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sexta-feira, 26 julho, 2024

Educação para dominação, panaceia ou libertação

“A educação é o único caminho para emancipar o homem. Desenvolvimento sem educação é criação de riquezas apenas para alguns privilegiados”.

(Leonel de Moura Brizola)

 Pedro Augusto Pinho*
Pergunte a qualquer pessoa, de qualquer classe social, ideologia política ou religião qual a grande necessidade de nossa sociedade. Tenho absoluta convicção que a maioria absoluta responderá que é a educação do povo. Mas prossiga pedindo que especifique melhor no que consiste esta educação. E aí, caro leitor, você encontrará os mais disparatados e incongruentes discursos, as mais extraordinárias e ambíguas conceituações. Irá, por exemplo, ouvir da má qualificação profissional, da incapacidade de votar, da submissão ideológica, da ausência da crença divina e por aí afora.
A educação sempre serviu, numa sociedade de tantas desigualdades como a brasileira, para marcar os territórios de quem pode e de quem não pode, quem manda e quem obedece, quem é o senhor ou quem é o escravo. A educação é um fosso meritocrático pelo qual se mantém a sujeição colonial.
Pierre Bourdieu, sociólogo francês, afirma que a formação do cidadão tem início ainda no berço, com os cheiros, sons, sabores que lhe chegam pelos sentidos. Assim, desde o nascituro já se coloca a distinção que marcará a vida dos despossuidos e dos burgueses. Diz Bartolomeu Campos de Queirós em seu livro “Os Cinco Sentidos” (Global Editora, 2009): “por meio dos sentidos suspeitamos o mundo”.
Certamente ao aprovar o Programa Brasil Carinhoso, para crianças de 0 a 6 anos, a Presidente Dilma Rousseff não apenas cuidava da alimentação dos atingidos mas dava início à inserção daqueles infantes no processo da construção da cidadania. Recordemos o conceito de cidadão em Nancy Fraser: aquele que tem a paridade participativa, ou seja, que, em condição de igualdade com todos os outros, atua na definição e condução do Estado, do Bem Comum..
Tenhamos também em mente que a educação, em todo tempo, é obrigação do Estado. A ação privada não é interditada, mas deve atender ao objetivo fundamental da formação do cidadão.
E esta condição não é de agora. Transcrevo de conceituado pedagogo o texto que se segue:
“Deus que dotara o Brasil com a neve ao sul e o calor abrasador do norte, com a lua serena e meiga do estio e as noites nubladas do inverno, com o terreno fértil dos campos e as jazidas inesgotáveis das minas, com a variedade infinita das plantas e dos animais, não podia negar a seus filhos capacidade para todos cometimentos; mas qual de nós não tem embasbacado, diante do mais insignificante produto de arte, para bradar cheio de pasmo imbecil: isto é arte de inglês?!
Sim, meus senhores, o brasileiro não crê em si, nem no poder do trabalho, e daí vem que só ele se educa para a vida passiva do empregado.”
Esta alocução, esclarecedora e cruel de nossa autoestima e da mente colonizada, está na conferência proferida no Atheneu Pedagógico, no Rio de Janeiro, por volta de 1880, pelo professor Manoel Olympio Rodrigues da Costa, do Colégio Pedro II (Conferência Pegagógica, 24 pags, in-4º, Typographia de Domingos Luiz dos Santos).
E não se diga que a educação estava fora do interesse das autoridades do Império. O professor Rodrigues da Costa foi convocado a dar parecer a aqueles governantes sobre as carteiras escolares para uso nas escolas secundárias brasileiras: deveriam ser individuais ou para quatro alunos, como se usava então? Importante questão pedagógica que demonstra a profundidade do interesse na formação do cidadão brasileiro.
Seria errôneo e maldoso imaginar que nossos pedagogos compartilhassem com esta alienação proposta como formadora para nossa gente. Sempre havia os que por venalidade ou ignorância seguissem, algumas vezes com sucesso pessoal, os interesses dos poderosos. Mas tivemos, na compreensão da época, além de Manoel Olympio, e sem querer nem poder citar todos nossos conscientes e nacionalistas pedagogos, Lourenço Filho, Fernando Azevedo e Anísio Teixeira nos anos 1920, os signatários da Educação Nova após a Revolução de 1930, a compreensão ampla de Gustavo Capanema, criador do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), em 1938, e Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro e o grande mestre Paulo Freire.
No entanto, as elites dirigentes do Brasil, formadas na corrupção da escravidão,  da alienação para o estrangeiro dos bens nacionais, renováveis ou não, e do rentismo, sempre se opuseram a promover a educação no País, ao contrário de seus demagógicos discursos.
                                            “Qualquer fazer na educação não é um processo neutro”
                                                  Maria Francisca de Pinho Valle, Palestra em abril de 2017
                                                  na Universidade Católica de Petrópolis.
Mas o que é, na compreensão da construção da cidadania, a educação?
É, primordialmente, a tomada de consciência de sua própria humanidade.  E, ao fazê-lo, respeitar as diferenças e combater as desigualdades. Paulo Freire (Pedagogia da Autonomia, Paz e Terra, 37ª Edição, SP, 2008) afirma: “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para sua própria produção ou sua construção”. Ensinar exige respeito à autonomia do ser educando.
