Santiago do Chile (Prensa Latina) Por essas raridades da história, tudo parece indicar que duas personalidades do Chile, muito diferentes, foram assassinadas da mesma forma e por ordem do general de exército que liderou a ditadura de direita no país com o apoio do governo norte-americano.
Estas personalidades são o poeta e Prêmio Nobel de Literatura Pablo Neruda, alto dirigente do Partido Comunista do Chile, e Eduardo Frei Montalva, ex-presidente da república e líder da Democracia Cristã.
Em relação a ambos, há processos judiciais em curso há anos para estabelecer a verdade sobre o que aconteceu e condenar os responsáveis, faltando ainda um longo caminho para chegar à sentença definitiva.
Mas é preciso estabelecer que a resolução ditada pelo ministro em visita especial, Alejandro Madri, constitui um passo de enorme importância que antecipa o veredicto final.
O juiz ditou o que se denomina um ‘auto acusatório’ contra os seis processados pela morte do ex-presidente Frei, ocorrida na Clínica Santa María em 22 de janeiro de 1982.
Quando dizemos que é contra os ‘processados’ estamos advertindo que já, há vários anos, o mesmo juiz, conforme o disposto no artigo 274 do velho Código de Procedimento Penal – aplicável dada a idade dos delitos – considerou que existiam as condições legais para dita resolução. Isto é, havia um crime e ao mesmo tempo havia ‘ presunções fundadas’ da participação dos acusados.
O passo recente, agora com base na norma do artigo 424 da mesma fonte jurídica, constitui um sério passo adiante em relação à conclusão anterior do magistrado.
Porque a norma específica que se aplica exige que o juiz tenha formado a convicção tanto da existência do crime como da ‘participação efetiva’ dos acusados no delito. Já não são simples ‘presunções fundadas’.
A diferença é concluinte e permite antecipar uma sentença condenatória definitiva ainda que para isso tenha que decorrer ainda um longo trecho. Trata-se também de uma nova vitória na luta por verdade e justiça dos familiares das vítimas.
Neste caso específico, deve ser destacada também a tenacidade da ex-senadora Carmen Frei e de seu esposo, já falecido, Eugenio Ortega. Além disso, constitui uma conquista significativa se considerarmos que no Chile os fatores de poder real que deram lugar à tragédia não mudaram substantivamente e, pelo contrário, continuam ativos.
Os acusados como autores do assassinato do ex-primeiro mandatário são: o motorista de Frei e que em rigor era agente da polícia secreta de Pinochet, Luis Becerra; o médico que operou Frei de uma hérnia, Patricio Silva, que tinha sido nada menos que vice ministro – subsecretario – no governo de sua vítima; e o ex-agente da Direção de Inteligência Nacional (Dina) e do Exército, Raúl Lillo.
O juiz Madri também acusou em qualidade de cúmplice o médico Pedro Valdivia, que prestava serviços à Central Nacional de Informações (CNI), e como encobridores os tanatologistas da Universidade Católica, Elmar Rosenberg e Sergio González.
Os meios de imprensa que apoiavam a ditadura argumentam sempre que a morte de Frei foi de causa natural, por doença, mas o tribunal desmente essa versão, ao concluir que foi devido a uma septicemia generalizada, induzida mediante a inoculação de gás mostarda.
O desenvolvimento desde 1998, depois da apresentação da queixa de Gladys Marín, de mais 1.300 processos penais, permite também conhecer da existência de laboratórios secretos do exército onde se fabricavam substâncias venenosas.
A desculpa que se propõe nesses expedientes é que se tratava de decisões relacionadas ‘a uma eventual guerra química que poderia se desatar na Argentina’. É importante lembrar da atividade nesta matéria de personagens tão sinistros como o agente da CIA-Dina Michael Townley, refugiado nos EUA, e do químico Eugenio Berríos, assassinado por militares chilenos e uruguaios, porque ‘sabia demais’.
