HISTORIANDO AS COPAS – V
O jogo de bola bem jogado é pura arte.
Emoção. O futebol é também cultura
Zédejesusbarreto
A Copa do Mundo de 1954, realizada na Suíça, é a primeira da qual guardo vividas lembranças. Tinha seis anos, já dormia abraçado a uma bola, conhecia a Fonte Nova, apaixonado pelo Tricolor, o ‘meu Bahia’, e me ligava nas transmissões dos jogos pelo rádio, até mesmo dos times do Sul, ouvido colado no ‘caixote’ de madeira e válvulas quentes, com seis canais, sobre uma cristaleira, rádio em que minha mãe acompanhava as novelas, chorando a cada capítulo com as vizinhas.
Naquele ano, os jogos do Brasil na Suíça foram retransmitidos pela boca do alto-falante da rua Voluntários da Pátria, na Baixa do Cacau, subúrbio ferroviário, bradando os gols do alto de uma frondosa mangueira que ficava diante da porta da nossa casinha acanhada, a 10 metros da linha do trem.
– “Gol de Baltazar, Gol de Baltazar! / Gol de cabecinha, doís a zero no placar!”.
De tanto ouvir essa musiquinha/jingle durante a Copa o refrão grudou na mente, até hoje. Baltazar era o centroavante do Corínthians e da seleção de 50 e 54, artilheiro que fazia a maioria de seus gols em cabeçadas cantadas em verso e prosa. Já tinha jogado a Copa de 50. Suas habilidades e faro de artilheiro, no entanto, não foram suficientes para que o Brasil passasse das quartas-de-final, quando levou uma ‘rolha’ de 4 x 2 do espetacular, tido como Invencível time da Hungria de Puskas, Kocsis, Czibor, Bozsic, Hideghuti… no dia 27 de junho, em Berna, Suiça.
A pancadaria
Esse Hungria x Brasil, num domingo, foi uma pugna violenta (42 faltas marcadas, um absurdo à época) batizada pela mídia radiofônica de ‘A Batalha de Berna’. Teve tapas, pernadas, pênaltis, expulsões na partida e os brasileiros acusaram o árbitro Mister Ellis (Artur Elis, inglês) de ser um ‘ladrão a serviço do comunismo’ húngaro. O tal ‘execrável’ soprador de apito teria expulsado ‘injustamente’, no segundo tempo, o lateral Nilton Santos (junto com o húngaro Bozsic, que trocaram empurrões, pontapés e se recusaram a dar as mãos e pedir desculpas como exigira o árbitro) e depois o avante Humberto, que deu uma ‘voadora’ num adversário, aos 40 minutos. Baltazar, aliás, nem jogou essa partida. Além disso, Mister Elis teria ainda validado um gol húngaro com o goleador em posição de impedimento. Choradeira. E depois do apito final o pau comeu.
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Eu já era fã do goleiro Castilho (um dos melhores que vi jogar) e do artilheiro Baltazar, claro. Tínhamos, sim, um ótimo time dirigido pelo competente retranqueiro Zezé Moreira:
– Castilho (Veludo), Djalma Santos (Paulinho), Pinheiro (Mauro), Bauer, Nilton Santos, Eli do Amparo, Brandãozinho, Dequinha, Didi, Rubens, Julinho, Baltazar, Pinga, Maurinho, Humberto, Índio… Grandes individualidades!
Mas, dizem, sofríamos ainda do tal ‘complexo de vira-latas’, diagnosticado antes pelo notável cronista e dramaturgo Nelson Rodrigues, pouco ou nenhum senso coletivo em campo e um certo atraso até em compreender bem as regras do jogo, o regulamento da competição, as interpretações das arbitragens europeias. Essa era a realidade. Por conta dessas ‘minhocas’, ainda reflexo do ‘maracanazzo’ (em 1950), tínhamos abolido o uniforme branco e passamos a jogar com a amarelinha a ‘canarinho’, modelito escolhido em concurso nacional.
