Eram 80 alunos guarani vindos, em 2006, de mais de 50 aldeias de cinco estados para o Curso de Formação de Professores realizado no município Gov. Celso Ramos (SC). No módulo que ministrou, Bartomeu Meliá narrou, em língua guarani na qual era fluente, a história da flauta sagrada (mimby apyjka) da cosmologia Nhandeva, recolhida no Chaco paraguaio. Nas anotações que fiz na época num caderno, registrei a conversa com um professor mbya que, meio desconfiado com a versão apresentada, me disse:
– Com todo respeito, esse final não faz parte da história que meu pai sempre me contava.
Quando recontou ao velho tcheramoi, então com 96 anos, ouviu dele:
– Iiiih! Melià tem razão! É isso mesmo. Só agora me lembro que é assim que a história termina.
Esse episódio ilustra a relação mantida com os Guarani por Bartomeu Melià, jesuíta, nascido em 1932 em Porreres, Mallorca (Espanha) e falecido aos 87 anos, no último dia 6, em Assunção, Paraguai, onde viveu desde 1954. Escutava, guardava e repassava, usando sua memória prodigiosa. Transitou durante mais de seis décadas pelos labirintos dos quatro dialetos da língua guarani, aos quais devotou amor incomensurável, comparável ao dedicado à sua língua materna, que não era o espanhol, mas o mallorquin – um dialeto do catalão falado em sua casa e banido da escola pela ditadura de Franco, o que despertou sua solidariedade às línguas reprimidas.
Sábios analfabetos
A língua e a cultura guarani estão presentes na sua biblioteca especializada com mais de 8.500 livros e cerca de 500 documentos fotocopiados em arquivos de vários países da América e Europa, parte dela herdada do antropólogo León Cadogan, de quem foi discípulo e do jesuíta Antônio Guasch, seu primeiro professor de língua guarani e autor do Diccionario Castellano-Guarani e Guarani-Castellano.
Usou esses saberes na sua tese de doutorado defendida em 1969 na Universidade de Strasbourg, França, assim como nas aulas ministradas na USP, UNICAMP e UNISINOS, depois que foi expulso do Paraguai por haver denunciado o genocídio dos Ache-Guayaki, uma das quatro grandes etnias da região oriental. O regime ditatorial do general Stroessner pagava a pistoleiros o equivalente a 12 dólares por cada índio assassinado. No documentário Diário-Guaraní do cineasta Marcelo Martinessi, Melià conta que policiais invadiram sua casa, enquanto estava tomando banho e o ameaçaram com uma pistola.
Viveu no Brasil treze anos de exílio. Só retornou ao Paraguai depois da queda do ditador Stroessner. Aqui, além dos Guarani, conviveu com os recém-contatados índios Salumã, próximo ao rio Juruena (MT) e com os Kaingang (RS). Sintetizou suas experiências no livro “Educação Indígena” (1979) dedicado “a Kawayri e nele a todos os sábios analfabetos dos povos indígenas do Brasil”. Escrito na aldeia Rikbatsa, o livro circulou primeiro em versão mimeografada. Lá discute o processo educativo na sociedade indígena e sua pedagogia, os processos próprios de aprendizagem, a resistência indígena à escola, a situação linguística e as condições de alfabetização.
– Rebelo-me contra a ditadura da escola – escreveu ele, condenando o caráter de “cruzada” dessa “epidemia educacional” que quer “enfiar toda a cultura para dentro da escola”.
Bilhetes em árvores
Escreveu um poema, em 1972, intitulado de forma provocadora “Ai daquele que ensina a ler a quem não sabe”. Trata-se de uma apologia às culturas de tradição oral, que celebra em uma das estrofes:
– “Felizes vocês / os a-n-a-l-f-a-b-e-t-o-s / os que não leem nem mesmo o ABC / os que não foram encurralados pela civilização, nem marcados com as letras do amo / nem domados em uma escola / felizes vocês / os an-alfa-betos / porque de vocês é o reino da profecia / sempre esperada, sempre temida”.
