Terça-feira, 21 de junho, dia da Bandeira na Argentina, no estádio Arsenal de Sarandí, no município industrial de Avellaneda, repleto e cercado de multidões vindas dos vários rincões da Província de Buenos Aires e do resto do país vizinho, a ex-presidenta Cristina Kirchner lançou a nova frente chamada “Unidade Cidadã”. O ato, ensejou a cobertura ao vivo não só do canal popular C5N, mas de outros 3 canais de TV, incluindo o TN, do Clarín, tal é a preocupação pela crescente liderança política e social de Cristina, não obstante a desvairada perseguição do poder Judicial-Midiático.
Enquanto o presidente neoliberal Maurício Macri, realizava um ato lúgubre na cidade de Rosário, em frente ao monumento à bandeira, evocando Belgrano, herói da indepenência, rodeado por apenas 600 pessoas (funcionários do governo) e protegido por forte aparato policial, centenas de milhares de trabalhadores, aposentados, jovens, desempregados, famílias inteiras foram acolher e ouvir Cristina que junto a Néstor Kirchner, emplacou seu projeto de inclusão durante mais de 12 anos.
Suspense – A expectativa popular por este reencontro foi enorme, seja pelo massacre econômico e pela depressão social que desabou sobre o povo argentino nesta era macrista, seja pela história e esperança que gera Cristina Kirchner, e sobretudo, pela novidade política que traz a formação da “Unidade Cidadã”. Esta, impulsionada pela decisão de cerca de 50 prefeitos peronistas e kirchneristas de romper com o aparato carreirista do peronismo conservador de direita do Partido Justicialista (PJ); e apoiada pelas correntes político-partidárias como La Câmpora, o Nuevo Encuentro, sindicalistas da CTA (de Yasky) e ATE (estatais) e cidadãos independentes, dirigentes peronistas da Província de Buenos Aires, e alguns governadores, alfonsinistas, e socialistas.
Mas, o mais notável do discurso de Cristina, é que deu a linha de urgência e retratou uma nova concepção para nortear a Unidade Cidadã. Esteve como cidadã comum, de calça comprida, sapato baixo e pulôver, num palco mergulhado no centro de uma maré de povo e militantes, sem cartazes nem bandeiras partidárias como de costume (somente bandeiras argentinas); uma Cristina interagindo com os manifestantes, com muita emoção, e determinação a não citar nenhum partido político remarcando a necessidade do protagonismo do povo, trazendo em primeiro plano o arrocho econômico que despencou sobre suas vidas, a agressão neoliberal, a volta do desemprego, a flexibilização do trabalho, as tarifas de energia impagáveis, o fechamento das fábricas, do pequeno comércio e, agora, o endividamento do país a ser pago em 100 anos (pelo nossos netos e bisnetos e tataranetos).
Seu discurso foi um clamor a organizar todas as energias do povo como forma de deter esse estado de loucura, desencadeado de dezembro de 2015 para cá, com o novo governo (Macri); chama a por um freio a tudo isso que desorganizou totalmente a vida dos argentinos. “Esta tristeza na sociedade, me comove também. As pessoas tinham a vida organizada, podiam planificar no fim de mês. Romperam. Desorganizaram a vida. As pessoas tinham projetos”. “Nos querem dar uma dívida por 100 anos”. Isso sim, será hipotecar o futuro. Isso sim será uma pesada herança. Vejamos o que são os empréstimos assinados recentemente pelo governo Macri:
Cristina colocou no palco a crítica aos dirigentes e deu passo ao protagonismo dos cidadãos vitimados pelo ataque do ajuste neo-liberal para que se denuncie e se lute pelos seus direitos extorquidos. Não mencionou dirigentes políticos, ao contrário, disse: “Quero que os argentinos cheguem a 2019 (referindo-se às eleições presidenciais), não os dirigentes. Quero que a Argentina volte a ter futuro. Se os remédios continuam aumentando, de que estamos falando? de 2019? De que dirigentes estamos falando? Quero que a Argentina chegue viva a 2019!. Os dirigentes passam a pensar que são mais importantes que todos. Os importantes são os povos, os trabalhadores, os empresários.
