José de Jesus Barreto
De que restos de desumanidades fomos paridos?
Herdeiros sem nome de infames degredados
vis escravizados
filhos da silva desalmados …
Torpe mistura de profundas dores
que vagam ao tempo rebrotando feridas
Que gente somos… saída do mato
salva das águas
sal da terra
Gente criada nas senzalas
batizada nas capelas
enlameada no mangue
rasgada nos canaviais
envilecida nos cais
amaldiçoada de sangue
De onde e quem restamos, assim, sem eira nem beira?
– Das brenhas do escuro
Filhos da fome e do fausto
Da ganância, ignorância, abundância
da indecência, da inclemência
Herdeiros do nada, sobras do exílio
Repasto de coronéis, bando de esfarrapados
marcados pelo chicote, redimidos pelo batuque
Entre arcabuzes e tacapes, oratórios e berimbau
Letrados e serviçais, a mando e revoltas
Mulatos, caboclos, cafuzos …
caldo, mixórdia do desconhecido
Sobras! sobras dos quilombos
De matanças, arruaças, traições, feitiços
Antropofágicos somos!
Uns descompreendidos!
Velhos capoeiras, como rezava Pastinha:
– Somos pretos mandingueiros, em ânsia de liberdade.
Às pernadas, trupicando pelas ladeiras,
pinga ardente no lombo, olho nas quebradas…
Ah! Aqui se goza e padece!
Esmagada de pobre orgulho
a gente bem que merece
outro, um novo Dois de Julho.
2023/ 200 anos da “Independência”
(esse texto está na belíssima edição da revista Viva Bahia – em homenagem aos 200 anos de nossa independência, com ilustração de Borega).