No mais, diga-se, a Hungria era melhor, individual e coletivamente. Era uma equipe em ‘estado de graça’ que, antes de chegar à Suíça tinha arrasado a Inglaterra com duas goleadas espetaculares, inclusive em Wembley. Criou fama de ‘invencível’. A equipe húngara tinha uma formação militar, até atletas do exército – como o genial Puskas, medalhado. O time em campo exibia um preparo atlético diferenciado, um jogo coletivo coeso e inovações, como o pré-aquecimento antes de cada partida. Já entravam em campo aquecidos e, por conta disso, surpreendiam, costumavam marcar gols e decidir logo nos primeiros minutos, os adversários amornando ainda.
O Brasil fazia uma campanha digna de elogios. Goleamos o México (5 x 0), na estreia, com gols de Baltazar, Didi, Pinga (2) e Julinho. Na sequência empatamos (1 x 1) com a Iugoslávia (gol de Didi), jogando melhor que o adversário.
A “Batalha de Berna”
Com a ausência do artilheiro e maior astro da Hungria, o avante Puskas, machucado, acreditávamos em poder encarar de igual para igual os húngaros, sensação da Copa. Mas, aos 7 minutos de bola rolando, ainda frios, já perdíamos de 2 x 0. Os húngaros entraram quentes, a cem por hora.
– Aos 4’, o vigoroso becão Pinheiro foi sair jogando, Czibor apertou, roubou-lhe a bola e ficou de cara com Castilho, que salvou o chute frontal mas deu rebote; Hidegkuti não perdoou. Aos 7’, a zaga brasileira fez a tal ‘linha burra’, parou pedindo, forçando o impedimento, e Kocsis testou sem marcação nem apelação. O Brasil diminuiu de pênalti (Índio derrubado na área inimiga), bem cobrado por Djalma Santos, ainda na primeira etapa.
Dai, a partida foi ficando encardida, brigada, faltosa, desleal mesmo. Nessa época o jogo era bruto, muito corpo a corpo, trancos até no goleiro valiam. Nilton Santos e Pinheiro arrepiaram pra cima do arisco ponteiro Toth, lesionando-o. Não havia substituições e nosso time voltaria para o segundo tempo com boas perspectivas, praticamente com um atleta a mais em campo, Toth manquitolando. Mas…
Por volta dos 15 minutos, Czibor alçou da esquerda na área brasileira, Pinheiro subiu com Kocsis na disputa da bola pelo alto e o Mister Ellis marcou pênalti na jogada. Foi um bafafá. Lantos bateu alto, forte e fez 3 x 1. Aos 21’, o ponteiro Julinho fez um golaço, acertando o ângulo de fora da área, diminuindo. Daí por diante, muita cangancha, empurra-empurra, as expulsões e o gol de Czibor, de cabeça, fechando o caixão aos 44’.
Mal Mister Elis soprou o apito final, o pau comeu do gramado a vestiários, com socos, pontapés, garrafadas, entre jogadores, titulares e reservas, delegações, radialistas… Até o árbitro e radialista Mário Vianna “com dois enes” desceu pra xingar e dar bofetes no ‘juiz ladrão’. Pancadaria feia, ninguém.
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Final de guerra, fria
Nas oitavas de final, a Hungria tinha vencido, arrasado um mistão da Alemanha Ocidental de goleada (8 x 3). Os alemães já classificados, na moita, armando o bote, estudando o inimigo. Os húngaros eram mais que favoritos ao título.
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– A Europa ainda lambia as feridas, não cicatrizadas, da guerra mundial, que dividira o mundo em dois blocos: o bloco comunista, liderado pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a velha, imensa e poderosa Rússia de Lenine, de Stálin… e seus agregados; e o bloco Ocidental, capitalista e liberal, capitaneado pelos Estados Unidos e aliados poderosos como a Inglaterra, França… Os vencedores da Grande Guerra dividindo o mundo.