Consciente do choque do pote de barro – a tradição oral, com o pote de ferro – a escrita, Melià participou de muitos programas de educação indígena com uma visão crítica sobre a prática da escrita. Ele chutou o pau da barraca, criticando o bilinguismo de transição como “a maior ameaça que pesa sobre as línguas da América Latina”, por ser “teoricamente viciado, mal programado e pessimamente administrado”.
Apesar disso, quando os índios pediram, alfabetizou muitos deles. No curso mencionado, contou aos professores guarani como ele mesmo ensinou os autodenominados Enawenê-Nawê a ler e escrever. Para que serviu a escrita? Para divertimento dos índios que penduravam bilhetes nas árvores: “Vou pescar. Só volto de tarde”. O papel voltava ao lugar de origem: o tronco de madeira.
Melià discutiu problemas relacionados à criação do alfabeto para as línguas de tradição oral, ciente de que a escrita faz parte da atividade escolar em situação de bilinguismo: “Cuidado com a ortografia feita só por linguistas, mas também cuidado com a ortografia feita sem os linguistas” – disse ele, citando Xavier Albó, seu colega jesuíta estudioso das línguas quéchua e aymara na Bolívia.
Criativo, ao explicar a natureza da escrita, usou o futebol como um jogo com regras para conseguir a comunicação. Didático, comparou a estrutura da língua com um prédio de três andares para dar sentido à clássica divisão dos níveis de análise dos linguistas. Os índios entendiam bem suas aulas, porque falava guarani e porque era claro, sem rebuscamento. No mesmo curso, discutiu com os professores bilíngues problemas de tradução dos textos religiosos dos Mbyá-Guarani e da transcrição de narrativas orais numa língua cuja escrita não foi ainda normatizada.
Tinha uma visão crítica de certa prática missionária. Em entrevista a Kleyton Rattes, em 2013, teceu críticas ao papel da Igreja no período colonial, afirmando que “os jesuítas compreenderam, mas paralisaram o sistema econômico guarani”.
Encantamento
– Ele era um religioso pouco convencional, sem fé dogmática, disposto a se deixar evangelizar pelos guaranis. Era como um velho sábio karaí – garante a historiadora paraguaia Milda Rivarola.
Outra conhecida lutadora paraguaia, Perla Álvarez, lembra que “Melià dizia que da mesma forma que desmatam nossos bosques para a soja e o gado, também decepam elementos linguísticos, porque o que não existe não se nomeia”.
Em outra entrevista a Maria Isabel Malinowski e Selma Batista da Universidade Federal do Paraná, em 2003, para a revista Campos, Melià disse que “os Guarani fascinam pela sua sabedoria, pela sua ingenuidade, pela sua bondade, sua resistência e sua verdade tão direta”:
– “Sempre levei muito a sério a palavra dos Guarani. Não é esnobismo quando digo que foram eles que me viraram a cabeça: a longa e repetida vivência nas suas casas, caminhando com eles pelo mato – mato que, aliás, não existe mais – dançando com o maracá na mão nos rituais ordinários e extraordinários, como os de perfuração do lábio. Uma semana na aldeia guarani ensina muito mais que dias e meses na universidade. Os meus trabalhos tentam recolher essas experiências, embora não falem delas. As perguntas vêm do mato, a argumentação passa às vezes pela biblioteca e a conversa com autores vários”.
Guardião zeloso da memória étnica guarani, que é poderosa, nem sempre teve o mesmo cuidado com a memória pessoal. Num evento em Foz do Iguaçu, que eu abri e ele fechou, no final da minha conferência citei sua frase:
– “A história da América é também a história de suas línguas, que temos de lamentar quando já mortas, que temos de visitar e cuidar quando doentes, que podemos celebrar com alegres cantos de vida quando faladas”.
Quando voltei ao auditório e me sentei a seu lado, ele me perguntou com certa candura:
– Não lembro. Onde foi que eu escrevi isso?
