por Armando Rodrigues Coelho Neto
No dia 24 de janeiro/18 o que aprendi do Direito morreu. Li ou quase li ou quase ouvi ou assisti muito sobre esse dia, num misto de profundidade e obviedades. Por pouco desisti de conversar com o leitor nesta segunda-feira. É como se nada mais se tivesse a dizer, diante das análises e mais análises sobre o retorno à Idade Média no raivoso e vingativo Tribunal Regional da 4ª Região.
Estava em Porto Alegre e, depois de passar quatro horas comprimido na compacta multidão na Esquina da Democracia, sem poder sair do lugar (no dia 23), não me animei muito, no dia 24, para enfrentar o bloqueio da operação de guerra montada contra o povo, patrocinada pela tirania oficial com requintes de maldade de fascistóides gaúchos. Até as luzes da Assembleia Estadual foram apagadas para inviabilizar um encontro de mulheres. Foi até bom, não iria caber mesmo tanta gente.
Havia um clima tenso no ar. E, apesar dos pesares, ainda tenho fontes secundárias na PF gaúcha – suposto celeiro de bolsopatas, tucanos convictos e arrependidos e um substancial braço maçom. De lá recebi informes sobre possíveis tumultos e ou radicalizações. O foco seria integrantes do MST. A propósito, o local reservado para esse segmento era tratado como “acampamento dos macacos”, sempre com uma anotação “tomara que chova bastante”. Portanto, tinha motivos pra me resguardar. A preocupação, aliás, soou mais procedente quando, no dia 22, durante o evento Juristas e Intelectuais pela democracia, foi notada a presença de policiais federais, militares e do Exército no recinto. Seria por simpatia ao movimento ou infiltração bisbilhoteira?
Aliás, um evento interessante, já que o jurista italiano, Luigi Ferrajoli, citado por onze a cada dez juízes e desembargadores do Rio Grande Sul, mandou nota desqualificando o trabalho da “desmasgistradura” brasileira. Entre os juristas, inclusive um de Portugal, ideia de “propriedade atribuída” era vista como excrescência jurídica, sem contar que o eixo acusatório pautado nas generalidades e acusações sem prova, feitas por pessoas que visavam ter benefícios. Depoimentos, registre-se, colhidos sob pressão, coação, já que colaboração premiada é espontânea e não forçada após meses de prisão ilegal. Também causava perplexidade, para o crime (in)específico, a dispensa de “prática de qualquer ato”, sob o argumento de que “corrupção independe da efetiva prática de ato de ofício por agente público e que não é necessário que a vantagem indevida esteja relacionada a um ato de ofício determinado”.
A falta de provas foi cinicamente tratada como prova de que provas foram destruídas. Desse modo, sem que praticamente ato algum possa ser atribuído ao ex-Presidente Lula, ele teria recebido como contrapartida um apartamento que não recebeu, não ocupou, não tem chave ou documento em seu nome. Algo muito parecido, no sentido inverso, com a conta aberta por Joesley Batista no exterior no nome dele, que só ele sabia, só ele movimentava, mas que não era dele. Coisas do Teatro do Absurdo de Eugène
Desse modo, o dia 23 começou tenso. No shopping Praias Belas, num famoso café, um pato militante ouvia atento convocação para confronto com membros do MST, acampados ali próximo. Longe dali, um local onde se presumia lá estivesse hospedado o presidente Lula foi assediado por membros radicais pró-justiceiros, que bradavam: “Lula ladrão, teu lugar é na prisão”. Aqui ali peças de um mosaico que aumentava a temperatura das horas que antecederam o justiçamento de Lula. Tudo isso vinha a se somar à campanha de medo, que se tornava visível com a presença do ostensivo aparato oficial de repressão.
