Foto: Ricardo Stuckert
Por Roberto Amaral, em seu blog:
A recente pulsão democrática, cujo epicentro foi a vetusta faculdade de direito da USP, teve continuidade na simbologia da posse do novo presidente do TSE, procedimento burocrático, protocolar, transformado em ato político. Registro, confiando que não cairá no vazio, o discurso do ministro Alexandre Moraes: direto, claro, sem as tergiversações parnasianas de seu antecessor.
A reação democrática foi calorosamente bem recebida pela grande imprensa. Falou o andar de cima, e desta vez em defesa da soberania do voto, pela qual tanto se batem, hoje mais do que nunca, as esquerdas e as forças progressistas de um modo geral. O que se costuma chamar de “sociedade brasileira” diz aos buliçosos ministro da defesa e comandante do exército que não será admitida a anunciada tentativa de questionamento do processo eleitoral. E o candidato do projeto militar-empresarial protofascista, deslocado e constrangido, foi advertido de que a justiça eleitoral, tão comprometida com as irregularidades do processo de 2018, desta feita estará vigilante quanto às ameaças de conturbar a campanha eleitoral. Esperamos que sim.
A novidade é benfazeja, eis que o histórico de intervenções do baronato na vida política brasileira despreza o viés legalista. Não será demais lembrar o 1º de abril de 1964. A viabilidade do golpe militar decorreu da participação ativa dos liberais das arcadas do Largo de São Francisco, do empresariado e da grande imprensa, ademais da notória e fartamente documentada intervenção do Departamento de Estado dos EUA e de sua execrável CIA. Como é sabido, o Estado de São Paulo, líder da “imprensa liberal”, funcionou (através de Júlio de Mesquita) como centro arrecadador de recursos junto ao empresariado, que, já na ditadura, financiou a famigerada “Operação Bandeirantes”, centro militar-policial de tortura e assassinatos. Ao lado dos Mesquitas atuava o notório Adhemar de Barros. Está registrado nas memórias do General Cordeiro de Farias (Camargo-Góes. Diálogo com Cordeiro de Farias. Nova Fronteira, 1981, pp 552-3). No primeiro dia da fratura do regime, o golpe foi recepcionado pelo presidente do STF, ministro Ribeiro da Costa, depois do ato arbitrário do presidente do Congresso, senador Auro de Moura Andrade, declaratório da vacância da presidência, quando era notório que Jango estava no Rio Grande do Sul, onde seria instado por Leonel Brizola a uma resistência que pela segunda vez refugou. Ou seja, todas as instâncias do poder participaram do golpe. É assim, e só assim, que os golpes têm sucesso e se consolidam.
Nos idos preparatórios de 2016 (e, a partir do impeachment, da tragédia programada de 2018), tendo como pano de fundo o silêncio dos liberais, a omissão dos “democratas” e o apoio dos autodenominados “socialdemocratas” (o “centro” que tem sido, sempre, na política brasileira, uma variante da direita), a articulação golpista não foi diversa, nem outros seus agentes. Em suas lamentáveis memórias, o general Villas Bôas narra seus entendimentos com o vice-presidente perjuro, ainda como comandante do exército no governo Dilma, nas articulações golpistas. A sabotagem do Departamento de Estado chegou ao cúmulo de intervir na Petrobras e grampear o telefone da presidente da república! Agia o grande capital, temeroso do que supunha ser a emergência dos humilhados e ofendidos, dos deserdados da terra e da cidadania. Quem operou o golpe? Os herdeiros da colônia latifundiária e escravocrata, o passado que ainda nos molda, decantado por Gilberto Freyre como idilicamente patrimonial, ibérico e católico: os capitães da grande imprensa (cuja guinada hoje saudamos); a FIESP, chefiada por um lobista desprezível; o conluio peçonhento de juiz inescrupuloso e procuradores desonestos (sobre os quais pesa denúncia de corrupção ditada pelo plenário do TCU) com a grande imprensa e o poder judiciário em suas diversas instâncias.
