Helena Iono, correspondente em Buenos Aires
O tema central do governo de Alberto e Cristina Fernández nestes dias é a negociação da dívida pública externa acumulada em torno de 95% do PIB, impagável e herdada do governo anterior de “Cambiemos”. Em quatro anos, Macri deixou um país totalmente destruído, como bem reflete o trágico documentário “Terra arrasada”, do cineasta Christian Bauer, atual ministro da Cultura. Eis aí o retrato fiel de um país endividado, à custa do desemprego, da desnutrição e do empobrecimento fatal e massivo de um povo sob as garras do neoliberalismo. Com uma Argentina ao borde do default, o governo atual se encontra diante de um difícil desafio de evitá-lo para que os trabalhadores, os excluídos e a maioria do povo argentino não padeçam definitivamente no fundo do poço.
Macri emprestou dólares do FMI para levá-los em fuga do país, enrobustecidos, rumo às contas offshore dos membros do seu governo neoliberal, incluindo seus apoiadores, e familiares; e de passagem, deixar em maus lençóis o governo peronista-kirchnerista sucessor. Um verdadeiro saqueio! Isso demonstra que o chamado “lawfare”, que perseguiu a ex-presidenta Cristina Kirchner e seu governo, é não só judicial-midiático, mas sobretudo, econômico concentrador, orquestrado pelas finanças internacionais. Dos 104 bilhões de dólares de empréstimos assumidos por Macri volatizaram 88 bilhões; os dólares entraram para o ciclo da especulação financeira, com juros altíssimos, em meio a uma acelerada corrida cambiária e se foram ao exterior, sem entrar no investimento produtivo e industrial nacional. Essa dívida sim, é uma herança maldita! O cronograma de vencimento do pagamento das dívidas públicas, para com privados e órgãos bi e multilaterais é (em dólares), durante a gestão de Alberto Fernández, de 30,4 bilhões em 2020; 20,4 bilhões em 2021; aumentando nos anos posteriores devido à componente FMI: 40,7 bilhões em 2022 e 35,4 bilhões em 2023. Leia. Torna-se decisiva a renegociação dos prazos de pagamento para poder cumprir com as metas urgentes de reestruturação da economia e de salvação nacional em função das camadas empobrecidas do país.
A alternativa de declarar o “default”, com a maior dívida histórica e um risco país mais alto dos últimos 14 anos na Argentina, seria desastrosa num contexto mundial adverso ao de 2001, de ameaças de guerra mundial, econômica entre EUA e China, em fase de atos declarados como o ataque ao Irã e o assassinato do seu líder Soleimani, e outros eventos suspeitosos, bacteriológico-midiáticos, em torno a um Coronavirus, dito “chinês”, interceptando a rota da seda asiática rumo à Europa e o mundo.
Evitando o “default”, o governo da Frente de Todos lança-se à renegociação da dívida macrista com o FMI. Ao mesmo tempo, o nomeado Ministro da economia, Martin Gusman, já lhe antecipou que não pagará os empréstimos previstos até 2023 e que “essa é uma condição necessária” para discutir uma reestruturação da dívida. Diferentemente do que fez Macri e seu governo que contraiu dívidas asfixiantes sem consultar o Parlamento, o governo de Alberto-Cristina submete à aprovação do Congresso uma lei de renegociação da dívida pública.
Trata-se da Lei de Restauração da sustentabilidade da dívida pública, para reestruturar os títulos da dívida pública (em dólares) emitidos sob lei estrangeira. A lei teve meia-sanção, na Câmara de Deputados, aprovada com 224 votos a favor, 2 votos contra e 1 abstenção, contando com o apoio transversal de Cambiemos. O Senado também acabou de aprovar a lei por 65 votos a favor contra zero, o que dá faculdades ao Executivo de negociar com o FMI e os credores. O governo de “Frente de Todos” corre contra o tempo, para renegociar os prazos do pagamento da dívida externa, evitando o “default” que provocaria um desordenamento incontrolável de economia capitalista argentina, sem que existam as relações de forças e instrumentos políticos, nacionais e internacionais para impor uma alternativa revolucionária imediata. Aprovada a Lei Gusman, o atual Ministro da Economia, Martin Gusman, reitera que a meta é “encarar nossos compromissos cuidando aos que mais sofrem”.