Mais tarde, para agravar o quadro, veio a notícia de a loja maçônica Grande Oriente estava em pé de guerra e que o seu líder estava em cárcere privado no recinto há quatro dias. Rolou até filme de bodes contra bodes, apropriação de senhas, pastas de documentos, empurrões e safanões, coisa e tal. Chegou-se a especular que poderia ser racha entre o lado limpo que defende a democracia e o lado sujo favorável ao golpe. Mas no frigir dos ovos, ao que tudo indica, era roupa suja, muito suja sendo mal lavada a socos em casa.
Esse era o clima em Porto Alegre. Aliviados pra valer, só mesmo os garçons do Mercado Municipal, que comemoravam o movimento do dia. Um deles, do restaurante Naval chegou a dizer: “Nossa! Lula salvou a terça-feira do mercado”. Com inspiração tardia, eu poderia ter dito, mas não disse: “Ele pode salvar o Brasil. Já o fez antes…”
E veio o justiçamento. Não há nada que se escreva que não passe por um sentimento de revolta, decepção e ou tristeza. Sob a efervescência do pós-golpe, no qual a dita Corte Suprema se omitiu, sob o falso pretexto de respeitar a independência dos poderes da República, se limitou a disciplinar o rito do golpe. Não haveria mais no que acreditar, pois ignorou os clamores legais ou populares para impedir o golpe. Fingiu não saber que permitindo a cassação do voto popular estava violando a democracia e calou. Viabilizou a ascensão da quadrilha de Temer ao poder. Não havia mais por que acreditar no Poder Judiciário, sobretudo quando o arbítrio reescrevia o direito na barbárie curitibana.
A Justiça do Guarujá já vinha cobrando o condomínio e IPTU do tríplex de quem de direito. Depois, uma juíza federal do Distrito Federal agiu sobre o dono. Em caso algum era o Lula. Mas, prevaleceu a gambiarra sejumoriana endossada pelo TRF4. Valeu a novelinha chinfrim a la Aguinaldo Silva, no qual inhame serve de liame. O nexo entre atos e fatos foram ocultos, deixaram a ocultação à mingua de provas. Como tinha tudo de porco, o que poderia ser uma feijoada a Farsa Jato transformou em porca. O deputado Francischine, por exemplo, reduziu quase 300 páginas da sentença num filme de cinco minutos e, mais genérico que a sentença, apresentou aos internautas como prova, numa pseudo resposta ao jargão “cadê a prova”.
O eixo daquilo que seria prova ficou no campo das generalidade. Afinal, nos termos da condenação o crime da espécie dispensa a prática de qualquer ato; que corrupção independe da efetiva prática de ato de ofício por agente público; que não é necessário que a vantagem indevida esteja relacionada a um ato de ofício determinado. Desse modo, sem que praticamente ato algo possa ser atribuído ao ex-Presidente Lula, ele teria recebido como contrapartida um apartamento que não recebeu, não ocupou, nem está no seu nome. Algo muito parecido, no sentido inverso, com a conta aberta por Joesley no exterior no nome dele, só ele sabia, só ele movimentava, mas que não era dele. Coisas do Teatro do Absurdo de Eugène Ionesco.
Se já sabia de tudo isso, o que fui eu fazer em Porto Alegre? Por duas razões. Primeiramente, pensei que o Rio Grande do Sul é o berço do Direito Alternativo. Esse movimento não tem ideologia, mas consagra pontos teóricos significativos: não aceitação do sistema capitalista como modelo econômico; combate a miséria e o liberalismo burguês como sistema sociopolítico; luta por democracia e por igualdade de oportunidades e condição mínima e digna de vida para todos. Queria ver se haveria sintomas residuais de idpeias. Em segundo, para dizer que Lula não está só, que Lula não se resume a quatro letras nem o PT a duas. Fui para dizer que somos multiplicadores. E sai convicto de que quando a prostituição jurídica toma conta do judiciário as consequências são imprevisíveis.
Armando Rodrigues Coelho Neto – jornalista e advogado, delegado aposentado da Polícia Federal e ex-representante da Interpol em São Paulo
Jornal GGN