Enquanto Moreno continua o processo de negar a realidade e os detentores da dívida equatoriana se fazem cada vez mais ricos, em Guayaquil o horror está nas ruas, nas casas e nos olhos de um povo, ferido uma vez mais pela infâmia das elites dominantes
O cheiro acre da morte está nas casas, nos bairros, nas ruas, sufocando Guayaquil. A “pérola do pacífico”, para o comércio internacional e comércio portuário, é a cidade da oligarquia político-bancária, a mais populosa e, acima de tudo, a mais desigual do país, com bairros luxuosos e prósperos conformando uma dolorosa contradição com áreas inteiras sem água potável e saneamento básico. Não é de todo estranho o que acontece hoje; na verdade, podemos dizer que essa é a regra. Crua, sufocante e indignante, a imagem de cadáveres abandonados, amontoados ou queimados, como nos terríveis contos medievais da peste, representam não apenas a natureza excepcional ou o surgimento da pandemia de Covid-19, mas a dura regra da desigualdade e do racismo que são as tragédias concretas que se entrecruzam e estruturam o poder político e econômico do Equador desde os tempos coloniais.
Na cidade moderna – modelo de sucesso “cimento e especulação” realizado por quase três décadas pela direita social-cristã e pelos conglomerados da mídia e do poder financeiro –, não conseguem sequer estabelecer o número de mortes. Os únicos dados que podem nos fazer entender a extensão da tragédia são os do Registro Civil Provincial de Guayas, onde em apenas dois dias, 30 e 31 de março, 722 mortes foram registradas, um número superior ao de todo o mês de março de 2019. E a curva continua a subir.
A zona zero, o bairro da branquitude e oligarquia, Samborondón. Mais de vinte dias atrás, uma festa de casamento com centenas de convidadas e convidados. Infectados ilustres, incluindo sete prefeitos, parlamentares, representantes dos governos regionais e banqueiros. As elites de Samborondón, envaidecidas com suas próprias imagens nas redes sociais, contudo, continuam a jogar golfe, como se o vírus não pertencesse a elas. Acostumados a viver em uma bolha, longe da realidade do país, sustentados pelas diferenças óbvias de classe e raça. Desde o dia do famoso casamento, em Samborondón, os serviços de saúde são muito eficientes, realizam o teste de Covid-19 de porta em porta e as ruas são continuamente desinfetadas. O vírus, no entanto, rapidamente atravessou o muro de condomínios privados de luxo, perturbando a cidade, concentrando em pouco tempo quase todos os casos registrados nacionalmente. Os hospitais públicos são deixados à sua própria sorte, sem remédios e dispositivos mínimos para a segurança do pessoal de saúde, com cadáveres acumulados nas salas de espera, agora reduzidas a câmaras mortuárias.
Em um relatório recente sobre a epidemia, a Anistia Internacional alertou para a censura, discriminação no acesso ao direito à saúde e detenções arbitrárias que poderiam ter ocorrido em vários países durante a emergência de Covid-19. O Equador é sem sombra de dúvidas uma dessas nações, com o governo de Moreno parecendo ter entrado em um estado de mitomania aguda. Ele tenta de todas as formas esconder suas responsabilidades, ocultando os dados do genocídio em andamento, adotando protocolos de saúde que não fornecem o teste para a maioria dessas mortes, que dessa forma não são contabilizadas nas estatísticas oficiais. Segundo Santiago Ron, professor de biologia evolutiva da Pontifícia Universidade Católica do Equador, ao considerar o percentual de positividade do vírus sobre o total de testes aplicados, quase a metade (48%) resulta positiva, um valor muito maior para outros países, inclusive Itália no pico de contágio ou os Estados Unidos.
“Apenas”
A princípio, embora tenha sido oficialmente comunicado que o número de mortos para Covid-19 em Guayaquil era de “apenas” 42, a ministra do Interior Maria Paula Romo propôs nada menos que a preparação de valas comuns, uma maneira rápida de se livrar dos corpos, e para cidadãs e cidadãos, uma dolorosa memória das ditaduras militares dos anos 1970. Nada mau para uma ministra que foi denunciada há apenas três meses pela Corte Interamericana de Direitos Humanos como uma das principais responsáveis pelos assassinatos e graves violações dos direitos humanos durante os protestos de outubro de 2019.
