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quarta-feira, 18 setembro, 2024

Das Olimpíadas às sucessivas derrocadas políticas de Macron, como está a França perante o mundo?

© AP Photo / Andre Penner

Sputnik – Por mais de 40 dias, as Olimpíadas de Paris serviram como uma pausa temporária para a batalha política em curso na França diante das consecutivas derrotas do governo Emmanuel Macron. Mas bastou o evento acabar para a primeira medida do presidente francês que estremeceu o país. Especialistas analisam a situação à Sputnik Brasil.

Enquanto as emissoras de TV mundo afora transmitiam as competições olímpicas e paraolímpicas, o governo do presidente Emmanuel Macron apostava todas as fichas no evento para mostrar a imagem de uma França moderna e unida.
Mas dos vexames dos casos de intoxicação de atletas que mergulharam no rio Sena à falta até de alimentos na Vila Olímpica e de um competidor paraolímpico dormindo no chão por falta de acessibilidade, o evento pode ter terminado sem trazer a mudança esperada pelo político de centro-direita. E mal terminou a cortina de fumaça para o primeiro grande anúncio de Macron no país: a nomeação do conservador Michel Barnier como primeiro-ministro, o que arrancou a ira da coalizão de esquerda, que outrora ajudou o francês a evitar a ascensão do partido de Marine Le Pen.
O doutorando em ciência política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Christian de Almeida Brandão pontuou à Sputnik Brasil que os Jogos Olímpicos serviram apenas como uma pausa temporária no conflito político interno em curso na França.

“Prova disso é que o primeiro-ministro anterior permaneceu no cargo durante o evento e foi afastado somente após o término dos jogos, como uma estratégia para evitar maiores problemas e desviar a atenção dos jogos para a crise política […]. Acredito que essa nomeação traz mais instabilidade para a França. Do ponto de vista político de Macron, a escolha pode fazer algum sentido, mas como presidente da França essa decisão parece mais prejudicial para o país. Sob a perspectiva democrática, é problemático que um presidente nomeie um primeiro-ministro que não reflita o resultado das urnas”, conta.

O presidente francês, Emmanuel Macron, no carro com a esposa, Brigitte Macron, após deixar o local de votação para o segundo turno das eleições legislativas. França, 7 de julho de 2024 - Sputnik Brasil, 1920, 08.07.2024

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Conforme o especialista, a sigla de Barnier conquistou somente 39 das 577 vagas na Assembleia Nacional Francesa, enquanto a Nova Frente Popular (coalizão de esquerda) liderou a corrida com 182 assentos.

“É difícil justificar que, em uma eleição onde a primeira posição foi uma aliança política de esquerda e a segunda uma de centro [do partido de Macron], o primeiro-ministro seja escolhido da direita […]. Não faltam críticas à administração de Macron por parte da esquerda. Em primeiro plano, há uma crítica à sua personalidade, com o presidente sendo descrito como elitista, sendo até associado a Júpiter, o ‘rei’ dos deuses romanos. No campo das políticas públicas, a esquerda critica o fim do imposto sobre grandes fortunas, as reformas trabalhistas e previdenciárias, bem como as políticas de austeridade do governo”, justifica, ao lembrar ainda da pressão sofrida por Macron com relação ao apoio a Israel diante do conflito na Faixa de Gaza.

Presidente da França: direita ou esquerda?

A escolha do novo premiê fez Macron enfrentar, mais uma vez, grandes protestos nas ruas: só no último fim de semana, mais de 100 cidades francesas registraram atos contra o que muitos eleitores chamaram de golpe realizado pelo presidente.

“Acredito que a instabilidade interna na França tenha um impacto mais significativo do que qualquer fracasso na política externa. A ausência de um governo majoritário que apoie o presidente tem enfraquecido a influência da França tanto no cenário internacional quanto dentro da União Europeia. […] Outro fator que tem contribuído para os infortúnios da França na política externa é o declínio de seu poder global, que está mais associado à diminuição estrutural da importância do país no cenário mundial”, afirma Brandão.

