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quinta-feira, 25 abril, 2024

Enquanto o Titanic afunda a orquestra segue tocando

Roberto Bueno*

São cumpridos 108 anos desde que no dia 10 de abril de 1912 o tristemente célebre e luxuosíssimo navio de passageiros Titanic foi lançado ao mar. Projetado para ser um autêntico potentado marítimo, maravilha da engenharia naval, contava com os mais avançados requintes tecnológicos e de segurança até então imaginados, finalizado com os melhores materiais disponíveis no período. O contexto do empreendimento de engenharia era o da Belle Époque, período que mediou entre o desfecho da Guerra Franco-Prussiana (1871) e os primeiros sons dos canhões que anunciavam a eclosão da Primeira Grande Guerra Mundial em 1914. O período pré-bélico foi marcado pelo cosmopolitismo, por sucessivas inovações, pela diversão e leveza, momento em que se divisava o desenvolvimento em todos os campos, tecnológico inclusive, ademais de recheado por notáveis movimentos nas artes como o Impressionismo e a Art Nouveau.

Finalizados os testes em Belfast, a viagem do Titanic à Nova Iorque desde em Southampton tinha à frente da ponte de comando Edward John Smith (1850-1912), que entraria para os registros da história em face da condução do colosso sinistrado. Outras figuras entram no pantanoso território da fama por vias menos louváveis, conhecidas que são aquelas personalidades frustradas que o acaso resgata do esgoto antropológico para ascender à ribalta da história através de obtusas mobilizações das profundezas da irracionalidade humana.

Após lançado ao mar o Titanic não conheceu de imediato as profundezas do oceano, senão no dia 14 de abril de 1912, quando a escura madrugada assistiu a consumação da tragédia com aproximadas 2.224 a bordo, dentre as quais cerca de 1.514 não tiveram acesso aos botes salva-vidas, enquanto outras afortunadas o lograram, oscilantes 710, majoritariamente mulheres e crianças, até o seu final resgate pelo RMS Carpathia quando a madrugada já ia avançada e se avizinhava o amanhecer. O resultado foi trágico e, como ocorre nos acidentes, uma soma de eventos contribuiu para o desfecho. Assim, à parte equívocos na condução da embarcação, decisões equivocadas ou mesmo tardiamente tomadas, más avaliações sobre o conjunto de informações sobre as condições meteorológicas e sobre a própria carta náutica disponível, é fato, estamos às voltas com o que se classifica como um acidente de mortífero desenlace.

O acidente do Titanic difere radicalmente da produção regiamente organizada de mortes em série. Aqui a falha é o rebaixamento do número de mortos para níveis estatísticos abaixo do esperado. O Titanic mobilizou alta tecnologia para o desfrute da vida, mas não infenso às falhas. O segundo cenário é o da mobilização de apurada tecnologia e sofisticado projeto ideológico-político para fins de eliminação de vidas, e neste caso a eliminação a restrição dos salva-vidas hoje transmutados em respiradores automáticos é a regra. As eventuais deficiências no projeto do Titanic não foram mais do que eventos que somaram às circunstâncias para a ocorrência da tragédia, enquanto o projeto ideológico-político em curso no universo neofascista é orientado à consumação da tragédia, contendo em seu núcleo duro a previsão de ausência dos procedimentos de evacuação que o Titanic possuía, embora sem a devida eficiência, como se saberia depois. Enquanto no início do século XX o Titanic previa estratégias de emergência para salvar vidas, o neofascismo dispõe de estratégias para evitar o acesso às portas de fuga. O resultado planejado é o desastre, e o plano de viagem do Titanic não. Transcorreram cem intensos anos, e em meio disto, um Holocausto. O que aprendemos?

Às portas de 1914, ainda sob a inspiração da cultura da Belle Époque a inspiração era em projeto de vida, e o naufrágio do Titanic talvez tenha representado o ocaso da cromática antropológica e estética de todo um tempo, pois do naufrágio em 14 de abril de 1912 a eclosão do conflito bélico em 28 de julho de 1914 medeiam escassos momentos em que o mundo seria apresentado ao cinza-chumbo ensanguentado das guerras. O trânsito de um século desde então hoje mostra a ultrapassagem de uma era, com a civilização sendo posta em xeque, agora traduzida no projeto de organizar a morte de milhões de indivíduos. A pauta oculta sob o espesso véu de fumaça emanado das caldeiras à vapor desta nau é a realização de uma Auschwitz planetária, planejada metodicamente. Não há acidentes nem incidentes, organização superlativa sob o signo da instrumentalização da racionalidade, embora possa ser útil aproveitar-se de eventuais acidentes naturais para potencializar os propósitos de extermínio.