Com Hitler e o Nazismo derrotados, a Alemanha foi dividida em duas: a Oriental, sob o manto vermelho soviético e a Ocidental aliada dos capitalistas. A corrida armamentista, depois das bombas atômicas lançadas pelos EUA no Japão, deixara o planeta em suspense. Os soviéticos, no auge do stalinismo, já eram também senhores de artefatos nucleares e disputavam a hegemonia política e estratégica planetária, exibiam poder.
EEUU x URSS acirravam o que se chamou de “guerra fria”, uma paz mundial que se assentava sobre ogivas atômicas, artefatos nucleares, armas cada vez mais letais, sofisticadas; e a corrida pela conquista do espaço, foguetes, satélites, muita exibição de ‘muque’ dos poderosos do mundo. A OTAN – Organização do Tratado Atlântico Norte, sob comando dos EEUU, versus o Tratado de Varsóvia, liderado pela União Soviética.
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Esse era o clima no planeta, a Europa como centro de todas as atenções, ainda latejando. A Suíça fora escolhida para sediar a Copa do Mundo por ser um país neutro. Foi lá que a FIFA escondeu a Taça Jules Rimet, de ouro maciço, preservando-a dos butins.
Aquela final, pois, refletia a disputa, tinha a pegada da ‘guerra fria’, confronto dos blocos. De um lado a favorita Hungria comunista, uma equipe com a chancela do exército húngaro ‘representante’ do bloco soviético, contra a Alemanha Ocidental, integrada ao bloco capitalista.
Na bola, coletiva e individualmente, a Hungria era melhor, encantava com seu futebol organizado, ofensivo, com talentos individuais acima da média. Mas…
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Força e pragmatismo alemão
A final decisiva aconteceu num domingo molhado, dia 4 de julho, o Estádio Wankdorf, em Berna, lotado (60 mil pessoas amontoadas em precárias arquibancadas), um gramado enlameado, escorregadio, aquela velha bola de couro pesada, quiabenta, os alemães disputando cada lance como se fosse uma batalha sangrenta de vida ou morte, correndo uma barbaridade (estariam dopados? perguntou-se depois) e… aquela fantástica Hungria (invicta há 32 jogos, 25 gols marcados na Copa e sete apenas sofridos) cairia de virada (3 x 2) para a disciplinada, vigorosa e tática Alemanha de Fritz Walter, um meia que marcou época no futebol alemão, num dos jogos mais pegados e eletrizantes de todas as finais de copas.
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Aos 8 minutos, como era de praxe, a Hungria já vencia de 2 x 0, gol de Puskas (em campo mesmo que meio baleado no tornozelo) e de Czibor, numa falha da zaga alemã. Mas os alemães não se entregaram e, no lamaçal e no corpo-a-corpo, marcando homem a homem, jogando duro, aproveitaram-se de vacilos e escorregões dos húngaros e empataram ainda no primeiro tempo, gols de Morlock e Rahn.
A Hungria jogou o segundo tempo inteiro no campo alemão, atacando; acertou três bolas na trave. Os germânicos fechadinhos, suportando, aguentando, com sorte e determinação, esperando o momento do bote certeiro no contragolpe, que aconteceu aos 39 minutos, gol incrível de Rahn, de bico, acertando o canto, depois que se livrou dos marcadores, na raça. Os húngaros ainda fizeram um gol (Puskas) anulado pela arbitragem, alegando impedimento. Terá sido? Cadê o VAR?
O time Campeão:- Turek, Posipal, Liebrich, Hohlmeyer, Eckel, Mai, Otmar Walter, Fritz Walter (o craque do time), Rahn (arrebentou na final), Morlock e Shaffer. Treinador, Sepp Herberger. Obs: Os Walter eram irmãos.
