha com toda a razão – e sim pela criança Deus. Nós crianças deitávamo-nos mais cedo para que as prendas chegassem logo, e éramos felizes ouvindo as mentiras poéticas dos adultos. Entretanto, eu não tinha mais de cinco anos quando alguém na minha casa decidiu que já era tempo de revelar-me a verdade. Foi uma desilusão não só porque eu acreditava deveras que era a criança Deus que trazia os brinquedos, como também porque teria querido continuar a acreditar. Além disso, por pura lógica de adulto, pensei então que os outros mistérios católicos também eram inventados pelos pais para entreter as crianças, e fiquei-me no limbo. Aquele dia – como diziam os mestres jesuítas na escola primária – perdi a inocência, pois descobri que tão pouco as crianças eram trazidas de Paris pelas cegonhas, o que é algo que ainda gostaria de continuar a acreditar para pensar mais no amor e menos na pílula.
Tudo isto mudou nos últimos trinta anos, mediante uma operação comercial de proporções mundiais que é ao mesmo tempo uma devastadora agressão cultural. A criança Deus foi destronada pelo Santa Claus dos gringos e dos ingleses, que é o mesmo Papá Noel dos franceses, aos quais todos conhecemos demasiado. Chegou-nos com tudo: o trenó puxado por um alce, e o abeto carregado de brinquedos sob uma fantástica tempestade de neve. Na realidade, este usurpador com nariz de cervejeiro não é outro senão o bom São Nicolau, um santo ao qual quero muito é o do meu avô coronel, mas que nada tem a ver com o Natal, e muito menos com Noite Boa tropical da América Latina. Segundo a lenda nórdica, São Nicolau reconstruiu e reviveu vários escolares que um urso havia despedaçado na neve, e por isso proclamaram-no patrono das crianças. Mas a sua festa celebra-se em 6 de Dezembro e não a 25. A lenda tornou-se institucional nas províncias germânicas do norte em final do século XVIII, junto à árvore dos brinquedos, e há pouco mais de cem anos passou à Grã-Bretanha e à França. A seguir passou aos Estados Unidos, e estes enviaram-na para a América Latina, com toda uma cultura de contrabando: a neve artificial, as velas de cores, o peru recheado e estes quinze dias de consumismo frenético ao qual poucos de nós se atrevem a escapar. Contudo, talvez o mais sinistro destes Natais de consumo seja a estética miserável que trouxeram consigo: esses cartões postais indigentes, esses cordões de luzinhas de cores, esses sininhos de vidro, essas coroas de visco penduradas no umbral, essas canções de atrasados mentais que são os cânticos traduzidos do inglês; e tantas outras estupidezes gloriosas para as quais nem sequer valia a pena haver inventado a electricidade.
Tudo isso, em torno da festa mais espantosa do ano. Uma noite infernal em que as crianças não podem dormir com a casa cheia de bêbados que se enganam de porta à procura de onde desaguar, ou a perseguir a esposa de outro que por acaso teve a boa sorte de cair adormecido na sala. Mentira: não é uma noite de paz e amor, e sim todo o contrário. É a ocasião solene da gente que não se quer. A oportunidade providencial de cumprir os compromissos adiados por indesejáveis: o convite ao pobre cego que ninguém convida, à prima Isabel que ficou viúva há quinze anos, à avó paralítica que ninguém se atreve a mostrar. É a alegria por decreto, o carinho por lástima, o momento de presentear porque nos presenteiam, e de chorar em público sem dar explicações. É a hora feliz de os convidados beberem tudo o que sobrou do Natal anterior: o creme de menta, o licor de chocolate, o vinho de banana. Não é raro, como sucede amiúde, que a festa termine a tiros. Nem é raro tão pouco que as crianças – ao verem tantas coisas atrozes – acabem por crer realmente o menino Jesus não nasceu em Belém e sim nos Estados Unidos.
O original encontra-se em
http://bolivia.indymedia.org/es/2006/12/38003.shtml
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25/Dez/06