por Daniel Gorte-Dalmoro
Em confraternização de natal, dia 23, o dono de uma revenda Mercedes-Benz, Matteo Petriccione Júnior, depois de agredir a tia, assassinou o irmão com três tiros. A notícia me trouxe a memória o evento de um ano antes, quando os primos Ricardo Nascimento Martins e Alípio Rogério Belo dos Santos – dois cristãos, como fica evidente nos crucifixos e nas camisetas com Jesus que ostentavam – assassinaram a socos e pontapés, na noite de natal, o ambulante Luiz Carlos Ruas, quando ele tentou proteger uma travesti da agressão.
Três dias depois, quando o primeiro assassino foi pego, disse às câmeras de tevê (as mesmas emissoras que pagam e dão voz a personalidades públicas que, ainda que veladamente, defendem o assassinato de transexuais) que não era “uma má pessoa”, era antes um “cidadão de bem”, como a pessoa que assassinara (nenhuma referência a Raíssa, a transexual que tentara matar antes, que pela sua condição de semi-humana sequer merece nome na grande imprensa); atrás de um cordão de isolamento da polícia, uma malta de pessoas – cristãs a maioria, se não todas -, poucos dias depois de falar de amor ao próximo e paz, no exemplo de Cristo, brandiam, adestradas e estimuladas por essa mesma mídia, palavras de ódio e pedidos de justiçamento (que tal a crucificação dos assassinos?).
Os primos Ricardo e Alípio eram dois Joões Ninguém; o primeiro, auxiliar de pedreiro, o segundo, segurança particular (ah, como nós, classe média, estamos bem protegidos!). Precisaram declarar por sua conta e risco que eram “pessoas de bem”, trabalhadores, para descrença da mídia e da polícia – “trabalha e está na favela?”, deve ter pensado algum cidadão de bem ao ver o noticiário. Seu principal crime foi terem matado a pessoa errada, ou melhor, terem matado alguém considerado pessoa pelas “pessoas de bem”: tivesse Raíssa sido a vítima, e o máximo que haveria seria alguma movimentação nas redes sociais da comunidade trans e simpatizantes, uma notícia no Ponte Jornalismo, e uma nota de rodapé em algum site da grande imprensa, como nos casos de Laura Vermont ou Verônica Bolina, agredidas pela própria polícia, ou sob a tutela dela, que se mostrou tão solícita diante das câmeras no caso do ambulante.
Matteo é um caso diferente. Começa que ele tem um atenuante: matou o irmão. É curioso, mas aqui no Brasil (não sei como é em outros lugares) agressões dentro da família são vistas como assuntos privados, em que pessoas de fora não devem se envolver nem ser envolvidas – se não tivesse a arma e tudo não fosse além de uma “lesão corporal grave”, como disse o policial, é possível que sequer houvesse boletim de ocorrência do caso. Além desse atenuante, mais atenuante ainda é o fato do assassino ter nome e sobrenome italiano, ter (muito) dinheiro e por isso pode se afirmar um trabalhador – ainda que possa efetivamente não trabalhar. Na verdade, ele não precisa fazer isso, a polícia já o faz. Ela sabe disso e trata o caso com a atenção devida: não cabe tanto o que diz a lei, mas como se veste o criminoso, em que carro anda, quanto possui na conta bancária. Conforme reportagem de um jornalecão local, a polícia (sem identificação de qual policial) lamentou o criminoso:
“É legal quando você fala da prisão de ladrão, mas um caso assim a gente fica triste, por ser uma grande tragédia. Pessoas de bem, trabalhadoras, e numa fração de segundos ocorre a desgraça. É até triste para nós, mas é um trabalho que precisa ser feito.”
Matteo Petriccione Júnior matou o irmão por motivo fútil, mas segue uma “pessoa de bem”, nunca um criminoso (bandido, nunca!), segundo a própria polícia, que trata o caso com tristeza. Quando um ano atrás falava dos primos pé-rapados, trabalhadores também, falava com sangue nos olhos, “não vamos descansar”, e nenhum momento cogitaram dizer que eram “pessoas de bem”, e que a culpa era do álcool, como no caso do assassino rico.
Mais que isso, a polícia deixa claro que trata com alegria o crime quando cometido por pobres – afinal, sua função é controlar e confinar a (maior) parte da população, rejeitada no baile dos bacanas -, e que hesita quando um crime grave é cometido por um dos bacanas – afinal, pessoas erram, vide Thor Batista, que nunca quis fazer mal a ninguém, mas sem querer matou; que cidadão de bem não tem o direito de matar um fulano qualquer uma vez na vida? Não que isso não seja do conhecimento geral, a novidade é como a polícia (ao menos a paulista) tem tido cada vez menos desfaçatez em se afirmar como um corpo de segurança dos ricos contra os pobres, neste caso como na entrevista do comandante da Rota, que afirmou que morador dos Jardins merece tratamento especial, no mínimo dentro da lei, enquanto morador de Capão, merece nada, na melhor das hipóteses. Talvez esse descaramento seja fruto da autorização e legitimação do governador do Estado de assassinatos extra-judiciais por seus subordinados (“quem não reagiu está vivo”).
E nestes tempos de Estado de exceção e ditadura disfarçada, o judiciário assume também ativa e ostensivamente o papel que antes era dos capitães do mato e da polícia, expulsando do baile dos bacanas os que não são bacanas puro sangue. A lei? Ora, a lei primeira nestes Tristes Trópicos é cada vez mais, a exemplo do que foi por quatrocentos anos, de quem você é filho, quanto de bens você possui. A partir disso é que se julga, quando não se inventa ou se oculta o crime.
03 de janeiro de 2018
PS: cabe notar a diferença de abordagem nas fotos da Folha aos dois crimes. No cometido pelos pobretões, seus rostos são expostos, nenhum respeito. Na do riquinho, a fachada da loja do pai, onde mal se consegue ler o nome da loja. Mas a imprensa é imparcial e equitativa e não estimula ódio e coisas do tipo.