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sexta-feira, 29 março, 2024

Argentina: Menos direitos, menos humanos

Argentina corta 15% do orçamento para politicas de direitos humanos, sem contar os efeitos da Inflação. Diferença afetará importantes programas sociais.
Ailín Bullentini, para o Página/12
Na Argentina, o projeto de lei do orçamento para 2017 indica que a maioria das áreas do Ministério da Justiça que se dedicam exclusivamente aos direitos humanos receberão menos recursos em comparação ao que foi disposto para os programas desta área neste 2016. Assim, a Secretaria de Direitos Humanos deverá lidar com uma verba anual 15% menor, sem contar o efeito da inflação.
Os cortes atingirão em cheio o programa que assegurava ajuda aos sobreviventes e familiares de vítimas de crimes de lesa humanidade, e também os departamentos que trabalhavam no acompanhamento jurídico das causas em tramitação – os gastos neste dois âmbitos serão de quase 50%. Semanas atrás, o governo atual explicou que a redução orçamentária era fruto do aumento dos gastos por parte do kirchnerismo antes de perder a maioria no Congresso, e que seu objetivo ao reorganizar a Secretaria de Direitos Humanos foi “transparentar” e “reestruturar” o organograma de recursos da pasta. Porém, a informação é desmentida por pessoas que trabalham indiretamente nos programas, através de organismos de direitos humanos.
Agustín Cetrangolo, da organização não governamental HIJOS (“filhos”, entidade que reúne filhos de vítimas da ditadura), denuncia o papel do secretário de Direitos Humanos escolhido por Macri.“(Claudio) Avruj mente ou desconhece o valor destinado aos direitos humanos no orçamento anterior”, reclama. A secretaria dirigida por Avruj receberá pouco mais de 607,5 milhões de pesos argentinos (128 milhões de reais) em 2017, cerca de 110 milhões de pesos (23 milhões de reais) a menos que o recebido em 2016. A redução supera por pouco os 15%. “Sabemos do que estamos falando e é muito preocupante o que ocorrerá se for aprovada uma verba com tantos recursos a menos, porque confirma uma política de desvalorização das políticas públicas voltadas aos direitos humanos. Isto significa menos direitos, menos informação, menos promoção da causa”, explicou o ativista.
As modificações mais notórias que a estrutura de recursos da Secretaria de Direitos Humanos da Argentina vêm sofrendo tem a ver com áreas que simplesmente desapareceram da planificação para o próximo ano. Segundo o especificado no projeto de lei – que está em debate no Congresso argentino no momento – a secretaria administrada por Avruj não transferirá dinheiro algum às províncias e municípios para renovar as placas de trânsito que ajudem turistas a encontrarem os antigos centros de tortura mantidos como sítios de memória. Tampouco haverá recursos para as universidades nacionais e organismos internacionais, cujos objetivos sejam o financiamento de carreiras de graduação ou pós-graduação vinculadas com os direitos humanos. Em 2016, esses gastos foram equivalentes a 3,5 milhões de pesos (737 mil reais). O valor destinado à manutenção, reparação e limpeza dos sítios de memória será 9 milhões de pesos (1,9 milhão de reais) a menos no ano que vem, enquanto as usadas para a preservação do Arquivo Nacional da Memória desapareceu quase completamente.
As despesas com viagens também sofreram uma abrupta redução: dos sete milhões de pesos argentinos (1,5 milhão de reais) que foram programados em 2016, restará apenas um único milhão em 2017: o corte aqui é que quase 80%. Para fazer um contraste, os recursos usados pelo Departamento Anticorrupção para viagens pelo país e fora dele cresceram mais de 200%. “Se não há verbas para viagens, não temos como chegar às províncias e localidades fora da cidade de Buenos Aires, e não poderemos levar assistência para juízos, assistência para testemunhas sob ameaças, e menos ainda para a aplicação a nível nacional de qualquer programa. Pelo visto, o projeto (orçamento 2017) tampouco planeja destinar dinheiro à preservação dos sítios de memória. A política é de clara desfederalização da promoção e proteção dos direitos humanos”, explicou Cetrangolo.
O orçamento destinado ao Espaço Memória, que funciona na ESMA foi um dos pouco locais que recebeu um aumento em suas verbas em comparação com 2016: de 85,7 milhões de pesos (18 milhões de reais) a quase 95 milhões de pesos (20 milhões de reais) programados para o ano que vem. Porém, o valor inclui os salários de todos os trabalhadores do espaço. Logo, o aumento se torna quase obsoleto, se descontada a inflação estimada (17%). “Essa verba acabará sendo quase toda usada para pagar os salários”, alerta Cetrangolo. O mesmo ocorre com os valores totais destinados à Secretaria.
