24.5 C
Brasília
sexta-feira, 26 julho, 2024

Bento Aranha: sarapatel, indígenas e enchente

José Bessa Freire

“No Amazonas, tudo é grande e só pequeno é o homem”  (Bento Aranha, 1906)

Essa fofoca é deliciosa, embora trágica. O coronel José Carvalho, nomeado em 1804 governador da Capitania de São José do Rio Negro, saiu de Belém para tomar posse em Manaus. No pernoite em Parintins, então Vila Nova da Rainha, comemorou com um jantar da culinária regional. Encheu a pança com sarapatel de tartaruga no casco assado e arabu – manjar com ovos de cágado, crus e batidos com farinha e açúcar. O jabuti roncou no seu estômago, que dilatou. Teve indigestão e morreu na hora. Foi governador sem nunca ter sido, como a viúva Porcina.

Este fato narrado e reproduzido aqui com ligeira “enfeitadinha” está em Um Olhar pelo passado (1897) do livro Bento Aranha – Textos Selecionados, organizado pelo historiador Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro, cujo lançamento pela Editora Valer será na quinta (16/5), em Manaus, na Biblioteca do ICBEU.

Levanta a mão aí quem conhece Bento Aranha (1841-1919)? Ninguém fala dele nas escolas do Amazonas. Este jornalista, professor, escritor, historiador, teatrólogo, político, administrador público ficou no ostracismo por mais de cem anos e tem agora um livro, que lhe faz justiça ao recuperar sua memória.

Balkar identificou e organizou mais de 300 artigos em jornais de Manaus e Belém e outros do Rio de Janeiro, onde Bento Aranha estudou humanidades e geografia. Selecionou diversos deles, que abordam não apenas “fofocas”, mas vida política, literatura, geografia, etnografia e história, incluindo a proclamação da República e a Cabanagem, fruto de pesquisas de Bento em arquivos e em documentos orais, como a biografia do seu pai, Tenreiro Aranha, primeiro presidente da Província do Amazonas.

Dois temas do livro merecem destaque por sua atualidade: a visão de Bento Aranha sobre os povos indígenas e suas reflexões sobre a grande enchente de 1909 dos rios da Amazônia.

Heróis ou criminosos?

A relação do nosso Bento com os indígenas merece ser discutida. Em 1871, apresentou projeto ao governo do Pará para explorar navegação do rio Xingu, em sociedade com comerciantes da praça de Belém. Deu com os burros n´água. Quatro anos depois, criou com outro sócio a Colônia Josefina, no rio Demini, afluente do Negro, para aldear os Xiriana, nome que se dava aos Yanomami. Igualmente sem sucesso. Depois foi iluminado como Saulo no caminho de Damasco.

A transformação na sua vida foi similar – guardadas as diferenças do contexto histórico – ao ocorrido no séc. XVI com Bartolomeu de Las Casas, que veio para a América como comerciante e abandonou o negócio ao conviver com os índios do Caribe, de quem, já como missionário dominicano, se tornou radical defensor. Já Bento Aranha mudou de lado na convivência com os Makuxi, Wapixana, Taurepang, Ingarikó e outros grupos, quando foi promotor em Barcelos e Diretor de Índios no Rio Branco (1898-1903).

Em seis textos selecionados sob o título Os índios de Colombo publicado no Rio, em 1912, Bento Aranha condena a “satânica, sórdida e indomável” violência do colonizador. “Heróis” da história oficial do Grão Pará são, para ele, “criminosos”: Castello Branco, Pedro Favela, Pedro Teixeira, Bento Maciel, entre outros. Tratamento análogo Las Casas (cuja obra Bento talvez desconhecia) dispensou a Vicente Pinzón e Diego de Lepe, que tocaram o terror na foz do Amazonas antes de Cabral aportar diante do Monte Pascoal.

A análise histórica de Bento Aranha sobre as políticas indigenistas de Portugal, do Império e da República são elucidativas, embora o   balanço que faz da política de Pombal deixe muito a desejar. Sua posição é interessante e complexa”, de um lado inovadora de respeito e defesa aos povos indígenas, de outro influenciada pelo positivismo e a postura tutelar dominante na época, conforme ressalta Balkar na sua primorosa apresentação.

