Pedro Augusto Pinho*
Em dois artigos (É culpa do PT, o Partido dos Tiradentes e Temer, um brasileiro ou O silêncio das ruas) procurei apresentar o Brasil colonial, na ótica reveladora que historiadores – majoritariamente com seus doutoramentos obtidos, a partir de 1980, em universidades públicas no Estado do Rio de Janeiro – estão nos descortinando.
O intuito foi pesquisar a possível relação de nossa desdita atual com o processo que se estabeleceu, desde a chegada dos europeus até o Império, no Brasil. Neste artigo, pretendo refletir, com meus leitores, sobre uma condição revelada pelos trabalhos de Sheila de Castro Faria (Mulheres Forras – Riqueza e estigma social, Revista Tempo, Rio de Janeiro, nº 9, julho de 2000) e de João Luís Ribeiro Fragoso (Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro – 1790-1830, Arquivo Nacional, Ministério da Justiça, Rio de Janeiro, 1992): as riquezas dos que não foram incluídos em nossa história, uma riqueza subterrânea, e sua consequência.
Trata-se das africanas forras, oriundas da Costa da Mina, que, do final do século XVIII até o início do Império, formaram um grupo cuja riqueza só era sobrepujada pelos homens brancos proprietários. Nas palavras de Sheila Faria, “homens brancos e mulheres forras foram os os que detiveram as condições mais favoráveis de serem possuidores dos maiores conjuntos de bens …… os primeiros formaram as maiores fortunas originárias no comércio de grande porte. As forras formaram a elite econômica do comércio a retalho”.
Primeiro, escravas, poderiam estar vendendo em tabuleiros, produtos e alimentos feitos por ela, para ganho dos seus senhores; depois, alforriadas, prosseguiam como donas do negócio e colocavam outras pessoas para as ajudar. Formava-se assim um sistema de venda a varejo que ia da comida a necessidades domésticas: enfeites, rendas, peças de cama e mesa etc. Há um ótimo romance que, misturando ficção e realidade – teve competente pesquisa –, trata desta situação: Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves, Record, RJ.
O modelo civilizatório (Antigo Regime), que a colonização trouxe para o Brasil, vai permear nossos relacionamentos sociais e funcionar como uma “didática colonial” até hoje. Nele a sociedade era constituída de uma casta: a Corte e seus representantes civis e militares, a alta hierarquia da Igreja e das Ordens Religiosas e os adjudicatários dos monopólios da Coroa. Os demais, mesmos os ricos comerciantes que sustentavam a sociedade colonial, não eram objeto de registros e narrativas históricas ou romanceadas. Na terminologia de Boaventura de Sousa Santos, eram “os invisíveis”, ou os “excluídos da apropriação dos bens públicos” (João Fragoso).
Nesta pesquisa dos historiadores brasileiros, os dados surgiram dos testamentos, dos inventários, registros de óbitos, nascimentos, casamentos, e do cruzamento destas informações com registros econômicos, que serviam de base para os impostos, os dízimos e toda uma série de dados até então excluídos da história oficial.
Um dos pontos de embarque dos escravos era o porto (feitoria, fortaleza) de São Jorge da Mina, onde hoje é a República de Gana (antiga Costa do Ouro). O estudo de Sheila Faria centra-se nas mulheres forras da Mina, as negras africanas embarcadas naquele porto. Os falares daquela área eram, especialmente, os das línguas Akan. Lá, as mulheres dedicavam-se ao comércio, o que persistiu ao longo dos séculos, como observei, trabalhando em áreas do Golfo da Guiné, nos anos 1980. Eram mulheres ricas, constantemente viajando, com roupas caras e muitas joias de ouro, para o interior de Gana ou para os países vizinhos (Costa do Marfim, Togo) em razão de seus negócios.
Em 15 de agosto de 2017, o Ministro da Justiça (!) do governo golpista de 2016, declarou que 16% do Produto Interno Brasileiro (PIB) estavam na “economia informal”, no subterrâneo da economia. Isto no século XXI, com amplos recursos da informática, com as facilidades tecnológicas para acompanhamento e controle econômico e financeiro. Pode-se, então, imaginar o que acontecia nos séculos XVIII e XIX. Pessoalmente acredito que sejam bem maiores as receitas não contabilizadas nos atuais registros oficiais.
João Fragoso cita os trabalhos de Ciro Flamarion Cardoso e Jacob Gorender para questionar a “excessiva ênfase na transferência do excedente colonial e a impossibilidade de acumulação endógena”. E, na transcrição de Gorender (O escravismo colonial, Ática, SP, 1978):
“Na medida em que os agentes da organização da produção sejam capazes de pagar a aquisição dos fatores importados de que careçam, nesta medida o modo de produção se revela também capaz de reprodução e o processo de reprodução tem natureza genuinamente endógena”.