Para asfaltar o caminho que levaria à eleição do genocida – impune graças à solidariedade de um congresso pusilânime, auxiliado por um procurador-geral da república sem compromissos com a ordem constitucional –, foi decisiva a atuação do STF (na preparação do golpe e na decretação da inelegibilidade de Lula). A justiça, genuflexa, não carecia mais de admoestações, mas o comandante do exército cuidou de dizer como o STF deveria votar no habeas corpus impetrado pela defesa do petista. Como se sabe, foi atendido. Ao papel do exército, lastimosamente reincidente, deve-se, aliás, o único registro de gesto digno que se pode atribuir ao capitão: logo após a posse na presidência, agradeceu de público ao general Villas Bôas pelos serviços prestados à sua eleição.
Imprensa, grande empresariado, ministério público, poder judiciário não mediram mãos, pois chegaram à ignomínia da prisão ilegal de Lula, da qual são cúmplices.
Essas observações visam a pôr de manifesto uma obviedade que, todavia, precisa ser lembrada às forças populares: se, passados esses duros últimos anos, temos o que comemorar na abertura da campanha eleitoral, é preciso ter em conta que ainda não atravessamos o Rubicão.
Saudemos, repito, a reação de setores ponderáveis da classe dominante e a anunciada disposição de resistência institucional à baderna neofascista. Mas será suicídio confiar ao sistema a sobrevivência do processo democrático, da qual depende o avanço das forças democráticas e progressistas.
As eleições são fundamentais e as esquerdas apostam nelas, mas a consolidação da atual democracia e seu aprofundamento com vistas à justiça social não são, nem jamais foram em toda a nossa história, mera decorrência da ordem institucional. Dependemos, como sempre, mas agora mais do que nunca, da mobilização popular. Dependemos de as esquerdas compreenderem que, se a conquista do voto é fundamental, não é, porém, fim único do processo eleitoral: toda eleição, para a esquerda, e esta mais do que qualquer outra, é o momento privilegiado da organização popular, da politização das massas e do proselitismo socialista. Jamais a classe dominante, ou a caserna, seu braço armado, foram fiadoras da democracia, dos direitos individuais, e do império da ordem constitucional. Muito menos da justiça social. Só grandes massas organizadas e mobilizadas, na campanha, no pleito eleitoral e na defesa de princípios políticos, podem enfrentar a ameaça protofascista, o atraso, a alienação. Só a organização popular pode assegurar governos democráticos, comprometidos com a soberania nacional e o combate às desigualdades sociais. Foi a mobilização popular que 1961 impediu o golpe que pretendia impedir a posse de João Goulart e em 1985 (no rastro da campanha pelas eleições diretas) abreviou o ciclo militar. Mas a mobilização popular ainda é a grande ausente do cenário político atual, e não há sinais de que a campanha de Lula-Alckmin venha a elegê-la como seu eixo tático-político.
Só o rugido do povo, “um rugido forte o suficiente para deixar salvadores da pátria de rabo entre as pernas”, como observa o professor Manuel Domingos Neto, pode assegurar a democracia, derrotar o projeto militar-empresarial protofascista e, amanhã, garantir o governo Lula. Mas, isolado, o “rugir do povo”, ponto de partida, pode levar ao vazio político – como em 1954 nas horas seguintes ao suicídio de Getúlio Vargas e em 1961, quando o levante popular se encerrou que havia assegurado a posse capenga de Jango se encerrou na fraude da emenda parlamentarista –, se não desaguar na organização das forças populares. Naqueles momentos, como agora, faltou-lhes, como nos falta agora, a liderança de partidos revolucionários.
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Os militares e o 7 de setembro – Informam os jornais que o ministério da defesa, atendendo a exigências do capitão, suspendeu, no ano do bicentenário da independência, o tradicional desfile na avenida Presidente Vargas, no Rio de Janeiro. O ato “cívico-popular” será substituído por um desfile de tropas em Copacabana, animando comício eleitoral do presidente candidato à reeleição. Que ainda nos reservam os generais em termos de degradação corporativa?
Facínora impune – O desprezível major Curió passa a integrar a extensa galeria dos facínoras impunes da ditadura, ao lado do delegado Fleury e do brigadeiro Burnier. E de tantos e tantos outros, centenas, como os assassinos de Mário Alves, Vladimir Herzog e Stuart Angel, e os torturadores de Jacob Gorender e Apolônio de Carvalho.
Solidariedade – Nunca será tarde para prestar solidariedade ao escritor Salman Rushdie e repudiar a bestialidade religiosa.