O
presidente ucraniano rejeitou enfaticamente as propostas do líder sul-americano para negociar a paz entre Kiev e Moscou. Ele insiste que apenas um lado do conflito, o seu, seja ouvido.
No entanto, o Brasil afirma que “os problemas de
segurança da Rússia não podem ser deixados de lado” no momento de eventuais negociações entre as duas nações.
No entanto, Zelensky insiste em dizer que as propostas de Lula “não trazem a paz de forma alguma” e que “só [o presidente russo Vladimir] Putin e [Luiz Inácio] Lula da Silva falam sobre a segurança da Rússia e as garantias que devem ser oferecidas para a segurança da Rússia”. Tudo isso apesar de o presidente brasileiro ter repetido que é preciso levar em conta os dois lados.
De alguma forma, o líder ucraniano usa essa dicotomia de “
você está comigo ou contra mim” para polarizar os
debates políticos e, assim, complicar uma possível solução negociada para o conflito.
“Esse ponto de vista do ‘tudo ou nada’, onde você está comigo ou contra mim, parece fazer parte de uma estratégia que o presidente Zelensky poderia realizar para tentar pressionar o Brasil a ter uma posição mais firme e, portanto, claro, de que está a favor de Kiev”, diz o internacionalista da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), David García Contreras.
A pressão sobre o país sul-americano, aponta o especialista, não é em vão. É uma das nações que compõem o grupo BRICS, formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Este bloco representa mais de 31,5% do Produto Interno Bruto (PIB) global e 42% da população mundial.
Relacionamento tenso
Há meses, o
governo brasileiro vem sendo pressionado, sem sucesso, a se posicionar contra a operação militar especial da Rússia na Ucrânia, iniciada em 24 de fevereiro de 2022.
Por exemplo, em janeiro de 2023, o Brasil
rejeitou um pedido do governo da Alemanha para entregar
munição de tanque a Kiev.
“O Brasil não tem interesse em abrir mão de munição […]. O Brasil é um país de paz. Nesse momento, precisamos encontrar quem quer a paz, palavra que até agora foi muito pouco utilizada”, escreveu Lula em suas redes sociais na época.
O presidente brasileiro insistiu em várias ocasiões que sua posição é neutra e que sua nação vota a favor da paz.
No entanto, houve um ponto de
ruptura no diálogo entre Kiev e Brasília durante a Cúpula do G7 (grupo formado por Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido) realizada em Hiroshima em maio deste ano. Naquele evento, Lula e Zelensky deveriam se encontrar para discutir o conflito, mas isso
não aconteceu.
“O fato é muito simples, tinha uma bilateral com a Ucrânia aqui neste salão. Nós esperamos e recebemos a informação de que eles tinham atrasado. Enquanto isso, eu recebi o presidente do Vietnã. Quando o presidente do Vietnã foi embora, a Ucrânia não apareceu. Certamente teve outro compromisso e não pôde vir aqui. Foi simplesmente isso o que aconteceu”, explicou Lula na época.
Desde então, a pressão de Zelensky sobre o Brasil não parou.
“A posição do presidente Lula mostra que o Brasil é neutro e não toma partido de nenhum dos lados. Seu governo vê o conflito de fora. Diante disso, o presidente Zelensky busca apoio […], mas a estratégia diplomática de Lula lhe parece muito morna para atuar como mediador na negociação”, diz García Contreras.
A arte da diplomacia
Em entrevista à Sputnik, a coordenadora de Assuntos Globais da Universidade Iberoamericana, Aribel Contreras, afirma que diante das críticas de Zelensky a Lula há um
fator que não deve ser esquecido: a gestão diplomática do
conflito ucraniano.
“
Rússia e China realizaram uma
diplomacia extraordinária em diferentes áreas, tanto na América Latina e no Caribe quanto na África, por meio das vacinas [para COVID-19], por exemplo. Ambas as nações souberam aproveitar as lacunas deixadas pelos Estados Unidos no mundo”, diz ela.
“O fato de a voz de Zelensky ter ecoado em diferentes fóruns permitiu que ele fosse ouvido, mas isso não significa que eles concordem com ele. Acontece que se você não concorda 100% com ele, ele o considera um inimigo e te ataca. Isso é um erro grave. Em vez disso, Vladimir Putin tem tido sucesso em sua aproximação com vários países, inclusive alguns da América Latina”, explica a especialista.
Segundo Contreras, Moscou tem a
vantagem de ter produtos como grãos de cereais, que pode oferecer globalmente e lhe permite
fazer novos aliados, como mostrou na Cúpula Rússia-África realizada no final de julho em São Petersburgo.
O peso da opinião pública
Na opinião de David García Contreras, os debates políticos globais tornaram-se centrais para o conflito na Ucrânia, que é abordado de forma diferente por cada meio de comunicação.
“Em termos de posições oficiais dos países, cada nação tem um ponto de vista sobre o conflito. No entanto, a opinião pública e a posição nesta situação também estão em jogo aqui. Temos certeza de que no Ocidente o que prevaleceu […] é o discurso de simpatia pela Ucrânia e censura à Rússia”, aponta.
Por isso, ele
qualifica a posição de Lula de pragmática, sem intenção de tomar partido de nenhum dos envolvidos, pois quer garantir uma
verdadeira solução para a situação.
“O Brasil tem se aproximado da Europa e mais recentemente de economias não tradicionais e de países da região como China e Rússia graças ao bloco BRICS. Isso tem permitido que ele se conduza em diferentes fóruns internacionais e mantenha sua independência. Insisto que um país determinar qual é a sua posição sem ceder às pressões de outro é manter a sua independência”, assinala García Contreras.
Para a analista, os comentários do presidente ucraniano contra o seu homólogo brasileiro são apenas um exemplo da polarização de opiniões que existe no mundo a respeito do conflito.
Atualmente, “parece que
todo mundo fica com raiva de qualquer coisa. Acredito que é aí que estamos terrivelmente errados como comunidade internacional, onde também há um questionamento sobre a
falta de papel que a Organização das Nações Unidas tem tido em questões como a Rússia e a Ucrânia, que não tem pé nem cabeça”, concluiu.