Mostrei-lhe a página 27 do seu livro “Pasado, presente y futuro de la lengua Guarani” com a dedicatória que fez: “Taquiprati, amigo Bessa, Che py’a eté guire, Bartomeu S.J. Foz de Yguassu, 20 nov.2014.
Estilo Melià
O que ele não esqueceu nunca foi sua devoção à língua Guarani. Em 2007, participou do painel “O Espanhol em convivência com as línguas indígenas da América”, no IV Congresso Internacional da Língua Espanhola, realizado em Cartagena, Colômbia, aberto pelo rei da Espanha. Lá, iniciou sua fala sobre “a crise do bilinguismo no Paraguai” com a frase que deixou escapar:
– Porque nosotros, los Guaranies….
Ele, efetivamente, se guaranizou. A sua identidade através da língua foi a sua escolha de vida. Na citada entrevista à revista Campos, revelou que mesmo que não tivesse deixado nenhum escrito, podia concluir que “não foi em vão ter escutado os Guarani e vivido horas de alegria e de esperança com eles”. Deixou mais de 30 livros e dezenas de artigos sobre os Guarani.
Não foi também em vão ter escutado o guarani Melià, a quem conheci em 1979 numa assembleia do CIMI e com quem convivi em eventos, bancas, cursos e assembleias indígenas e que me dava alegria quando comentava as crônicas do Taquiprati sobre línguas.
A antropóloga e demógrafa Marta Azevedo, minha amiga, viajou a Assunção só para participar dos seus funerais:
– “Ele foi enterrado num cemitério jesuíta num lugar lindo à beira do caminho, no fundo da casa, sem qualquer ostentação. Nada. Somente um pequeno marco em cada cova. Estilo Melià mesmo”.
Comentei com ela que a morte de nosso amigo era como se com ele fosse enterrado um pedacinho de cada um de nós. Ela respondeu com sabedoria dos guarani, com quem trabalhou muitos anos:
– Estou saindo daqui com a sensação inversa. É como se ele tivesse se distribuído para todos ñandé e eu levo comigo uma parte dele.
Taquiprati, amigo Melià, do fundo do meu coração: Che py’a eté guire.
BARTOMEU MELIÀ: NOSOTROS LOS GUARANI...
José R. Bessa Freire – Diário do Amazonas
Eran 80 alumnos guaraní, en 2006, que venían de más de 50 aldeas de cinco estados brasileños para el Curso de Formación de Profesores realizado en el municipio Gov. Celso Ramos (Santa Catarina). En el módulo que administró, Bartomeu Meliá narró, en lengua guaraní en la que era fluente, la historia de la flauta sagrada (mimby apyjka) de la cosmología Ñandeva, recogida en el Chaco paraguayo. En las notas que tomé entonces en un cuaderno, registré que un profesor mbya desconfiaba de esa versión, diciéndome:
– Con todo respeto, ese final no hace parte de la historia que mi papá siempre me contaba.
Cuando volvió a la aldea y le contó esa versión, el viejo tcheramoi, de 96 años, le dijo:
– Iiiih! Melià tiene razón. ¡Efectivamente! Ahora me acuerdo que es así como termina la historia.
Ese episodio ilustra la relación que mantenía con los Guaraní Bartomeu Melià, jesuita, que nació en 1932 en Porreres, Mallorca (España) y falleció a los 87 años, el último día 6, en Asunción, Paraguay, donde vivió desde 1954. Escuchaba, guardaba y repasaba, usando su prodigiosa memoria. Transitó durante más de seis décadas por los laberintos de cuatro dialectos de la lengua guaraní, a los que devotó amor inconmensurable, como el que dedicó a su lengua materna, que no era el español, sino el mallorquí – un dialecto del catalán hablado en su casa y banido de la escuela por la dictadura de Franco, lo que despertó su solidaridad con las lenguas reprimidas.