Fechamos assim um aspecto do Brasil Colônia que mostra, de um lado, a invisibilidade do maior contingente populacional, como, ainda hoje, ocorre com as populações apenas conhecidas de estatísticas demográficas, fora das análises econômicas, da assistência social e do mundo político. De outro uma economia existente à margem do oficialismo, o que pode justificar a ausência de revolta quando são tirados direitos de cidadania aos pertencentes do mundo da economia formal.
Fica uma questão: onde foi parar, com o Império, a fortuna das africanas forras? Dissolveu-se ou foi apropriada por outro segmento? Ainda não encontrei uma resposta conclusiva. Vilmara Lucia Rodrigues, em trabalho apresentado em 2005, no I Colóquio do Laboratório de História Econômica e Social (UFJF/LAHES), “Negras Senhoras: o Universo Material das Mulheres Africanas Forras”, relata dois casos (1760 e 1779) cujos bens foram deixados para Irmandades Religiosas. Sem dúvida foi um caminho bastante percorrido.
Sheila de Castro Faria volta a este tema em “Sinhás Pretas: acumulação de pecúlio e transmissão de bens de mulheres forras no sudeste escravista séculos XVIII – XIX” (in Francisco Carlos Teixeira da Silva, Hebe Maria Mattos, João Fragoso (org), Escritos sobre História e Educação, Homenagem à Maria Yedda Leite Linhares, Mauad; FAPERJ, RJ, 2001).
Analisando testamento de 1776, Sheila Faria, escreve que senhoras, escravas e ex-escravas viviam juntas e “não era um arranjo incomum, pois várias outras pretas forras que conseguiram enriquecer após a alforria apresentaram um estrutura domiciliar muito semelhante, composta majoritariamente por mulheres, além de realizarem os mesmo investimentos: escravas, joias, casas e deixar como herdeiras essas mulheres”. Mas, repetimos, esta riqueza não era reconhecida como ascensão social, “posto que conquistada por suas próprias “indústrias” – às vezes na venda do próprio corpo e no roubo”, como entendido na época.
Havia, no entanto, uma condição legal. Continuo transcrevendo desta autora: “no sistema de herança do reino português e ainda vigente no Brasil imperial, para todos os proprietários de bens que faleciam e tinham herdeiros “necessários” ou “forçados”, era preciso abrir inventário para proceder à avaliação e à partilha dos bens. Caso não houvesse herdeiros, o Estado seria herdeiro. Os cônjuges eram meeiros e qualquer casamento em que não houvesse acordo pré-nupcial era considerado como de comunhão de bens”. Havendo testamento, este poderia ser entregue a pessoa de confiança, fora dos trâmites oficiais, que agiria conforme a vontade do defunto. Estas disposições encontram-se nas Ordenações Filipinas, que chegaram sob outras roupagens até nossa República.
A maioria destas forras não tinha filhos, mesmo as casadas. Talvez uma precaução para não ver seu filho escravo e afastado do convívio materno. Elas faziam, quase sempre, testamentos, o que era raro para forras de outras etnias, como do falar bantu, e assim fugiam do oneroso inventário.
Neste caminho, temos a dispersão testamentária e a transferência para Ordens Religiosas como razões da descontinuidade da riqueza das mulheres africanas da Mina forras.
Tratemos de outra questão inquietante.
Thierry Meyssan, analista, escritor e fundador do blog Réseau Voltaire, em 16/08/2017 (Divergências no seio do campo anti-imperialista), assim descortina a atual ação da banca angloamericana: “Trata-se para o imperialismo de dividir o mundo em dois: de um lado uma zona estável que se beneficia do sistema, do outro um caos espantoso onde ninguém pense sequer em resistir, mas unicamente em sobreviver; uma zona na qual as multinacionais possam extrair as matérias primas, das quais precisam, sem terem que dar satisfações a ninguém”. A Líbia e o Iraque seriam dois exemplos; há uma governo fantoche, uma terra de ninguém e um gueto, onde é produzido o petróleo para as multinacionais.
Já estamos preparados com um Brasil oficial e um Brasil invisível para receber estes invasores. Na verdade, preparados desde a colonização portuguesa. Temos, então, outra pergunta: estarão os segmentos oficiais, os estamentos militares, jurídicos e econômicos atentos a estes fatos? Irão aceitá-los tão pacificamente como ocorreu nos golpes eleitorais de Fernando Collor e Fernando Cardoso ou no midiático-jurídico-parlamentar de 2016?
A vida e a fortuna das africanas forras no Brasil ainda terá muito que nos ensinar.
*Pedro Augusto Pinho, avô, administrador aposentado