O especialista acrescenta que há três fatores que explicam a derrocada de Macron nos últimos anos: queda da popularidade do governo, reposicionamento político para a direita e crescimento da popularidade dos extremos ideológicos no país.
“Macron chegou à presidência da França liderando um movimento que ele mesmo criou, com a promessa de modernizar o país por meio de um governo centrista e pró-União Europeia. No entanto, ao longo do tempo, as reformas implementadas pelo presidente provocaram descontentamento na população […]. Além disso, Macron se reposicionou ao longo de seu mandato, movendo-se do centro para a direita. Esse deslocamento possibilitou o renascimento da centro-esquerda francesa, que havia sido praticamente engolida pelo movimento do presidente.”
Já José Roberto Gnecco, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e pós-doutor pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas, acredita que a indicação de Barnier “é uma jogada inteligente que pode até não dar certo quanto ao nome em si”, mas faz com que Macron ganhe tempo para conduzir o governo ao jogar “a esquerda contra a direita” e vice-versa.
“O que eu enxergo é que o Macron tem feito uma série de movimentos para se perpetuar no poder e manter a linha política que ele quer manter, e até onde eu enxergo está sendo bem-sucedido. […] Então tem assuntos que ele se mete, até fala em enviar tropas para a Ucrânia, mas outros em que ele fica quieto, deixando a poeira baixar. O Macron enfrenta problemas e dificuldades com os imigrantes, assim como a Europa inteira, e isso possibilita o crescimento da extrema-direita, uma vez que há dificuldade de quebrar os ovos para encontrar uma solução, porque nunca nenhuma é boa para todos. E sendo os nacionais eleitores a força político-eleitoral mais forte, são eles que acabam ditando qual política a Europa vai seguir em cada uma de suas nações. Do jeito que está sendo conduzida a democracia liberal na Europa, a tendência é que cada vez mais a ultra-direita tenha força”, argumenta.
Ginasta soviética Natalia Vitalyevna durante apresentação nos Jogos Olímpicos de 1980, quando foi bicampeã na trave e no solo. Moscou, julho de 1980 - Sputnik Brasil, 1920, 23.07.2024

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Com relação às controvérsias em relação aos Jogos Olímpicos, o especialista enfatizou que a realização do evento mostra ao mundo as características do país anfitrião. Por isso, acredita que a França apostou pela primeira vez na história em uma abertura do evento longe dos tradicionais estádios, decisão bastante criticada.
“Quanto à questão do rio Sena, realmente essa é importante. Alguns vão tentar impactar Macron, mas quem já trabalhou, quem já fez os Jogos Olímpicos, como eu fiz uma parte no Brasil, sabe que quem opina mais sobre os Jogos Olímpicos no país, a não ser que queira muito, não é o presidente. É o prefeito. Deve-se mais à prefeita de Paris a forma como foram realizados os Jogos Olímpicos em nível local, a sua distribuição, a sua diagramação, do que ao próprio Emmanuel Macron, a quem coube as honras políticas. Basta olhar para o caso do Rio de Janeiro, do Brasil, que o prefeito que fez os Jogos Olímpicos do Rio [de Janeiro] hoje ele se elege com 70% dos votos em qualquer eleição. Por quê? Porque ele soube, no bom sentido, usar bem o dinheiro federal para maximizar o legado para a cidade”, compara.
O presidente francês, Emmanuel Macron (à esquerda) e o chanceler alemão, Olaf Scholz, caminham no Palácio de Meseberg, residência oficial do Executivo alemão, rumo ao Conselho Ministerial Franco-Alemão. Meseberg, ao norte de Berlim, 28 de maio de 2024 - Sputnik Brasil, 1920, 05.06.2024

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Política externa do governo Macron

Na França, a política externa cabe ao presidente eleito, enquanto os assuntos internos ficam a cargo do primeiro-ministro, que é indicado conforme os resultados eleitorais parlamentares.
Nos últimos anos, uma das marcas da gestão Macron foi o envolvimento francês no conflito na Ucrânia, que gerou aumento no custo de vida da população por conta do fim da importação do gás russo (mais barato) e, também, da menor capacidade de investimentos do país em defesa.
Para João Victor Motta, pesquisador do Observatório de Regionalismo e doutorando em relações internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas, isso ajudou ainda mais a mobilizar tanto a esquerda quanto a extrema-direita contra o atual governo.

“A política externa de Macron para a África é um dos grandes fracassos e incoerência da gestão, ao mesmo tempo que a França tem liderado o bloco europeu em diversos temas centrais para a governança global. A resistência francesa a ceder seus poderes sobre suas ex-colônias em África e os reveses práticos mostram a dificuldade de conciliar seu discurso de novo líder liberal com a efetivação de um mundo multipolar e independente na prática. Da mesma forma, a incapacidade de incidir para frear a guerra na Europa e o genocídio palestino em curso, temas que reverberam profundamente no ambiente interno”, argumenta à Sputnik.

Conforme o especialista, as Olimpíadas ajudaram a expor a “fragilidade do Estado francês frente aos desafios estruturais e à capacidade de investimento interno, em um momento de ampla fragmentação no país. As Olimpíadas se tornaram a síntese de um momento histórico de profundas contradições internas, apresentadas em escala global e transmitidas para todo o mundo”.

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