Sabios analfabetos
La lengua y la cultura guaraní están presentes en la biblioteca especializada que construyó con más de 8.500 libros y cerca de 500 documentos fotocopiados en archivos de varios países de América y Europa, en parte heredados del antropólogo León Cadogan, de quien fue discípulo así como del jesuita Antonio Guasch, su primer profesor de lengua guaraní, autor del Diccionario Castellano-Guarani e Guarani-Castellano.
Usó esos saberes en su tesis de doctorado defendida en 1969 en la Universidad de Strasbourg, Francia, así como en las clases que dictó en la USP, UNICAMP y UNISINOS, después que lo expulsaron del Paraguay por denunciar el genocidio de los Ache-Guayaki, una de las cuatro grandes etnias de la región oriental. El régimen dictatorial del general Stroessner pagaba a pistoleros lo equivalente a 12 dólares por cada indio asesinado. En el documental Diario-Guaraní del cineasta Marcelo Martinessi, Melià cuenta que policías invadieron su casa, cuando estaba tomando baño y lo amenazaron con una pistola.
Vivió en Brasil trece años de exilio. Solamente pudo volver al Paraguai con el fin de la dictadura de Stroessner. Aquí, además de los Guaraní, convivió con los recién-contactados indios Salumã, cerca del río Juruena (MT) y con los Kaingang (RS). Sintetizó sus experiencias en el libro “Educación Indígena” (1979) dedicado “a Kawayri y en él a todos los sabios analfabetos de los pueblos indígenas de Brasil”. Escrito en la aldea Rikbatsa, el libro circuló primero en versión a mimeógrafo. Allí discute el proceso educativo en la sociedad indígena y su pedagogía, los procesos propios de aprendizaje, la resistencia indígena a la escuela, la situación lingüística y las condiciones de alfabetización.
– Me rebelo contra la dictadura de la escuela – escribe, condenando el carácter de “cruzada” de esa “epidemia educacional” que quiere “meter toda la cultura dentro de la escuela”.
Recados en árboles
Escribió un poema en 1972, con un título provocador: “Ay del que enseña a leer al que no sabe”. Se trata de una apología a las culturas de tradición oral, que celebra en una de sus estrofas:
Felices ustedes
los a-n-a-l-f-a-b-e-t-o-s
los que no leen siquiera el ABC
los que no fueron acorralados por la civilización
ni marcados con las letras del amo
ni domados en una escuela
Consciente del choque entre la olla de barro – la tradición oral, y la olla de hierro – la escritura, Melià participó de muchos programas de educación indígena con una visión crítica sobre la práctica de la escritura. Cargando las tintas, criticó el bilingüismo de transición como “la mayor amenaza que pesa sobre las lenguas de América Latina”, por ser “teóricamente viciado, mal programado y pesimamente administrado”.
A pesar de esto, cuando los indios se lo pidieron, alfabetizó a muchos de ellos. En el mencionado curso, les contó a los profesores guaraní como él propio les enseñó a los autodenominados Enawenê-Nawê a leer y escribir. ¿Para qué sirvió la escritura? Para diversión de los indios que colgaban recados en los árboles: “Voy a pescar. Solo regreso de tarde”. El papel volvía a su lugar de origen: el tronco de madera.
Melià discutió problemas relacionados a la creación del alfabeto para las lenguas de tradición oral, consciente de que la escritura hace parte de la actividad escolar en situación de bilingüismo: “Cuidado con la ortografía hecha solamente por lingüistas, pero también cuidado con la ortografía hecha sin los lingüistas” – dice, citando Xavier Albó, su colega jesuita estudioso de las lenguas quechua y aymara en Bolivia.
Creativo, al explicar la naturaleza de la escritura, usó el fútbol como un juego con reglas para conseguir la comunicación. Didáctico comparó la estructura de la lengua con una casa de tres pisos para dar sentido a la clásica división de los niveles de análisis de los lingüistas. Los indios entendían bien sus clases, porque hablaba guaraní y porque era claro, sin rebuscamientos. En el mismo curso, discutió con los profesores bilingües problemas de traducción de textos religiosos de los Mbyá-Guaraní y de la transcripción de narrativas orales en una lengua cuya escritura no está estandarizada.