Isto é, sobram elementos, meios, sujeitos ativos, que hoje tornam perfeitamente explicáveis os crimes cometidos através do uso de substâncias tóxicas.
No caso Frei, destacamos também a conduta traidora do médico Patricio Silva, próximo ao ex-presidente e em cujo governo foi alto funcionário público.
Este indivíduo, pouco antes de participar da operação a Frei, ligou para a comandância em chefe do Exército, conversou e informou ao vivo e a cores o próprio Pinochet, tudo isso faz parte da investigação judicial.
Também consta como foi preparado por agentes de inteligência da ditadura o quarto em que se operou a vítima.
Tudo que avançou até agora deve necessariamente ser relacionado à causa judicial que o Partido Comunista, o partido de Neruda, e os familiares do poeta encabeçados por seu sobrinho o advogado Rodolfo Reyes, começaram há vários anos e nos quais também conseguimos estabelecer questões de fundo.
Como é de amplo conhecimento, com uma diferença de alguns anos, em ambos casos as ações ocorreram na mesma Clínica Santa María, no mesmo andar 4, e com coincidências sugestivas de algumas mesmas enfermeiras e médicos.
Sabemos hoje que o médico que certificou a morte de Neruda não estava presente quando ele faleceu, isto é, nem sequer poderia atestar sua morte, nem sua causa. Atribuiu-lhe ‘caquexia’ e no entanto foi possível demonstrar com abundância de provas irrefutáveis que o poeta estava bem longe de se encontrar nesse estado.
Foram revisados manuscritos do poeta de poucos dias antes de sua morte em setembro de 1973, e constam várias declarações de diversas testemunhas que estiveram conversando longamente com ele poucos dias e poucas horas antes de sua morte.
É mais, foram realizados perante o tribunal dois painéis de especialistas, cientistas nacionais e internacionais da mais alta qualificação, buscando evidências objetivas do envenenamento e suas causas biológicas ou químicas e, para o final deste ano, está proposta a realização de um novo encontro. Para tudo isso, tem sido fundamental a contribuição do Estado do Chile, mais especificamente do atual governo que, além disso, fez parte do processo.
Até agora se estabeleceu a presença de ‘estafilococus dourado’ no corpo de Neruda e vale a pena recordar que é mais que conhecida a afirmação do químico da DINA, o já mencionado Berríos, quem disse: ‘Se quiser eliminar um insuportável, aplique-lhe estafilococus dourado’
Por tudo isso, o resultado das novas perícias resulta importantíssimo na linha de confirmar no caso Neruda a tese do homicídio.
É justo recordar aquela manhã, poucos anos atrás, quando nos chamou por telefone Eugenio Ortega, esposo de Carmen Frei, e nos pediu para conversar. Tinha advertido na leitura do copioso processo do caso de seu sogro as coincidências com informações divulgadas sobre o processo de Neruda e nos entregou muito material nesse sentido.
Sua contribuição foi sem dúvida de alto interesse e a partir desse momento realizamos vários encontros, também com outros profissionais, para agir com a maior seriedade e responsabilidade. Vale comentar que com Eugenio avançamos também em planos diferentes, entre eles, o da política.
A passagem do tempo e o trabalho do tribunal vêm demonstrando que as denúncias contra aquele que foi motorista e apoio de Neruda em 1973, Manuel Araya, não eram infundadas.
E outra curiosidade histórica. Em dezembro do ano do golpe, 1973, três meses depois da morte do Prêmio Nobel, o ex-presidente Frei descartou a possibilidade que Neruda teria sido assassinado, não lhe parecia possível.
Hoje, à luz dos avanços judiciais, a vida tem demonstrado toda a crueldade dos golpistas e o próprio ex-presidente foi mais uma de suas vítimas, usando métodos como aqueles que a ele não pareciam possíveis.
*Reconhecido advogado chileno em causas de direitos humanos, encarregado da investigação da morte de Pablo Neruda; ex-embaixador do Chile no Uruguai.