Barbárie ou civilização?

Balkar destaca que “como poucos de sua época Bento Aranha denunciou a violência da conquista colonial em termos contundentes, assumindo a perspectiva dos índios nesse processo”.  Efetivamente, Bento chama as coisas por seus nomes. Denomina de “guerra de extermínio” e de “barbárie” as obras da (mal) dita “civilização, que promoveu genocídio, “incêndio e arrasamento de aldeias, escravidão e morte. Foi o que os europeus fizeram em nome d´El Rei, da humanidade, da civilização e de Deus”.

Ataca os preconceitos dominantes da imprensa que é, com raras exceções, subserviente e venal. O jornal A Federação berrou com histeria que os indígenas do Rio Branco, para “saciar o seu ódio à nossa raça e satisfazer os seus instintos perversos”, mataram o fazendeiro Philomeno Pires, rotulado por Bento de “contratador de carne humana”, quando defendeu os acusados e mostrou que agiram em “legítima defesa diante dos ataques sistemáticos que sofriam”.

Dessa forma nos fez lembrar Las Casas quando Sepúlveda, advogado dos encomenderos, denunciou a morte de dois missionários da mesma ordem dos dominicanos flechados pelos índios:

– Ainda que fossem Pedro e Paulo Apóstolo, ainda assim os índios teriam razão – argumentou Las Casas, que já como bispo de Chiapas invocou também o direito à “legítima defesa”.

Na qualidade de Diretor de Índios, Bento Aranha denunciou as perseguições e a usurpação de terras indígenas por fazendeiros e criadores de gado no Surumu e na Serra da Lua e condenou os governantes que apoiavam tais ações:

– O governo não tem sido menos culpado da guerra, que sofreram os índios no rio Negro e em outros rios, prestando auxílio, com força armada e empenhos de certos mandões caricatos”, concedendo a eles “inconfessáveis, ignóbeis e escandalosos monopólios” em detrimento dos direitos indígenas e protegendo “indivíduos sem imputabilidade moral”.

A “elite” da Amazônia

Em dois momentos dos textos selecionados, Bento observa a ignorância e “a falta de estudos sobre os usos, costumes, língua, civilização e origem dos índios americanos” e chama a atenção “a quem queira escrever a sua história” para a necessidade de “sindicar e observar em primeiro lugar a origem desse povo, da língua que falava, da sua constituição, religião, da forma de governo e do estado de adiantamento de suas artes, ciências e semi civilização”.

O radical e apaixonado Bento Aranha chuta o pau da barraca e dispara sua metralhadora giratória discursiva contra a elite da Amazônia que, como sinalizou Márcio Souza, “aprendeu a abanar o rabo para qualquer atitude condescendente da Metrópole”. Ninguém escapou de suas denúncias:

– Os diretores aproveitavam em seu próprio benefício o trabalho dos nossos aborígenes e os escravizavam e vendiam a quem melhor pagasseAs crianças eram arrancadas aos seus progenitores para serem dadas de presente, como xerimbabos, aos magnatas, aos chefes políticos, aos magistrados, aos presidentes da província, aos deputados e senadores e aos ministros. Nunca deu-se-lhes escola onde aprendessem a ler e escrever, nem oficinas onde se aplicassem as artes e ofícios”.

A radicalidade de Bento Aranha pode ser encontrada também na série A Enchente do Amazonas, composta de onze artigos publicados no Jornal do Commércio de Manaus durante a grande cheia de 1909, que inundou o vale amazônico do Javari até o Atlântico. Suas reflexões são tão atuais, que permitem fazer uma analogia com a tragédia vivida hoje pelos moradores do Rio Grande do Sul.

A enchente do Amazonas

Doenças, fome, habitações submersas até o teto, escolas invadidas pelas águas, roças e lavouras destroçadas com seus produtos “arrastados pela correnteza, matando cavalos, bois, carneiros” mexeram com os sentimentos de Bento Aranha, para quem “é triste e doloroso registrar-se tão desastroso acontecimento quando é notável a indiferença criminosa diante dele por parte dos poderes superiores da República e dos dois Estados do Pará e Amazonas ”.

