Alastair Crooke, Conflicts Forum (de Consortium News,
Deixando de lado por hora a obsessão do presidente Trump contra Obama e tudo que Obama fez (especialmente o Joint Comprehensive Plan of Action, JCPOA [Plano de Ação Abrangente Conjunto], conhecido como “acordo nuclear iraniano”), e a íntima relação que há entre Netanyahu e Trump, toda a política exterior do atual governo dos EUA aparece para os que não vivam dentro da área demarcada pela Av. Beltway (como esse que lhes escreve) como ação incoerente, política exterior sem projeto estratégico: aumentar o nível de tropas dos EUA no Afeganistão (depois de 16 anos de guerra); inventar um ‘paraestado’ militarizado a ser construído no nordeste da Síria; urdir um complô para dividir e criar guerra no Líbano; aceitar cooperação operacional com a guerra dos sauditas contra o Iêmen; e ‘tirar Jerusalém da mesa de discussões’? Tudo isso dá a impressão de ser pensado com muito intrigante indiferença à alta probabilidade de os EUA fracassarem em todas as frentes e de serem humilhados.
Pois agora um historiador militar que serviu com forças dos EUA no Iraque (e escreveu sobre suas experiências) contaem narrativa convincente, que, se achamos a coisa toda ‘confusa’, é porque não nos demos contas da essência que move todas essas políticas. E explica – só com uma palavra – o que nós não estamos percebendo:
“O Vietnã. O Vietnã está sempre presente, ressurgindo do passado, formatando todos os futuros dos EUA. Uma guerra que já completou 50 anos, que foi chamada de a mais longa da história dos EUA, continua viva e forte; e continua a ser sempre re-guerreada por um grupo de norte-americanos: o alto comando militar. Quase meio século depois, o alto comando militar dos EUA todos os dias é re-derrotado naquela guerra; e não admite, não se perdoa e nunca para de culpar outros pela derrota sem fim.
Mais de duas décadas de envolvimento; e no auge da guerra, meio milhão de soldados dos EUA nada mudaram na fraqueza básica (…) do projeto: o regime apoiado pelos EUA em Saigon (…) [o qual] no final [simplesmente não conseguia] manter-se no poder sem apoio dos norte-americanos – e por fim colapsou sob o peso de uma invasão convencional pelos norte-vietnamitas, em abril de 1975.
Sim, mas há um detalhe crucialmente decisivo. Embora a maioria dos historiadores (…) subscrevam nas linhas gerais a narrativa que acima se resume, a vasta maioria dos oficiais de alta patente das forças militares dos EUA absolutamente não aceitam esses, afinal, fatos.
Em vez disso, continuam sempre re-combatendo infinitamente a Guerra do Vietnã.”
“Petraeus, Mattis, McMaster e outros iniciaram as respectivas carreiras militares” – escreve Danny Sjursen –, quando o prestígio militar dos EUA estava em maré baixíssima. Esses e seus colegas aprenderam na Academia militar que o fracasso no Vietnã teria sido efeito da pusilanimidade [fraqueza, timidez, covardia] em Washington (ou nas ruas nos EUA); ou, se não fosse a covardia, teria sido a fraqueza do governo, incapaz de impor efetivamente a própria autoridade. Mas nenhuma das análises militares feitas por militares dessa geração pós-Vietnã jamais cuidou de responder à pergunta básica desde o primeiro momento: “se a Guerra do Vietnã seria vencível, necessária ou sequer recomendável”.
Para todos esses e outros da mesma geração, a guerra do Vietnã poderia e deveria ter sido vencida – e bastaria para isso que os militares tivessem imposto aos políticos a abordagem correta.
E assim chegamos a essa ‘guerra infinita’ cujo propósito empírico é ‘testar’ as duas principais teses dos militares para os períodos entre guerras – as quais, se tivessem sido corretamente implementadas no Vietnã, em vez de serem negligenciadas – teriam ‘garantido’ a ‘vitória’ dos norte-americanos.
Essa história revisionista começou em 1986 com um artigo assinado por David Petraeus no jornal militar Parameters, no qual Petraeus argumentou que o exército dos EUA não tinha preparação específica para combater conflitos de baixa intensidade (como no Vietnã), e que “o país não precisava de menos vietnameses, mas de vietnameses mais bem eliminados”. Na próxima vez, concluía Petraeus, “os militares devem fazer melhor trabalho para implementar forças, equipamento, táticas e doutrina de contrainsurgência, para vencer tais guerras”.