À diferença do ocorrido na era titânica, o que está em curso é a instauração da tragédia como modo de operação do sistema político a partir dos interesses econômicos subjacentes. Ativos, os atores centrais deste processo aguardam a deflagração da hora em que a água começará a entrar no casco, a hora titânica de 23h40 do dia 14.04.1912, quanto o fatídico iceberg se apresentou e afundou o portento. Ali, acidente, aqui, método. Enquanto a água invadia os porões e na casa de máquinas grassava o desespero, e quando chegavam os primeiros sinais do desastre aos operadores da nau, na ausência de soar o alarme, no convés os passageiros seguem a vida, sob a audição dos últimos tilintares de taças, deleitando-se com os movimentos soltos da orquestra que seguirá executando até que, finalmente, a água lhes alcance os corpos e, irremediavelmente, a envolva nas frias águas atlânticas capazes de liquidar em minutos por hipotermia, destino compartilhado com as mais de mil almas então a bordo entre passageiros e tripulação.

O Titanic é notável naufrágio que entrou para a história naval, magnífico desastre que encontra analogias com certas curvaturas da história, e sugiro que as há com o ocaso de alicerces da civilização contemporânea, tais como a ética da precedência do humano, a ordem democrático-parlamentar e políticas econômicas centradas no desenvolvimento social conectadas com o exercício da soberania popular. Embarcado com a melhor tecnologia disponível, a quebra do Titanic em meio ao Oceano Atlântico marcou a ruptura de uma época que respiraria escassos meses para elaborar o luto histórico até que soassem os canhões em território europeu, e então, novamente como no Titanic, o sistema já não proveria botes salva-vidas para todos.

A tragédia do Titanic foi magnificada pelo fato do projeto não ter previsto botes salva-vidas suficientes para o total da capacidade de transportados entre clientes e a tripulação. Rigorosamente, o projeto não havia sido concebido para salvar as vidas daqueles que adquiriam os tíquetes para o transporte em tão sofisticado projeto náutico e nem tampouco para salvar as vidas daqueles trabalhadores que operavam o colosso. Era uma operação matemática elementar. A prioridade foi do cálculo econômico e, assim, os botes salva-vidas diminuídos em número até mesmo por consideração a questões de ordem estética. O Titanic dispunha de 20 botes salva-vidas, com capacidade de abrigar, no limite, apenas 1.178 pessoas, do total de aproximadas 2.224 que estavam a bordo, considerando que a capacidade total era de 3.327 passageiros. No momento da evacuação foram as vagas nos botes foram distribuídas desigualmente para os ocupantes das três classes de passageiros do navio, à semelhança do sistema econômico e da organização política contemporânea neo-fáscio-financista global, cuja lógica de operação é de que a salvação do sistema bancário precede à da vida de milhões de pessoas.

Em caso de acidente, a concepção do projeto naval contemplava exclusivamente a salvação de minoria de passageiros, majoritariamente os ocupantes da primeira classe, sendo vasto o número de excluídos. O sistema econômico neo-fáscio-financista atual emula tal desprezo. No trágico acidente com o Titanic, a evacuação foi realizada sob a ordem de que as mulheres e crianças deveriam ocupar os primeiros espaços nos botes salva-vidas. Reconhecidas as limitações do projeto do navio, e nas efetivas condições de operacionalização da evacuação, a preocupação era a de salvar vidas, mas já não é este o caso do neofascismo contemporâneo coordenado desde os EUA e seus dispersos assessores ideológico-econômicos. A este projeto interessa eliminar vidas, e os executores lhe são bastante fiéis, tais como Eichmanns redividos, tratando de maximizar seus propósitos. Sob o atual sistema econômico simplesmente não há botes salva-vidas para todos, e nem respiradores automáticos, e como se um dia tantos morreram afogados ou por hipotermia nas gélidas águas atlânticas em que se partiu o Titanic, hoje o sistema organiza a oferta de mortes cruéis. Não é preciso que seja assim. Sabemos que os dispositivos da morte são acionados tão somente por livre escolha. Tudo é mesmo escolha, é eleição de prioridades, sobretudo em um país como o Brasil, cuja distribuição equânime do PIB implicaria em ganhos mensais aproximados de R$11.000,00 per capita. Há, portanto, botes salva-vidas e respiradores automáticos para todos, mas o Titanic é aqui e roubaram o seu bote salva-vidas.