Suas críticas incluíram “as caricatas e desleais administrações dos municípios, forjadas pela fraude eleitoral e que preferem ser guiadas por incúria, desleixo, indiferença e desídia, nas gestões dos negócios municipais e na criminosa aplicação que dão às suas rendas”, em vez de prestar serviços em proveito da coletividade. Denunciou “o silêncio sepulcral das autoridades e o desprezo aos clamores das vítimas na luta entre a miséria e a morte em que ora se debatem”.

Dirigiu, então, uma campanha através do Jornal do Commercio para mobilizar ajuda solidária, reivindicando que os governos do Amazonas e do Pará e os armadores das embarcações pusessem “à disposição das vítimas da inundação passagens a bordo dos seus vapores, transportando-as para as vilas e cidades mais próximas”.  O poder público devia pagar o combustível e distribuir “roupa e gêneros alimentícios para matar a fome e cobrir a nudez das vítimas”.

Seu apelo foi parcialmente atendido. Ele reproduz cartas de comerciantes e o envolvimento do bispo diocesano de Manaus, da Sociedade S. Vicente de Paula, de corporações religiosas e beneficentes e de vários outros setores da sociedade amazonense.

Punhalada

A linguagem do autor, que assinou crônicas com vários pseudônimos, entre os quais Ajuricaba, et pour cause, caracteriza-se por um “estilo similar a uma punhalada que só dói quando a ferida esfria”, como o poeta Manuel Bandeira definiu a escrita do jornalista Joel Silveira.  Isso pode ser observado no artigo “Os cogumelos da República” (Diário de Notícias, Belém, 1890), onde ataca os “mercenários e parasitas”, cuja prática era o puxa-saquismo em troca da bufunfa:

– O aulicismo, que existia nos dois partidos políticos constitucionais, sustentava o regime monárquico enquanto este abrisse-lhe os cofres das graças para satisfazer as suas escandalosas exigências. Depois, os mercenários do rei passaram a ser mercenários da República e já se dizem mais republicanos que o seu propagandista; sua adesão valeu-lhe bastante ouro”. O Centrão tem precedentes.

Uma série de sete artigos com o título de Criminosos célebres da Amazônia (O Imparcial, Manaus, 1899) não foi publicado porque Balkar só conseguiu acessar quatro deles. Esperamos lê-los em “A volta de Bento Aranha” ou “Bento Aranha II”. Morro de curiosidade para saber quais os nomes da lista.

O que eu conhecia de Bento Aranha era apenas a coleção que editou, em 1907, da revista “Archivo do Amazonas”. Agora, de uma talagada só, li a seleção de textos de “mais de cinco décadas de aguerrida militância no jornalismo”, que “atraiu contra ele a ira de governantes e poderosos oligarcas”, o que explica, segundo Balkar, a deslembrança e o ostracismo:

– Cravamos em seu peito esquálido de Quixote incansável, que embora nunca tenha deixado de sonhar utopias de um mundo melhor, acordava para a luta a cada manhã, ciente de que só por meio dela um outro mundo fosse possível.

Te cuida, Vilson

Bento Aranha foi um grande homem, ao contrário do que escreveu sobre a grandeza do Amazonas e a pequenez de sua gente. Nascido em Belém, fundador do Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico do Pará, em 1900, junto com Emilio Goeldi, João Lúcio de Azevedo, Domingos Antônio Raiol e Manoel Baena, Bento Aranha merece ser incorporado na reedição de outro livro que igualmente iluminou a todos nós: A Expressão amazonense: do colonialismo ao neocolonialismo (1977) de Márcio Souza.

Duas derradeiras observações nesse textão: 1) Não vou mentir pra vocês: fiquei todo besta com a dedicatória do Balkar e já doamos um exemplar ao Programa de Pós Graduação de Letras (PPGL) da UFPA, depois que fui selecionado como seu professor visitante. Esse livro devia estar em todas as bibliotecas da Amazônia. 2) Alerto que o arabu e o sarapatel são os pratos preferidos do atual governador, o Coisificado Wilson Lima. Te cuida, Vilson!

ÚLTIMAS NOTÍCIAS