Um ramo de analistas militares (os Clauswitzianos, da hipótese do ‘faça-grande’), sobre como ‘vencer’ na próxima vez, hipótese introduzida por um Coronel Summers, que sugeriu que “políticos civis perderam a guerra ao se focarem sem qualquer chance na insurgência no Vietnã do Sul, em vez de se focarem na capital do Vietnã do Norte, Hanói: mais soldados, mais agressividade, até invasões em grande escala contra paraísos seguros de comunistas no Laos, Cambodia e Vietnã do Norte teriam levado à vitória” – previa Summers.
Embora H.R. McMaster (atual Conselheiro de Segurança Nacional) num livro de 1997, Dereliction of Duty [Abandono do Dever] culpasse os comandantes no Estado-maior de terem sido desonestos, ao aconselharem mal o presidente Johnson sobre o que seria necessário para ‘vencer’, ele concordava com Summers, no sentido de que seria necessária uma estratégia ofensiva mais agressiva – uma invasão em grande escala, em solo, no Norte, ou bombardeio intenso, para que nada restasse em pé naquele país. Nesse sentido, seria mais um Clausewitziano tipo ‘faça grande’ – e pode-se reconhecer algo desse quadro intelectual na tentativa que McMaster fez em abril de 2017 para persuadir o presidente Trump a mandar ao Afeganistão 150 mil soldados dos EUA, como uma ‘avançada’ ao estilo Petraeus.
Deve-se lembrar também que McMaster pregava abordagem com opções militares mais agressivas contra a Coreia do Norte.
A outra via – a abordagem no Vietnã sem métodos da contrainteligência – foi adotada de início pelo Coronel Krepinevich como explicação para o fracasso militar dos EUA no Vietnã. A doutrina definitiva da Contrainteligência (COIN), Field Service Manual 3-24, Counterinsurgency Operations, contudo, foi desconsiderada por David Petraeus, trabalhando com outro oficial, o general-tenente James Mattis (atual secretário de Defesa do governo Trump).
Petraeus “retornou com alarde ao Iraque em 2007”, escreve Tom Engelhardt, “com aquele manual embaixo do braço, com cinco brigadas, ou 20 mil soldados norte-americanos, no que ficaria conhecido como ‘a avançada’, ou “a nova via avante” – tentativa para livrar o governo Bush daquela desastrosa ocupação do Iraque. Essa interpretação revisionista da experiência do Vietnã provar-se-ia trágica no Iraque e no Afeganistão, tão logo se filtrou para todo o corpo de oficiais”. Para Sjursen,
“Todo esse ressentimento em relação ao descrédito em que caíram aquelas ‘lições’ do Vietnã formatam as atuais ‘avançadas’ dos militares dos EUA e as abordagens de “aconselhar-e-dar-assistência” nas novas guerras dos EUA no Oriente Médio Expandido e na África. Representantes das duas escolas revisionistas nascidas da Guerra do Vietnã orientam hoje o desenvolvimento da versão do governo Trump para a estratégia global do país: há os Clausewitzianos ‘de dentro’ do governo do presidente Trump [que exigiram e receberam] autoridade delegada cada vez maior [e] …”licença cada vez mais irrestrita para fazer guerra, do que jamais tiveram no Vietnã.”
Enquanto isso, a facção ‘corações-e-mentes’ do presidente Trump consiste de oficiais que passaram três governos expandindo missões influenciadas pela contrainteligência em aproximadamente 70% das nações do planeta… [e] “Hoje os líderes já nem fingem que alguma das guerras dos EUA pós-11/9 algum dia terá fim.”
Numa entrevista em junho passado, Petraeus — ainda considerado esperto ‘guru’ do establishment da Defesa — descreveu o conflito no Afeganistão como “geracional”, uma descrição sob todos os aspectos preocupante. Falando ao programa PBS’ News Hour ano passado, Petraeus disse:
“Mas essa [guerra no Afeganistão] é luta geracional. Não é coisa que vá ser vencida em uns poucos anos. Não vamos tomar uma colina, plantar uma bandeira [e] voltar para casa para o desfile da vitória. E temos de permanecer lá no longo prazo, mas de um modo que seja, novamente, sustentável. Estivemos na Coreia por mais de 65 anos, porque há importante interesse nacional por essa permanência. Estivemos na Europa por muito tempo: ainda lá estamos, claro, e agora, na verdade, com atenção renovada, dadas as ações agressivas da Rússia. Para mim, esse é o modo como precisamos abordar a questão.”
