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segunda-feira, 17 novembro, 2025

Cartas habaneras (XXXIX)

Fotos: Arquivos Pátria Latina, Prensa Latina e Cuba Hoje

Emiliano José

Tenho compromisso com os leitores, com as leitoras, e voltarei ao comandante Víctor Dreke.

Peço apenas alguma paciência.

Hoje, sou assaltado por uma provocação do companheiro Valter Xéu, cuja trajetória poderia ser inscrita no livro dos recordes.

Por tantos feitos, e mais pelo fato de ter visitado Cuba tantas vezes, a ponto de ele próprio ter perdido a conta – creio coisa de 70 vezes.

Ele me acicatou com a beleza e o significado dos maravilhosos carros antigos, circulando por Havana, assim como se novos fossem, como se zero.

O turista desavisado leva susto ao chegar.

Aqueles enormes cadillacs, rabos-de-peixe, lindos.

Um raro colorido a embelezar as ruas.

Made in USA.

Só vistos em filmes hollywoodianos.

Sobrevivem lá.

Veio a Revolução de 1959.

O socialismo.

Tudo mudou.

E aqueles luxuosos, lindos carros continuam a circular.

Os turistas se aboletam neles, a navegar por outras eras, outro século.

Verdadeiramente.

Navegar é preciso.

Sentem o vento bater nas faces.

A brisa do Malecón.

Às vezes, a água do mar, das ondas a respingar.

Ou a circular pelas bordas do Centro Histórico.

Um sonho para os turistas.

Para os motoristas, donos dos carros, ganha-pão.

Um ganha-pão cuidado com muito zelo por eles.

Ouso dizer, como tanta coisa em Cuba, um milagre.

Como tanta coisa, cubanos contrariam a lei da obsolescência planejada de que fala Marx, ao tratar do fetiche da mercadoria.

Esta, com o predomínio do valor-de-troca, tem de acabar logo modo a garantir acumulação rápida, lucro.

Nada de durar muito.

Isso contraria a lógica capitalista.

O império norte-americano, inconformado com a Revolução Cubana, resolveu promover o bloqueio, tentar esmagar aquela experiência.

Um cerco brutal, como todos sabem.

A Revolução dá seus pulos, e segue adiante, não obstante as muitas dificuldades.

Não obstante o fim da União Soviética, fundamental no apoio.

E como fazer com a lei da obsolescência planejada?

Cubanos são criativos.

Sentiram: faltam peças para manter aqueles carros andando.

Dão jeito.

Ou restauram.

Ou mandam vir de algum outro país, de um jeito ou de outro, e os cadillacs insistem em continuar a rodar.

Grande parte deles, sexagenários ou octogenários.

Alguns, surgidos lá pela década de 1940, ou antes.

Outros, na década de 1950.

Parecendo novos, no entanto.

Serviram certamente a muitos mafiosos, em outras épocas, quando Cuba era paraíso do crime organizado, e de milionários.

Com a Revolução, e com a fuga da Máfia, os luxuosos carros restaram nas mãos do povo.

Viraram meio de vida.

Motoristas tratam deles com esmero, carinho, cuidado.

Com orgulho.

Como fossem para um desfile.

E constituem de fato um desfile pelas ruas de Havana.

Deslumbrante.

Os turistas viajam no tempo.

Como se mergulhados numa fita de cinema, para falar como no passado.

Os cubanos, ao desafiarem uma das leis marxistas, ao mostrar ser possível um produto ter um valor de uso muito mais prolongado, permitem isso ao turista.

Criativos, ousados.

São assim, os cubanos.

E atléticos.

Bicicletas são meios de transporte.

Não para uma pessoa.

Com uma pequena carroceria, circulam por Havana, com um atleta à frente, pedalando, o turista atrás, contemplando a beleza da capital cubana – sim, cabem dois no veículo.

Dá pra passear e namorar.

O valor de uso, multiplicado.

Motos, cujo funcionamento é garantido pelo conserto puro e simples ou pela busca de peças em países próximos, de um jeito ou de outro, veem, também, a utilidade delas multiplicada, valor de uso ampliado.

Transformadas em pequenos ônibus.

Na carroceria improvisada, podem seguir ao menos umas seis pessoas, aboletadas, e sempre alegres – cubano é dono de alegria singular, sejam quais forem as dificuldades.

Claro, nada é simples.

Meu amigo Jorge Ferrera, notável militante, dirigente comunista, anda num Lada, de impressionante resistência, motor posto a toda e qualquer prova.

O resto, no entanto, em precárias condições.

Não teve condição de restaurá-lo ao longo dos mais de 40 anos de existência do velho guerrilheiro – chamo-o assim, carinhosamente, até porque nas vezes recentes de minha estadia em Cuba foi ele a me conduzir pelas avenidas de Havana, dirigido por Ferrera.

Já fez de tudo, o velho guerrilheiro.

Inclusive ir de Havana a Varadero.]

A bordo, alguns jornalistas baianos, temerosos com a ousadia do motorista Nestor Mendes Jr, a pisar fundo, a querer o guerrilheiro andando a mais de 100 por hora, cheio de gingado e balanço.

Andou a mais de 100, o velho guerrilheiro.

Gingado e balanço das peças quase soltas.

Nem pensem em cinto de segurança – já caducaram.

Nenhuma peça ficou pelo caminho.

Chegaram são e salvos a Varadero, todos com o coração na mão.

Menos Nestor.

Encontrar peças do Lada depois do fim da União Soviética não deve ser muito simples.

Às vezes, ligo pra Ferrera, e ele está às voltas com a procura de alguma peça do guerrilheiro, difícil de ser encontrada.

Não raras vezes, o Lada descansa.

Até que de um jeito ou de outro, a peça aparece.

Comovente, a resistência do velho guerrilheiro.

E comovente, também, o esforço cotidiano de Ferrera em fazê-lo funcionar, apesar de tudo.

Com um produto comunista, também foi possível contrariar a lei da obsolescência planejada.

Não com a mesma eficácia, beleza dos velhos cadillacs.

Mas, o velho guerrilheiro tem aventuras, muitas, pra contar.

Historicamente, mais ricas do que a dos velhos cadillacs.

Até porque Ferrera não fez dele um ganha-pão.

Comunista vida inteira.

Até hoje.

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