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sábado, 27 julho, 2024

As implicações da hegemonia do dólar

Prabhat Patnaik [*]

Como exatamente o estatuto do dólar enquanto divisa de reserva se relaciona com o imperialismo? Esta questão tem duas partes:   como este estatuto do dólar está relacionado com o imperialismo dos EUA e como está relacionado com o arranjo imperialista global. O facto de o dólar ser uma divisa de reserva (e dos ativos denominados em dólares em geral) torna-o um meio de retenção de riqueza na economia mundial, um papel que os metais preciosos, como o ouro e, em menor grau, a prata, têm desempenhado historicamente. Durante longo tempo, as divisas desempenharam este papel por serem convertíveis em ouro a uma taxa fixa, o que também acontecia no sistema de Bretton Woods do pós-guerra. Atualmente, o dólar não é oficialmente tão convertível; no entanto, os ricos do mundo consideram o dólar tão bom quanto o ouro em dois aspectos.

Em primeiro lugar, ao contrário das commodities, tem custos de transporte negligenciáveis; e, em segundo lugar, não se espera que o seu valor em termos de commodities diminua secularmente, apesar das flutuações anuais neste valor. Isto é assegurado pela existência de um exército de reserva de trabalho suficientemente grande (para manter baixos os salários em dólares nos EUA) e pela imposição da compressão de rendimentos, através da compulsão política e das “condicionalidades” do FMI, aos produtores de commodities primárias do terceiro mundo a fim de manter baixos os seus preços.

Mas se o dólar é considerado “tão bom como o ouro” pelos detentores de riqueza do mundo, então, de facto, isto faz com que os EUA tenham uma mina de ouro inesgotável, com a qual podem financiar os seus défices da balança de transações correntes, sem terem de depreciar a sua divisa. É certo que o dólar não é a única divisa em que é detida a riqueza mundial; há outras moedas, como o euro, a libra esterlina e o iene (ou ativos denominados nas mesmas) em termos das quais a riqueza mundial também é detida. Mas todas estas divisas só se tornam veículos de detenção de riqueza porque não se espera que os seus valores em termos de dólares diminuam secularmente. Estes outros países avançados ajustam os seus níveis de procura agregada e, portanto, as suas taxas de desemprego, a fim de assegurar que as suas divisas mantenham os seus valores relativos face ao dólar e, por conseguinte, que estas expectativas continuem a ser mantidas. O estatuto de riqueza média destas outras divisas deriva, em suma, do estatuto do dólar; é o dólar que é a divisa básica “tão boa como o ouro”, e este facto permite aos Estados Unidos financiarem sem qualquer problema os seus défices correntes.

Mas, em primeiro lugar, por que razão surgiriam tais défices? Ao longo da história do capitalismo, o país capitalista líder geralmente mantinha um défice da balança de transações correntes em relação a outras potências capitalistas emergentes, dando-lhes acesso ao seu próprio mercado (mesmo quando essas potências rivais se haviam protegido contra o país líder), a fim de satisfazer as suas ambições e, assim, manter o seu próprio papel de liderança. De facto, é uma condição para ser líder que deveria incidir num défice da balança de transações correntes em relação a elas. Quando a Grã-Bretanha era o líder do mundo capitalista, apresentava um défice persistente da balança de transações correntes em relação à Europa continental e aos Estados Unidos, os quais então emergiam como potências rivais. Mas a Grã-Bretanha compensava os seus défices em relação a estes países através de uma apropriação não correspondida dos grandes ganhos de ouro e de divisas do mundo pelas suas colónias, impondo-lhes responsabilidades administradas, um processo que é justamente designado por “drenagem”. A isto juntou-se a exportação desindustrializante para as suas colónias e semicolônias, de tal modo que, tomando a sua balança de pagamentos como um todo, era realmente capaz de apresentar um excedente da balança de transações correntes, ou seja, de realizar exportações de capitais. Ironicamente, estava a fazer exportações de capital para aqueles mesmos países (tomados em conjunto) com os quais tinha défices na balança de transações correntes, nomeadamente a Europa continental, os EUA e outras terras de clima temperado de colonização branca.

Hoje em dia, os Estados Unidos não conseguem extrair um “dreno” na mesma escala; nem tão pouco podem fazer exportações desindustrializantes suficientes para países terceiros (países que não sejam as potências capitalistas emergentes). Têm, portanto, forçosamente, de incorrer num défice corrente global, o qual satisfazem imprimindo dólares (ou exportando títulos de dívida denominados em dólares). O papel de divisa de reserva do dólar é, portanto, crucial a fim de os EUA manterem a sua hegemonia em relação ao mundo capitalista.