A área que mais recursos consome é a dedicada a fazer cumprir as leis de reparação, que fica com 46% do orçamento. Considerando que o pagamento de salários representa 29%, restariam apenas 25% do orçamento para cobrir todas as demais tarefas da área.
E os direitos humanos do Ministério da Justiça?
As políticas públicas destinadas a sustentar o processo de memória, verdade e justiça não são de responsabilidade apenas da Secretaria de Direitos Humanos. Programas como o de fortalecimento de processos judiciais contra delitos de lesa humanidade, ou o de formação universitária em direitos humanos – que implica no financiamento do Instituto Universitário Nacional de Direitos Humanos “Mães da Praça de Maio” (IUNMA) –, receberão uma verba bastante menor que o requerido no ano passado. O programa que fortalecimento se dedica, entre outras coisas, a oferecer advogados capazes de assistir as vítimas de violações aos direitos humanos durante a última ditadura, e agora terá que entregar o mesmo serviço com a metade dos recursos: no ano atual, funcionou com 23 milhões de pesos (4,8 milhões de reais), e no próximo terá cerca de 12 milhões de pesos (2,5 milhões de reais). A verba para a “Universidade das Mães”, é sensivelmente menor: 23,5 milhões de pesos (5 milhões de reais) em 2017, contra 98 (20,6 em reais) neste ano.
A direção do IUNMA preferiu não opinar sobre o corte, já que ninguém do Ministério da Justiça nem da Secretaria de Direitos Humanos informou oficialmente a respeito, embora o projeto de lei apresentado exiba esses números. Contudo, o reitor do estabelecimento, Germán Ibáñez, esclareceu que “as contingências que enfrentamos são similares às das demais áreas do Estado, às quais também faltam recursos”.
Durante todo este ano, o IUNMA reclamou da Secretaria pelo atraso na execução das partidas orçamentárias destinada ao instituto. Esse atraso afetou principalmente os salários dos docentes, que “estão muito atrasados”. Há mais de um ano, a entidade não conta com um edifício próprio, funcionando em escritórios cedidos pelo Ministério da Justiça, que “não são os mais adequados para as atividades acadêmicas”. O reitor Ibáñez afirma que “foram feitas gestões para se conseguir instalações melhores. Não estamos fechados a uma solução transitória, desde que seja suficiente para os objetivos do instituto”.
Premonição fiscal
Numa coluna de opinião publicada no sítio web da organização de esquerda La Cámpora, Horacio Pietragalla, ex-secretário responsável pelo Arquivo Nacional da Memória, denunciou que a gestão de Avruj executou 40% do orçamento de 2016 previsto para políticas de direitos humanos. “Estes dez meses de macrismo podem nos adiantar qual será o panorama para o futuro”, advertiu o político, em diálogo com o jornal argentino Página/12. “A partir do que eles não fizeram neste ano, podemos entender porque cortam tanto para o ano que vem. Os direitos humanos não são prioridades, e tampouco a educação, a saúde e outras áreas sociais”, determinou.
Leonardo Surraco, que trabalha na área de investigação da Secretaria de Direitos Humanos, é delegado da junta interna da Associação de Trabalhadores do Estado (ATE) no Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos. Ele advertiu que “os cortes já estão sendo aplicados há meses, da mesma forma como foi feito na Prefeitura de Buenos Aires. Os gastos determinados pela lei orçamentária de 2016 não estão sendo executados, e assim se justifica um corte maior ao fazer a previsão do ano seguinte”, relatou. O Centro Cultural da Memória Horacio Conti, por exemplo, “funcionou durante o ano todo sem orçamento, sem um único peso para ajudar em sua manutenção”, revelou o delegado. Enquanto os trabalhadores do CCMHC cobram seus salários, a entidade busca arrecadar recursos para a sua sobrevivência através de shows com a participação de artistas solidários, além de contar com a colaboração de entusiastas em atividades que não requerem recursos para a sua realização”. Algo similar ocorreu com o Centro Ulloa de assistência aos sobreviventes da ditadura, onde “os trabalhadores vêm realizando suas missões com o economizado pela gestão passada e a ajuda de entusiastas, mas sem nenhuma linha de trabalho junto com a nova direção da Secretaria de Direitos Humanos. Não há verbas para nada”, conta Surraco.
Outro caso preocupante é o do Instituto Nacional de Assuntos Indígenas, que o macrismo colocou sob a responsabilidade do Ministério da Justiça e Direitos Humanos. Os funcionários da entidade não assinaram nenhum contrato com o novo ministério ao qual pertencem. “Estão num limbo perigoso”, alertou o delegado.
Tradução: Victor Farinelli
Créditos da foto: reprodução
Fonte: Carta Maior

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