Ernesto Cardenal era um dos maiores expoentes da Teologia da Libertação
Padre e poeta nicaraguense morreu aos 95 anos. Crítico ferrenho do governo de Daniel Ortega, ele foi protagonista da revolução sandinista e figura-chave da Teologia da Libertação, que enfatiza luta por justiça social.
Para muitos, a vida do emblemático escritor, sacerdote, teólogo e escultor nascido em Granada, na Nicarágua, em 20 de janeiro de 1925 não foi apenas um marco na literatura de seu país e da América Latina, mas também deixa um legado de compromisso com os mais preciosos valores humanos, a partir de suas palavras e de sua poesia.
Cardenal cresceu numa família rica e estudou literatura em Manágua, capital da Nicarágua, e em Nova York, nos Estados Unidos. No início dos anos 1950, publicou seus primeiros poemas, inicialmente eróticos. Mais tarde, o poeta explicaria: “O amor pela beleza da natureza e pelas mulheres me levou a Deus; e o amor a Deus, à revolução.”
Fundador, na década de 1970, de uma comunidade de camponeses pintores e poetas guerrilheiros no arquipélago de Solentiname, no sul da Nicarágua, Cardenal percorreu o mundo vestindo sua indispensável boina, jeans e sandálias para denunciar os crimes do ditador Anastasio Somoza, que acabou derrubado pelos sandinistas em 1979.
Durante a revolução sandinista (1979-1990), Cardenal foi ministro da Cultura da Nicarágua e um dos expoentes da Teologia da Libertação, corrente da Igreja Católica fundada na América Latina que enfatiza a ética social cristã em defesa dos pobres e oprimidos. O exercício à frente do ministério o levaria a ser suspenso pelo papa João Paulo 2º em 1985.
Dois anos antes, em 1983, quando foi receber o papa no aeroporto em Manágua, o poeta tirou sua famosa boina e ajoelhou-se para beijar a mão do líder da Igreja Católica, mas João Paulo 2º retirou a mão e se recusou a dar a honra ao então padre.
A proibição de exercer o sacerdócio foi anulada há apenas um ano pelo papa Francisco, gesto que o poeta recebeu celebrando uma missa pela primeira vez em trinta anos, ainda na cama do hospital onde estava internado na ocasião.
Cardenal sempre buscou a fé à sua própria maneira. Segundo ele, “uma igreja hierárquica está do lado dos ricos”. O católico rebelde sempre ficou do lado dos pobres, apoiando programas de alfabetização na Nicarágua, fundando livrarias e uma editora. Seu objetivo era fazer com que os pobres no país tivessem acesso à cultura.
Na década de 1990, depois de os sandinistas perderem o poder nas urnas para Violeta Chamorro (1990-1997), o poeta abandonou o partido por dissidências com a liderança de Daniel Ortega (1985-1990 e 2007 até hoje), assim como fizeram outros ex-guerrilheiros e intelectuais conhecidos. Cardenal passou a se dedicar completamente à escrita, à escultura e à realização de oficinas de poesia para crianças com câncer num hospital em Manágua.
Às suas primeiras e conhecidas obras, como Salmos, Epigramas e Hora zero, se somaram Vida perdida e O evangelho de Solentiname, entre outros de uma vasta produção literária traduzida para mais de 20 idiomas e citada em cerca de 20 antologias.
Por seus livros Cântico cósmico e Telescópio da noite escura (ambos de 1993), Este mundo e outro (2011), Assim na Terra como no céu (2018) e Filhos das estrelas (2019), alguns o chamaram de “o poeta infinito”.
O impulso de sua produção sempre foi a utopia de um mundo mais justo. Para alcançar esse objetivo, Cardenal não via outra solução senão “colocar o mundo de cabeça para baixo e renová-lo totalmente”. A visão ainda é sensível em sua obra, cuja produção ele estendeu até sua morte.
Com o passar dos anos, sua produção literária ficou cada vez mais religiosa; e a perspectiva religiosa, cada vez mais política. O sacerdote Cardenal costumava comparar a mensagem de sua poesia com a dos profetas bíblicos, “porque faziam uma acusação e um anúncio: a acusação da injustiça dominante e o anúncio de um mundo melhor”.
Seus poemas e publicações renderam-lhe o Prêmio da Paz do Comércio Livreiro Alemão em 1980, o Prêmio Pablo Neruda em 2009, o da Rainha Sofía de Poesia Iberoamericana em 2012 e o Prêmio Mario Benedetti em 2018. Em 2005, o poeta foi indicado ao Prêmio Nobel de Literatura.
Após o retorno de Ortega ao poder, em 2007, a voz de Cardenal voltou a ser ouvida, mas agora para denunciar a “nova ditadura” na Nicarágua. Com a mesma veemência, o poeta respaldou, em abril de 2018, os protestos antigoverno de jovens que colocaram a liderança do país em xeque.
“A situação está pior. Queremos sair disto, queremos uma mudança total de país, uma verdadeira mudança social”, disse ele em entrevista exclusiva à DW em março de 2019. “Queremos simplesmente que o casal presidencial [Daniel Ortega e sua esposa e vice-presidente, Rosário Murillo] vá embora.”
Cardenal vivia, literalmente, atravessando a rua no bairro Los Robles, em Manágua. Numa ocasião, há mais de três anos, o romancista e ex-vice-presidente nicaraguense Sergio Ramírez ofereceu a Cardenal que mudasse para a sua casa quando um juiz sandinista ameaçou o poeta de despejo por causa de um litígio de posse de terrenos em Solentimane, onde ele fundara sua comunidade.
E foi precisamente Ramírez que se despediu do amigo no Twitter, emocionado, lembrando um dos poemas de Cardenal que expunha o efêmero da existência humana (tradução livre):
Como latas de cerveja vazias e bitucas
de cigarros apagados, têm sido meus dias.
Como figuras que passam por uma tela de televisão
e desaparecem, assim tem sido minha vida.
Como os automóveis que passavam rápidos pelas estradas
com risos de garotas e músicas de rádios…
E a beleza passou rápido, como o modelo dos carros
e as canções das rádios que saem de moda.
E não ficou nada daqueles dias, nada
mais que latas vazias e bitucas apagadas,
risos em fotos murchas, bilhetes rasgados,
e a serragem com que, ao amanhecer, varreram os bares.
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