Isto é também o que determina o nível de atividade dentro dos EUA e, consequentemente, em todo o mundo capitalista. Enquanto todos os outros países estão limitados pelo facto de o seu governo não poder aumentar a procura agregada através de maiores despesas, como durante o período de Bretton Woods – porque o capital financeiro globalizado impõe um limite ao seu défice orçamental em relação ao seu PIB – os EUA estão livres deste constrangimento. Dificilmente pode haver uma fuga financeira dos EUA, uma vez que a sua moeda é considerada “tão boa como o ouro”. Portanto, salvo “bolhas de preços de ativos”, a despesa do governo dos EUA é o que determina, para qualquer dado nível de distribuição de rendimento no mundo, o nível de atividade na economia mundial capitalista. O próprio governo dos EUA pode optar por limitar as suas despesas para evitar endividar-se perante o resto do mundo (através das detenções de dólares e obrigações do governo dos EUA por parte deste último); mas não é obrigado a fazê-lo. O que ele faz depende da sua política e ela determina o que acontece à produção e ao emprego no capitalismo mundial.

Toda esta questão pode ser encarada de uma forma diferente. Suponhamos, por um momento, que o dólar não fosse uma divisa de reserva. Nesse caso, os Estados Unidos teriam de tentar eliminar o seu défice da balança de transações correntes através de uma depreciação do valor externo do dólar. Uma tal depreciação, para ser eficaz e não simplesmente se dissipar através de um aumento equivalente dos salários monetários e dos preços dentro do país, esmagaria necessariamente os salários reais, o que suscitaria a resistência da classe trabalhadora interna (para contrariá-la o desemprego teria de ser suficientemente aumentado para abater a força de negociação salarial dos trabalhadores); e mesmo que a depreciação se tornasse eficaz pelo enfraquecimento da resistência dos trabalhadores, suscitaria a retaliação dos demais países capitalistas avançados, à custa dos quais os EUA estariam a aumentar as suas vendas para reduzir o seu défice da balança de transações correntes.

Assim, se o dólar não fosse uma divisa de reserva, então os EUA não poderiam permanecer como líder do mundo capitalista; estariam envolvidos num conflito de “mendigar o meu vizinho” (beggar-my-neighbour) em relação a outros países capitalistas avançados (cada um tentando arrebatar mercados aos outros) e enfrentando uma resistência dos trabalhadores ainda mais forte do que a atual. E se o desemprego nos Estados Unidos aumentasse para abater a força de negociação salarial dos trabalhadores, então isso significaria um nível mais baixo de atividade económica para o mundo capitalista como um todo. (O efeito de tais níveis reduzidos de atividade econômica noutros países capitalistas avançados não poderiam ter sido contrariados através de uma maior intervenção estatal nesses países, uma vez que tal ativismo estatal dentro de cada país não é possível num mundo de finanças globalizadas).

Isto também explica porque é que o papel do dólar como divisa de reserva é benéfico para o sistema no seu conjunto, não apenas para os EUA, mas para todo o mundo capitalista avançado. É o que dá coerência ao sistema e o faz funcionar corretamente. Mas é também o que sustenta todo o arranjo imperialista, pois o sistema assenta no imperialismo.

O dólar, enquanto moeda de reserva, não é apenas um meio de detenção de riqueza, mas também um meio de circulação. De facto, não pode ser um meio de detenção de riqueza sem ser também um meio de circulação; os países precisam de dólares para negociarem uns com os outros. Se houver escassez de qualquer matéria-prima ou de um bem salarial tropical produzido no terceiro mundo em relação à sua procura no mercado mundial, o seu preço aumenta. Mas, obviamente, a extensão global dessa inflação será mais elevada numa economia em que é o único produto, ou mesmo o único produto principal, do que numa economia em que é apenas um input dentro de todo um conjunto de produtos, ou seja, dentro da economia do terceiro mundo em comparação com as economias capitalistas avançadas em que existe uma adição substancial de valor. Devido a esta inflação mais elevada, verificar-se-ia uma fuga de capitais na expetativa de uma desvalorização da moeda do terceiro mundo em relação ao dólar, o que provocaria uma desvalorização efetiva que poderia continuar indefinidamente. Para travar tal desvalorização, seriam então impostas medidas de “austeridade” ao terceiro mundo, gerar-se-ia mais desemprego e os rendimentos seriam comprimidos.

As necessidades crescentes de bens salariais e de matérias-primas da metrópole como um todo são, portanto, atendidas, mesmo quando não há aumento da sua produção, através da compressão dos rendimentos e, por conseguinte, da procura desses bens salariais e dessas matérias-primas no interior do próprio terceiro mundo. Isto não aconteceria se o terceiro mundo não utilizasse dólares e comerciasse em grande medida dentro de si próprio. A hegemonia do dólar constitui assim a base do imperialismo contemporâneo.

Esta hegemonia atualmente está sob ameaça. Os acordos comerciais com divisas locais, ou com novas divisas, tais como as que os países BRICS planeiam introduzir, estão a ganhar terreno, encorajados em particular pelos países contra os quais os países capitalistas avançados impuseram “sanções”. Não que um colapso da hegemonia do dólar esteja iminente, mas o processo do seu declínio ao longo do tempo certamente já foi iniciado.

junho/2023

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2023/0625_pd/implications-dollar-hegemony. Tradução de JF.

Este artigo encontra-se em resistir.info

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