A ‘badalada’ Hungria de Gyula Mándy: – Grosics, Buzanski, Lorant, Lantos e Bozsik, Zakarias, Toth, Kocsis (artilheiro da competição com 11 gols marcados), Hidegkuti, Puskas e Czibor.
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Curiosidades:
– Depois da Copa, o craque Puskas (militar graduado do exército Húngaro) foi jogar no milionário Real Madrid, ao lado de Di Stéfano. Um dos grandes da história.
– A Copa 54 foi a primeira a ter o filme oficial da FIFA. Nesses arquivos FIFA, hoje, podemos rever os jogos, avaliar bem as circunstâncias de cada partida.
– Foi a primeira copa vista pela TV, em p & B, ao vivo, na França, Alemanha, Inglaterra, Italia, Holanda, Belgica Dinamarca e Suíça.
– O jogo Iugoslavia 1 x 0 França foi o primeiro a ser transmitido pela TV e também o primeiro em que os atletas usaram numeração fixa nas camisetas, de 1 a 22.
– No Brasil, a despeito da chegada da TV em 1950, só ouvimos a Copa pelo rádio e cenas selecionadas nas telas de cinema um mês depois.
– Quarenta e oito países realizaram a cobertura ao vivo da copa. O Brasil mandou pra Suíça 63 jornalistas, 11 fotógrafos e 31 radialistas. Só a Rádio Globo transmitiu a final.
– Foi a derradeira Copa do cartola/ presidente da FIFA Jules Rimet, que morreria em 1956 com 83 anos.
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Quem éramos?
– Nossa população chegara a 57 milhões, segundo censo da época. São Paulo e Rio de Janeiro (a capital do país) eram as maiores cidades, com mais de 2,5 milhões de habitantes.
– Nossa Inflação, altíssima, em 25 %. O salário mínimo subiu de 1.200 para 2.400 cruzeiros, em julho/54.
–Nelson Gonçalves, Lucio Alves, Dick Farney faziam sucesso. O rádio continuava a ser o veículo de comunicação com maior penetração e influência do país.
– No Brasil de 1954 já havia tevê em preto & branco nas grandes capitais do Sul, Rio e São Paulo, onde tudo acontecia. Vivíamos ainda chamada ‘era do rádio’.
– O poderoso empresário das comunicações era Assis Chateaubriand, o homem dos Diários Associados, da revista O Cruzeiro, ele que trouxe a TV para o Brasil em 1950.
– A campanha ‘O Petróleo é nosso’ unia e enchia o país de orgulho nacional.
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– O Brasil entrava na era industrial, de verdade, e a Bahia crescia e se projetava com a criação da Universidade, a chegada da Petrobrás, do crédito bancário, a expansão do comércio, Fonte Nova, a rodovia Rio-Bahia, ligando Salvador à capital do país, a difusão da baianidade festeira e africana, com a projeção das artes, da cultura que vicejava a partir de Salvador, a ‘cidade da Bahia’ cantada por Caymmi, descrita por Jorge Amado, desenhada por Carybé, fotografada por Verger…
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– O presidente Getúlio Vargas estava no seu quarto ano de mandato, querido pelo povão, mas enfrentava uma crise institucional feroz, com seus inimigos políticos (o carioca Carlos Lacerda à frente da oposição) acusando os altos escalões do governo de corrupção.
Alquebrado e impotente diante das pressões, a que chamou de ‘mar de lama’, Getúlio suicidou-se com um tiro no peito, no dia 24 de agosto, em seus aposentos presidenciais. Uma comoção no país.
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– No campo da bola, o nosso ‘complexo de vira-latas’ só seria superado quatro anos depois, na Suécia, com atuações soberbas de um príncipe etíope chamado Didi, de um descendente de índios, de pernas tortas, chamado Garrincha, de uma enciclopédia branca de nome Nilton Santos… e de um pretinho de 17 anos que encantou o mundo e se tornou o Rei do Futebol para sempre: Pelé.
Mas isso é outra história.
(agosto 2022 – zédejesusbarreto)