Os acidentes são decorrência de diversas causas concorrentes, e no caso do Titanic, por exemplo, foram emitidos diversos sinais de que o mar continha blocos de gelo, tendo os seus vigias avistado e avisado sobre a aproximação ao iceberg. Desafiadoramente o Titanic sulcava as águas em meio à escuridão sob velocidade máxima mesmo sob o risco anunciado, como se aquela nau fosse infensa a quaisquer avarias, insubmergível. Não apenas não há estruturas invencíveis como todas requerem medidas acautelatórias para que sejam mantidas, vale dizer, por magníficas que seja, não há instituições cuja fortaleza não seja passível de colapsamento. Prévio aviso da vigia ao comando, houve tentativa de desviar o barco, mas sem sucesso. Reação tardia a múltiplos desafios é aceitar a iminência da tragédia, tal como pode suceder com sistemas políticos expostos à ruptura. A vigia alertara para evitar o desastre e o comando do titã marítimo igualmente operou para, ainda que tardiamente, lográ-lo, enquanto que o atual projeto imperial desenhou a consumação da tragédia em seus territórios ocupados.

Com o Titanic submergiu o Zeitgeist de uma era, e assim a Belle Époche cedeu espaço para a explosão traduzida na literatura jüngeriana. A crise do paradigma do Welfare State foi sincronizando as condições históricas para o seu colapsamento. Avança o neo-fáscio-financismo impondo a submersão de uma era cujo estágio civilizatório impunha a prioridade formal do humano. É empurrada a profundezas similares às da barbárie nazista materializadas nos campo de concentração, mas agora redimensionados para operar em escala planetária, no qual a anomia e os horrores são a regra para o humano e protegido o alto capital. Os limites já não são mais impostos pelos arames farpados, muros e cães, metralhadoras e cercas elétricas, mas por controles biodigitais. O neo-fáscio- financismo foi criado e é alimentado pela cultura reativa ao totalitarismo cuja vitória lhe emprestou o germe do derrotado para seguir seu lento desenvolvimento no coração da América até este seu final, portentoso e fatal florescimento histórico em que tensiona pela criação de uma vasta Auschwitz planetária.

A nova ordem planetária impõe as condições para o desaparecimento físico em territórios nos quais a riqueza material poderia assistir as necessidades básicas da massa. Assim como as prioridades na evacuação do Titanic e ocupação de seus botes salva-vidas, nos dias correntes mortes estão previamente contratadas, como a de grande parte dos passageiros daquela fatídica nau que não ocupavam a primeira classe. Do mesmo modo ocorre quando a chefia de órgãos de Estado do Brasil assiste incólume e com serena passividade o naufrágio de dezenas de milhares de vidas. Sem embargo, aqui também há método e racionalidade, pois entre elas há uma ordem hierárquica, pois enquanto escasseam os leitos públicos para atender dezenas de milhões, entre os poucos milhares de ricos tal carência não está projetada no horizonte próximo. Enquanto os pobres e deserdados de todo tipo não têm acesso a leitos nem aos indispensáveis aparelhos de respiração também lá em 1912 os eleitos para a salvação já eram escolhidos desde o projeto do navio com o posicionamento estrutural das cabines, dos botes e o plano de evacuação, que explicitava tratamento amplamente desigual às três classes de passageiros que o navio transportava.

O perigo que rondava o Titanic finalmente venceu a sua fortaleza vazando a água ao seu interior, e entre nós também a casa de máquinas já o percebeu, muito embora aqui no convés não tenhamos percebido ainda a inteireza do dano. Até à pouco os vigias advertiam do tamanho do iceberg, mas a ponte de comando desta nau brasilis não recepcionou o soar do apito para a rota de colisão, pois à diferença de Smith, estamos à toda velocidade para realmente não fugir à colisão, não há qualquer tentativa ou sequer esboço de livrar-nos do choque frontal que liquidará definitivamente nosso esquema constitucional e o sistema de liberdades.

O resistente aço do Titanic já partido afunda rapidamente no mar gélido ocupado em tragar tantas vidas, enquanto a orquestra segue tocando impassível, como se o movimento e a sonoridade invasiva das águas expressasse entusiástico ruído de aplausos e o romper dos cristais e das garrafas enunciasse o triunfo final da orquestra. A dissonância cognitiva rasga o plano do real. Agora já é tempo da orquestra dar à execução da marcha fúnebre, o réquiem para a ordem. Já é noite alta, a lua está encoberta, as águas são frias, o barco está cheio, estamos muito longe da costa, a implacável tormenta está próxima.

*Roberto Bueno é professor universitário. Doutor em Filosofia do Direito (UFPR). Mestre em Filosofia (Universidade Federal do Ceará / UFC). Especialista em Direito Constitucional e Ciência Política (Centro de Estudios Políticos y Constitucionales / Madrid). Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Direito da UnB (2016-2019). Pós-Doutor em Filosofia do Direito e Teoria do Estado (UNIVEM).

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