Enquanto isso, o presidente Moreno, que, como habitualmente, em tempos difíceis foge, refugiou-se nas Ilhas Galápagos, de onde, por causa da pressão e da comoção popular, voltou prometendo sepulturas dignas, admitindo apressadamente a falta de confiabilidade dos dados oficiais e convidando – de uma maneira tragicômica, para dizer o mínimo – seu próprio governo a ser “mais transparente”. É claro que Moreno estava mentindo, antes de tudo sobre o enterro digno: passamos rapidamente da estratégia de valas comuns para o modelo de caixões de papelão. É isso mesmo, caixões de papelão!
E para piorar as coisas, o governo continua mentindo sobre os dados. No domingo de Páscoa, enquanto o número oficial de 333 mortes continuava implausível, a Defensoria Pública e as associações de direitos humanos coletaram centenas de queixas de médicas e médicos, enfermeiras e familiares das vítimas, que testemunham a pressão do governo para encobrir as informações sobre o genocídio e a censura sobre as condições desastrosas que o sistema nacional de saúde enfrenta.
César Paz y Miño, médico e diretor do Centro de Pesquisa Genética e Genômica da Universidade Equinocial de Quito, é muito claro sobre isso. Antes de tudo, dispara contra o sistema estatístico do Ministério da Saúde, absolutamente inadequado, com um número irrisório de testes realizados que não conseguem tornar a situação minimamente apreciável do ponto de vista científico. Ele denuncia as graves deficiências do sistema, que atualmente não possui reagentes químicos para desenvolver os testes e medicamentos adequados aos protocolos de tratamento, em consonância com as recomendações da OMS. Por outro lado, diz Paz y Miño, o sistema de saúde e pesquisa “foi literalmente asfixiado” nos últimos três anos para favorecer os interesses dos hospitais privados. Portanto, não é de admirar que existam apenas duzentas unidades de terapia intensiva em todo o país.
Investimento público
O investimento público foi praticamente congelado, os gastos foram reduzidos em 36%, com demissões em massa de médicos e profissionais da saúde. A pesquisa na área médica foi redefinida e é por isso que não há sequer recursos humanos para estabelecer um plano nacional de monitoramento. Dessa maneira, “a discriminação racial e de classe do direito à saúde é consumida, enquanto as elites se refugiam em hospitais particulares, com serviços eficientes e abundância de medicamentos, enquanto as pessoas são coagidas a um sistema público que não dispõe de recursos para fazer absolutamente nada”. Nem mesmo para proteger a saúde dos próprios profissionais de saúde. E não é só isso, conclui Paz y Miño, que denuncia o aumento de casos de “doenças infecciosas graves, como dengue, malária e chikungunya que, que não são mais monitoradas por um sistema agora em colapso, estão atingindo um número crescente de vítimas”.
Enquanto isso, o decreto presidencial que impõe o distanciamento social, e entrou em vigor em 12 de março, é uma verdadeira panela de pressão. Se a quarentena e o isolamento são as primeiras medidas de precaução, também devemos nos perguntar sobre as condições de famílias numerosas e vulneráveis, que vivem em poucos metros quadrados e de forma precária. Devemos considerar também que mais de 60% da população economicamente ativa do Equador – cerca de 5 milhões de pessoas – está desempregada ou subempregadas, enquanto a vulnerabilidade social e a pobreza começaram a crescer novamente pela primeira vez nos últimos dez anos. O governo adicionou gasolina a essa fogueira aprovando novas medidas de austeridade e depressão econômica (redução de salários, nenhum tipo de incentivo fiscal ou financeiro para a reativação da produção) e, sendo célere no pagamento de US$ 324 milhões ao FMI, dinheiro que poderia ser usado para combater a emergência social e sanitária. Os cofres do Estado foram limpos e os interesses dos credores prevaleceram sobre a vida dos cidadãos.
Desse modo, enquanto Moreno continua o processo de negar a realidade e os detentores da dívida equatoriana se fazem cada vez mais ricos, em Guayaquil o horror está nas ruas, nas casas, nos olhos de um povo ferido uma vez mais pela infâmia das elites dominantes. Como Joaquín Gallegos Lara, que no romance As cruzes na água denunciou o massacre dos trabalhadores de Guayaquil durante a greve de 15 de novembro de 1922, perpetrada pelo Exército equatoriano, também hoje temos a obrigação de denunciar a barbárie que as elites no Equador continuam a infligir ao seu próprio povo. Porque crime é acostumar-se ao horror.
*Rose Barboza é doutoranda no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal; e Francesco Maniglio é professor na Universidad Tecnica de Manabí, Equador.