Tenía una visión crítica de algunas prácticas misioneras. En una entrevista a Kleyton Rattes, en 2013, criticó el papel de la Iglesia durante el período colonial, afirmando que “los jesuitas comprendieron, mas paralizaron el sistema económico guaraní”.
Encantamiento
– Él era un religioso poco convencional, sin fe dogmática, dispuesto a dejarse evangelizar por los guaranís. Era como un viejo sabio karaí – afirma la historiadora paraguaya Milda Rivarola.
Otra conocida luchadora paraguaya, Perla Álvarez, recuerda que “Melià decía que así como desmatan nuestros bosques para soja y criar ganado, también cercenan elementos lingüísticos, porque lo que no existe no se nombra”.
En otra entrevista de 2003 a Maria Isabel Malinowski y Selma Batista de la Universidad Federal de Paraná para la revista Campos, Melià dice que “los Guaraní fascinan por su sabiduría, por su ingenuidad, por su bondad, su resistencia y su verdad tan directa”:
– “Siempre tomé en serio la palabra de los Guaraní. No es esnob cuando digo que fueron ellos los que me transformaron: la larga y repetida vivencia en sus casas, caminando con ellos por las matas – matas que, de hecho, no existen más – danzando con la maraca en las manos en los rituales ordinarios y extraordinarios, como los de perforar el labio. Una semana en la aldea guaraní enseña mucho más que días y meses en la universidad. Mis trabajos intentan recoger esas experiencias, aunque no hablen de ellas. Las preguntas vienen de la mata, la argumentación pasa a veces por la biblioteca y el diálogo con varios autores”.
Guardián celoso de la memoria étnica guaraní, que es poderosa, no siempre tuvo el mismo cuidado con la memoria personal. En un evento en Foz de Iguazú, que yo abrí y él encerró, al terminar mi conferencia cité su frase:
– “La historia de América es también la historia de sus lenguas, que tenemos que lamentar cuando ya muertas, que tenemos que visitar y cuidar cuando enfermas, que podemos celebrar con alegres cantos de vida cuando habladas”.
Cuando volví al auditorio y me senté a su lado, me preguntó con cierto candor:
– No me acuerdo. ¿Dónde escribí eso?
Le mostré la página 27 del libro “Pasado, presente y futuro de la lengua Guaraní” con su dedicatoria: “Taquiprati, amigo Bessa, Che py’a eté guire, Bartomeu S.J. Foz de Yguassu, 20 nov.2014.
Estilo Melià
Lo que no olvidó nunca fue su devoción a la lengua Guaraní. En 2007, participó en el panel “El Español en convivio con las lenguas indígenas de América”, en el IV Congreso Internacional de la Lengua Española, realizado en Cartagena, Colombia, abierto por el rey de España. Allí, inició su discurso sobre “la crisis del bilingüismo en Paraguay” con la frase:
– …porque nosotros, los Guaraní….
Efectivamente, se guaranizó. Su identidad a través de la lengua fue su opción de vida. En la citada entrevista a la revista Campos, reveló que aunque no hubiera dejado ningún trabajo escrito, podía concluir que “no fue en vano haber escuchado los Guaraní y vivido horas de alegría y de esperanza con ellos”. Dejó más de 30 libros y decenas de artículos sobre los Guaraní.
Tampoco fue en vano haber escuchado al guaraní Melià, a quien conocí en 1979 en una asamblea del CIMI y con quien conviví en eventos, tribunales, cursos, asambleas indígenas y que me daba alegría cuando comentaba las crónicas del Taquiprati sobre lenguas.
La antropóloga y demógrafa Marta Azevedo, mi amiga, viajó a Asunción solamente para participar de sus funerales:
– “Él fue enterrado en un cementerio jesuita, un lugar lindo a la vera del camino, al fondo de la casa, sin cualquier ostentación. Nada. Tan solo un pequeño marco en cada nicho. Estilo Melià”.