É preciso ver o vídeo para sentir com os olhos e as palavras o significado que teve este gesto de fazer subir ao palco vários cidadãos comuns, não necessariamente militantes, cujas vidas retrocederam de Macri para cá, ao borde do desespero.
Cristina chamou um por um ao palco. Jovens cientistas do plano Conicet demitidas; estudantes universitários que abandonaram o projeto Progressar para trabalhar por perda de trabalho materno; cidadãos que vão à biblioteca popular pedir comida ao invés de livros; famílias que vão comer no refeitório dos indigentes; donos de Clube de bairro fechando devido à super-tarifa elétrica; representante do Centro de aposentados ameaçados nos seus direitos; Familiar de desaparecido; Comerciante deficiente físico fechando loja. Padeiro e açougueiro falido; Trabalhadora de indústria de calçado demitida; Cooperativa fechada por não pagar a luz; e finalmente Cultivadores de verdura (imigrantes bolivianos), cidadãos, sequer eleitores, mas membros da Pátria Grande. Cristina, com isso não exprime interesse eleitoral, mas a solidariedade para organizar a unidade cidadã e o movimento popular que transcenda as eleições. Estas eleições não tem o mesmo peso que as presidenciais de 2019 para mudar rumos; terão sim, um sentido plebiscitário de aprovação ou não do governo Macri.
Sua voz – “O importante não é minha voz mas a de vocês. Importante que nos olhemos e conversemos … Estou convencida que esta etapa histórica não é questão de partidos…Queremos representar os interesses dos cidadãos” . Talvez nisso também Cristina deixa uma reflexão de que não só a guerra midiática (que não mencionou como de costume), apontada como principal arma de formação de opinião e de consciência, é o único fator de derrota eleitoral ou governamental da esquerda. Na Argentina, houve uma Lei de Medios”, certamente aplicada à metade, boicotada pelos grupos hegemônicos, mas houve uma chance midiática promovida pelo kirchnerismo superior ao Brasil, por exemplo. O que faltou, e Cristina reiterou, após a derrota eleitoral de 2015, foi a necessidade do “apoderamento popular”. Tudo indica que a Unidade Cidadã, vem para suprir esse déficit. Não somente para uma vitória nas próximas eleições legislativas de outubro, mas para reconquistar e afiançar um novo Governo Popular de Esquerda.
A simbologia da visibilidade que deu Cristina aos novos excluídos no palco do estádio Arsenal foi bem além de representar um cenário de TV ou uma mídia progressista para denunciar o que está ocorrendo (como já bem faz C5N e algumas rádios populares, por exemplo). Foi impulsionar cidadãos sem fama, com nome, carne e osso, diante de uma multidão de milhares de pessoas, para dar protagonismo a esses extratos sociais que perdem cidadania, ao lado de uma ex-presidenta, líder popular, que quer ser “uma a mais”, que se identifica com a dor destes seres humanos, e com eles chora, mas se dispõe a colocar “cabeça, corpo e coração” ao lado deles.
Não respondeu lançar-se candidata a senadora no próximo dia 24 (como muitos esperam), mas Cristina deixou o impulso de que se organizem, que sejam sujeitos e não objetos da história, atores do palco e em todos os meios, mesmo sem citar, nem dar palavras de ordem, mas inspirou à organização popular, aos comitês de trabalhadores, de bairro, fábricas, bancos, hospitais, empresas, escolas, sindicatos. Quis deixar claro que a Unidade Cidadã é também para aqueles que votaram em Macri, foram enganados e hoje são vítimas. Cristina não rompe com o peronismo e não é o peronismo que está em crise. É o aparato e o carreirismo de peronistas.
Não obstante, o peronismo atualizado, via kirchnerismo, como projeto de Nação, de defesa do Estado e capacidade social de mobilização como conceberam Peron e Evita, estão vivos na memória dos que viveram a década passada; e agora, dá passos interessantes com essa frente pela Unidade Cidadã que nasce para apoderar o povo argentino, para reconquistar o Governo Nacional e Popular e transcender os níveis da década passada rumo a uma transformação social profunda do país junto à chamada Pátria grande da América Latina.
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