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quinta-feira, 28 março, 2024

Esperança em tempos distópicos  

Frei Betto
Que­ríamos mudar o Brasil e o mundo. Cor­riam em nossas veias va­lores, ideais, pro­jetos his­tó­ricos. Ou­sá­vamos en­frentar a re­pressão da di­ta­dura. In­ven­tá­vamos o fu­turo. O Brasil cabia em um único ad­je­tivo: novo. O ci­nema era novo; a bossa, nova; o pro­jeto de de­sen­vol­vi­mento en­ca­be­çado por Celso Fur­tado, igual­mente novo.

Vi­vemos agora em tempos de dis­topia. Imo­bi­li­dade, apatia, in­di­fe­rença. Como Qohélet, autor bí­blico do Ecle­si­astes: “Todas as pa­la­vras estão gastas… O que foi é o que será, o que se fez é o que se fará: nada de novo sob o sol!” (1, 8-9).

John Donne (1572-1631) dizia que “ne­nhum homem é uma ilha”. No reino animal, somos a es­pécie que mais pre­cisa de cui­dado para se tornar autô­noma, cerca de 12 anos. No en­tanto, a cul­tura da de­ses­pe­rança nos induz a ficar ilhados em nossos con­fortos, medos ou in­se­gu­ranças. Sa­bemos o que não que­remos e ma­ni­fes­tamos o nosso de­sa­grado, a nossa frus­tração, até o nosso ódio contra tudo e contra todos nas redes so­ciais. Não sa­bemos, porém, o que propor ou buscar.

A crise é ci­vi­li­za­tória. O mundo é do­mi­nado pela fi­nan­cei­ri­zação da eco­nomia. Um pe­queno grupo de em­presas trans­na­ci­o­nais tem mais poder do que os Es­tados. Tudo é pen­sado em função da acu­mu­lação do ca­pital e a pre­ser­vação da na­tu­reza é con­si­de­rada en­trave ao pro­gresso.

O que isso tem a ver com a es­pi­ri­tu­a­li­dade? Ela é a es­sência de nossa sub­je­ti­vi­dade, altar no qual eri­gimos e ado­ramos os nossos deuses. Não há nin­guém des­pro­vido de es­pi­ri­tu­a­li­dade. Há, sim, quem a nutre em fontes al­truístas, como Buda, Moisés, Jesus ou Maomé, e quem elege o in­te­resse ego­cên­trico como bem su­premo. Nossas op­ções de­pendem de nossa es­pi­ri­tu­a­li­dade.

A mer­can­ti­li­zação dos bens da vida e das re­la­ções hu­manas pro­picia o sur­gi­mento de re­li­giões sem te­o­logia, igrejas sem li­turgia, fiéis sem ca­ri­dade. Abraça-se o trans­cen­den­ta­lismo que atribui todos os males à luta entre o Bem e o Mal. Inútil buscar as causas dos males na vida so­cial. Há que se re­signar à “von­tade de Deus” e orar para que o mi­lagre acon­teça…

O ne­o­li­be­ra­lismo dis­se­mina a cul­tura de que “a his­tória acabou”, nada ha­verá de mudar, e elege o Es­tado como cul­pado de todos os pro­blemas, de­vido aos gastos ex­ces­sivos, à cor­rupção e à po­li­ti­cagem. Assim, acei­tamos trocar a li­ber­dade pela se­gu­rança, os prin­cí­pios pelos in­te­resses, o pú­blico pelo pri­vado, o bem pelos bens.

Entre os mais po­bres, pre­midos pela ime­diata pre­ser­vação da vida bi­o­ló­gica, a au­sência do Es­tado (es­cola, cul­tura etc.) os leva a buscar ci­da­dania na per­tença à igreja, e di­reitos so­ciais nos ser­viços as­se­gu­rados pelo nar­co­trá­fico.

Onde há saída para a es­pe­rança? Para os ime­di­a­tistas, nos ava­tares. Ha­verá de ir­romper um “mes­sias” que fará chover bo­nança. A Bí­blia é rica em pe­ríodos de de­sa­lento como o que ora atra­ves­samos. Porém, os Pro­fetas su­bli­nham que só ha­verá saída, como na des­crição de Eze­quiel 37, se até os mortos pu­derem re­co­brar vida e se le­vantar.

A saída não de­pende apenas de minha von­tade, de meu par­tido, de meu pro­jeto. De­pende de uma obra co­le­tiva em­ba­sada em uma nova ma­neira de pensar e agir. De uma es­pi­ri­tu­a­li­dade ho­lís­tica, so­ci­o­am­bi­ental, como propõe o papa Fran­cisco na en­cí­clica Lou­vado sejas.

Por isso, Jesus não teve pressa para que o Reino de Deus, tal como seu Pai quer e a quem ro­gamos que “venha a nós”, acon­te­cesse logo. Adotou a única ati­tude que faz da es­pe­rança pro­posta efe­tiva: or­ga­nizou um grupo de doze com­pa­nheiros, que se fi­zeram 72, que se fi­zeram 500… Plantou as se­mentes de um novo pro­jeto ci­vi­li­za­tório que se ca­rac­te­riza, nas re­la­ções pes­soais, pelo amor e a com­paixão; e nas re­la­ções so­ciais, pela par­tilha dos bens da Terra e dos frutos do tra­balho hu­mano.

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Frei Betto

As­sessor de mo­vi­mentos so­ciais. Autor de 53 li­vros, edi­tados no Brasil e no ex­te­rior, ga­nhou por duas vezes o prêmio Ja­buti (1982, com “Ba­tismo de Sangue”, e 2005, com “Tí­picos Tipos”)

Frei Betto

 

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