Le comenté que la muerte de nuestro amigo era como si con él se enterrase un pedacito de cada uno de nosotros. Ella me respondió con sabiduría de los Guaraní, con quien trabajó muchos años:
– Estoy saliendo de aquí con la sensación inversa. Es como si Melià hubiera distribuido para todos ñandé y llevo conmigo una parte de él.
Taquiprati, amigo Melià, desde el fondo de mi corazón: Che py’a eté guire.
AY DEL QUE ENSEÑA A LEER AL QUE NO SABE
Bartomé Melià
Aunque la escritura no haya podido consolidar
los conocimientos, era tal vez indispensable para
dar firmeza a las dominaciones… La lucha contra
el analfabetismo se confunde así con el refuerzo
del control sobre los ciudadanos por el poder
Claude Lévi-Strauss, Tristes tropiques
Felices ustedes
los grandes
los serenos
los profundos
los insobornables
los independientes
Felices ustedes
los a-n-a-l-f-a-b-e-t-o-s
los que no leen siquiera el ABC
los que no fueron acorralados por la civilización
ni marcados con las letras del amo
ni domados en una escuela
los que siempre han logrado pensar salvajemente
y no repiten de memoria como loros
en coros
los catecismos del estado de sitio
−niño, rápido, no pienses! –
felices ustedes
los sabios
los incontrolables
los reacios a los programas
a las encuestas
a los registros
a las ideas universales establecidas
−establecidas Dios sabe por quién
y con qué medios−
felices ustedes
los inmanejables analfabetos
los inservibles los inútiles
la gran pesadilla de los planificadores
el fracaso de los gobiernos
el escándalo de las naciones en vías de asimilación
felices ustedes
quienes desconfían de la letra uniforme
y militarmente ordenada en columnas
quienes quieren ver la cara del que dice la palabra
porque de ustedes es
el reino de la palabra
el reino de la palabra dada y recibida
guardada
como se guarda la semilla en la tierra madre
la palabra junto al fuego
−lengua de fuego−
en la mañana del mate
en la noche del velorio
felices ustedes
cuando les persiguen por decir la verdad
aquella verdad no aprendida en ninguna escuela
aquella verdad no escrita en ningún libro
−y nadie se explica de dónde la sacaron ustedes−
Felices ustedes
los an-alfa-betos
porque de ustedes es el reino de la profecía
siempre esperada, siempre temida
nunca cumplida, siempre asesinada
cuando tiene exactamente treinta y tres años
y ay de ustedes
los escribanos y los letrados
los letrados que se las saben todas y más
que hicieron de la trampa un arte
y de la explotación una ley de la vida
ay de ustedes
los escribanos del statu quo y de la propiedad privada
−trasladaron al papel sellado
el robo de las tierras de los indios
−documentaron los derechos
sagrados
sagrados derechos de los conquistadores
tranquilamente
como quien escribe una carta a su tía
en el día de su cumpleaños
−que lo dice el refrán
la letra con sangre entra−
ay de ustedes
los alfabetizadores
almaceneros
y funcionarios
fabricantes del texto único
del monopolio
de la burocracia
linda ocupación suya tan altruista
de proporcionar al pueblo
letras
letreros
y grandes frases
−la llave de la puerta del jardín es verde
−todo va mejor con soda
−alfabetizar es hacer patria
ay de ustedes
los censores, metidos a periodistas, cocineros de noticias
aduaneros de ideas
porque de noche vendrán
sin que ustedes se lo esperen
quienes escriban su grito
rojo y negro
de libertad
sobre los muros del pueblo
ay de ustedes
los escribas
intérpretes de escrituras
sagradas
que promueven la guerra santa
justifican la santa inquisición
defienden el sagrado derecho
de la familia, la tradición y la
propiedad
letras
muchas letras
de todos los tamaños de todos los estilos
letras viejas letras sonsas letras en conserva
para la boda
para el epitafio
para el testamento
en un corazón indeletreable
En la Revista Acción Nº 14, Asunción, 1972