A análise que Sjursen oferece ajuda a explicar ações que, sem essas informações pareceriam erradas, ou temerárias, pelos militares dos EUA, como ocupar militarmente (quer dizer: ilegalmente) um canto da Síria (na verdade, 40% do território daquele país): porque a guerra contra Rússia e Irã, ao que tudo sugere, são guerras ‘eternas’ – lutas geracionais. A China também é, mas nesse caso o front de guerra é principalmente financeiro.
Em maio de 2016, McMaster dizia em palestra no Center for Strategic and International Studies (CSIS) que: “o mais necessário para conter nação forte (i.e. Rússia ou Irã?) é contenção adiante [ing. forward deterrence], ser capaz de aumentar o custo [da disputa] na linha de frente, e abordar a contenção que seja consistente com deterrence by denial[contenção por negação], convencendo o inimigo de que ele mesmo é incapaz de alcançar suas metas a custo suportável para ele”. Isso talvez explique a o que visa a anexação do nordeste da Síria: fazer subir muito o custo da luta na linha de frente; uma contenção por negação (de terras sírias a forças do Irã).
A Europa também deve examinar detidamente as palavras de McMaster. Porque, se os EUA estão engajados em operações geracionais influenciadas pela doutrina da contrainsurgência contra o Irã, os europeus estão guerreando a guerra errada: tentar acalmar Trump, constituindo para tanto um grupo de trabalho com os norte-americanos para analisar modos pelos quais o JCPOA possa ser melhorado, em entrar em conversações sobre mísseis balísticos com o Irã é caminho certo para nada conseguir. A Europa estará simplesmente deixando-se envolver no que McMaster descreveucomo os EUA deixados livres para operar nesse “campo de combate de percepções e informação”. Vale dizer que os EUA estarão em colusão com operações de contrainteligência dos EUA que estarão sendo montadas contra o Irã.
Muito menos claro que isso, quanto a ‘o que visa’ a política exterior dos EUA é o seguinte.
Na reunião do CSIS em 2016, McMaster descreveu a “invasão” da Ucrânia e a “anexação” da Crimeia como eventos que “marcaram” o fim do período pós-Guerra Fria, mas que não eram novos desenvolvimentos “em termos da agressão russa.” Nas palavras de McMaster:
“Claro, a Rússia está empregando estratégia sofisticada – e estamos estudando essa estratégica agora, com vários parceiros – que combina, realmente, forças convencionais, como cobertura para ação não convencional, mas outra campanha muito mais sofisticada envolvendo o uso de criminalidade e crime organizado, e realmente operando nesse campo de disputa pela percepção e pela informação, e numa parte especial de esforço mais amplo para semear dúvidas e teorias da conspiração dentro de nossa aliança.
E esse esforço, eu creio, visa realmente não a objetivos defensivos, mas a objetivos ofensivos – para levar ao colapso o mundo pós-2ª Guerra Mundial, com certeza a ordem pós-Guerra Fria e toda a ordem da segurança, econômica e política na Europa, e substituir aquela ordem por algo que seja mais harmônico com os interesses russos.”
Sinceramente, é raciocínio psicótico. Faz lembrar Os demônios, de Fiódor Dostoiévski, em que os revolucionários, temendo que a alma da Rússia [no caso, dos EUA] sucumbisse acreditam que, a menos que se exorcizem as supostas ameaças mediante uma furiosa renovação de um vigoroso e puro nacionalismo, o país seria destruído. O romance é um estudo da fragmentação da psique humana que leva o grupo a só ver conspirações à sua volta, todos os conspiradores únicos para destruir o que os possessos veem como se fosse a ‘verdadeira’ alma da própria ‘pátria’.
A visão de McMaster é apresentada como se os EUA fossem a psique ameaçada, frágil – exposta a ataques maléficos que a atingem de todos os lados.
Parece que absolutamente ninguém vê que esses medos não passam de projeções da própria psique dos próprios ‘possuídos’ (como na análise que Dostoiévski constrói); que as ações militares dos EUA podem estar contribuindo para aprofundar os mesmos antagonismos que, hoje, os norte-americanos identificam como ameaças ao povo e ao país; que a dissolução da ordem global modelada pelos EUA e da dominação pelos EUA sobre todo o sistema financeiro global podem ser evidências de poderosas dinâmicas subjacentes nos próprios EUA e no próprio povo norte-americano, que nada têm a ver com Rússia.*****