Na França, um movimento denominado Grupo Francês de Educação Nova (GFEN) propõe uma concepção democrática e solidária do ensino que “permita pensar o homem em sua dimensão pessoal e social”. Este Grupo, segundo sua participante Etiennette Vellas, tem buscado vencer a desigualdade diante da construção dos saberes.
Que são os saberes, nesta perspectiva pedagógica?
Boaventura de Sousa Santos, renomado pensador português, no ensaio “Para além do pensamento abissal, das linhas gerais a uma ecologia de saberes” (Novos Estudos CEBRAP, nº 79, SP, 2007), esclarece que há, no pensamento ocidental, um “sistema de distinções visíveis e invisíveis (criado pelos detentores do Poder), sendo que estas últimas fundamentam as primeiras”. Para este autor, parte da sociedade é entendida como inexistente ou invisível pela outra. Prossegue Boaventura Santos “as distinções invisíveis são estabelecidas por meio de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos: o “deste lado da linha” e o “do outro lado da linha”. A divisão é tal que “o outro lado da linha” desaparece como realidade, torna-se inexistente e é mesmo produzido como inexistente. Inexistência significa não existir sob qualquer modo de ser relevante ou compreensível. Tudo aquilo que é produzido como inexistente é excluído de forma radical porque permanece exterior ao universo que a própria concepção de inclusão considera como o “outro”. A característica fundamental do pensamento abissal é a impossibilidade da co-presença dos dois lados da linha”. E assim, não usufruirão de qualquer benefício social e cultural dos que definem as regras da sociedade.
É a forma excludente da educação que a compreensão dos saberes desfaz. Retomemos Paulo Freire, na obra citada, que dá a pertinente e a oportuna introdução desta pedagogia dos saberes: “O discurso da globalização que fala da ética esconde, porém, que a sua é a ética do mercado e não a ética universal do ser humano. O discurso da globalização astutamente oculta ou nela busca penumbrar a reedição intensificada ao máximo da medonha malvadez que vem robustecendo a riqueza de uns poucos e verticalizando a pobreza e a miséria de milhões”.
Numa exposição quase operacional, Philippe Meirieu, ligado ao GFEN, enumera quatro riscos à educação para cidadania: primeiro, que denomina estrutural, consiste em dividir e diferenciar estabelecimentos e redes educativas, como, por exemplo, funcionais e culturais. A segunda, pedagógica, separa conhecimentos e competências; a terceira, chamada institucional, se relaciona com as aprendizagens e com a socialização; por fim, a filosófica trata do universal e do particular.
Vou me ater aos aspectos pedagógico e filosófico. Transcrevo Meirieu em “Rumo a uma Escola de Cidadania” (A Construção dos Saberes e da Cidadania, Artmed, RS, 2002): “extremamente grave e ameaçadora para a formação de um verdadeiro cidadão é a clivagem entre os conhecimentos e as competências”. Em outras palavras, há um conhecimento que vem etiquetado, rotulado e serve para o bom desempenho acadêmico. Outro que é a compreensão dos seres e das coisas, que faz o agricultor analfabeto ser exitoso, pelo íntimo conhecimento dos solos, dos tempos e climas e dos tipos de colheitas, por exemplo. Esclarece Meirieu: “na vida cotidiana todos temos de tomar decisões não-redutíveis à soma das informações que recebemos”.
A distinção particular/universal é decisiva para a construção da cidadania. Trata da delicada questão do direito à diferença. Nossas escolas, as comunicações de massa, as opções colocadas à sociedade pelos poderes são do tipo “ou  ou”, ou utilitário ou cultural, ou central ou periférico, que leva o pensador Edgar Morin a afirmar que esta sociedade se tornou esquizóide.
O campo do invisível, de Boaventura de Sousa Santos, já estava na palestra de Manoel Olympio: “permiti que eu reproduza, em forma de queixume, a censura que desde a renascença fazem pedagogistas aos métodos de ensino, que sobrecarregam a memória e não curam do desenvolvimento regular das faculdades, método a que o governo de meu país deu existência legal com o exame de pontos”.
O sistema meritocrático é de um rol de conhecimentos e de nenhum saber! É a fórmula para constituição dos invisíveis, a maioria absoluta do povo, contrapondo-se aos privilegiados do conhecimento que pouco atendem a si mesmo e menos ainda à sociedade. Mesmo erroneamente confundindo educação com adestramento, observe a narrativa, dentro de um império colonial, de Viviane Forrester, crítica do neoliberalismo, feita em Uma Estranha Ditadura (UNESP, 2001): “conhecemos os múltiplos casos de jovens ou adultos diplomados, e até muito bem diplomados, que só obtêm tarefas subalternas que eles são obrigados a aceitar a fim de sobreviver. Eis o resultado de uma política de sórdidos princípios econômicos ultraliberais, baseados na destruição de uma civilização e do futuro prometido às novas gerações”.
Causa vergonha estar numa sociedade que desmancha a educação com a pífia argumentação de uma escola sem partido. A qual poderíamos agora acrescentar: sem cidadania, sem dignidade e sem saber.
Não há dúvida que nos falta educação, aquela que inclua todos os brasileiros, que lhes dê a consciência do ser, individual e social, que lhe propicie a saudável autoestima pessoal e da nossa nacionalidade e que conteste as falazes vozes da dominação colonial e da escravidão, em quaisquer de suas roupagens.
*Pedro Augusto Pinho, avô, administrador aposentado

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