A dívida e o advento do novo governo puseram à tona a crise das forças internas de Cambiemos, que reagem às declarações escandalosas de Macri; durante suas longas férias, tirando o corpo fora, e com cinismo característico, gravou responsabilizando seus ministros pela assunção da dívida (firmada por ele), pois os avisou de que seria impagável: “Cuidado, eu conheço os mercados. Um dia não nos dão o dinheiro e vamos todos para a merda!”. Em seguida, surge o voto transversal de Cambiemos no Congresso, oportunista ou não, a favor da Lei Gusman. São votos taticamente necessários de alguns inimigos de classe do governo. Soma-se nesse momento, a inesperada nomeação mafiosa de Macri como presidente da Fundação FIFA rechaçada na Argentina não só por Maradona, mas pela AFA e políticos-esportistas de amplo espectro. Que coincidência! Um ex-presidente como Macri, presidindo a FIFA sobre a qual recaem muitas suspeitas de circulação ilegal de dinheiro.
Enquanto isso, Alberto Fernández no seu primeiro giro pela Europa, após uma significativa recepção pelo Papa Francisco, recebe promessas de apoio da Alemanha, Itália, Espanha e França nas próximas negociações com o FMI, cujo efeito é imprevisível, devido ao poder de veto dos EUA no organismo. Alguma expectativa existe por parte do ministro Gusmán que esteve na conferência organizada pelo Papa em Roma com a nova presidenta do FMI, a búlgara Kristalina Giorgeva (que substituiu Christine Lagarde, badalada por Macri), que expressou disposição à reestruturação da dívida, e elogiou as medidas do governo argentino a favor dos pobres, aconselhadas também no discurso papal: “não se pode pretender que as dívidas sejam pagas com sacrifícios insuportáveis“; “é preciso condenar os paraísos fiscais”; “é um pecado diminuir impostos aos que mais têm”. A tática Argentina da Frente de Todos é apoiar-se num capitalismo europeu em quebra e dividido entre os Brexit e os pró-União Europeia, entre um capitalismo financeiro e industrialista. Ângela Merkel vai na linha deste último ao falar em investir com a Volkswagen na Argentina.
No outro campo, no popular, Frente de Todos trata de dirigir-se à maioria da sua base social e não trair aos seus eleitores. Santiago Cafiero, o jovem chefe da Casa Civil, que militou nos movimentos sociais, diz: “da nossa parte temos vontade de pagar, mas também temos prioridades”. “Para pagar temos que crescer primeiro, pois a conta tem que fechar com o povo dentro”. Máximo Kirchner, líder da Frente de Todos na Câmara de deputados disse: “O que a Argentina e seus representantes devem fazer nesta negociação é fechar os números com as pessoas dentro. Só isso. Temos que dizer ‘nunca mais’ à dívida externa e começar a desenhar uma política econômica que elimine esse problema da sociedade ”. O histórico discurso do seu pai, NéstorKirchner, “os mortos não pagam dívidas!” está presente no peronismo atual.
Medidas econômico-sociais urgentes correm no trilho paralelo da dívida pública
O país deixado por Macri, se encontra à beira de ser outra Grécia, e o novo governo enfrenta uma emergência: a reestruturação da dívida externa, a recuperação da produção nacional e do Estado para resolver urgentemente as demandas sociais sufocadas. Na realidade estas últimas deverão ir nos trilhos de alta-velocidade e chegar primeiro. Segundo, Claudio Scaletta, colunista do Página12, a mudança que trouxe o kirchnerismo em relação ao peronismo neo-liberal dos anos 90 se sintetiza em quatro pontos: “o estabelecimento das retenções (da renda em dólares) aos principais exportadores, a desdolarização das tarifas dos serviços públicos e dos combustíveis, o desendividamento, e o aumento dos salários; justamente as quatro medidas (da década kirchnerista) que o macrismo reverteu. ”
O lema do novo governo é: “que paguem os que mais podem”. Dado que a maior parte das entradas de dólares ao país ocorrem através das exportações, Alberto Fernández decidiu retomar parcialmente a cobrança de retenções a alguns sectores mais concentrados do setor agropecuário. Ao mesmo tempo, o governador Axel Kicillof da Província de Buenos Aires (40% do PIB) encontrou uma província arrasada pela ex-governadora Vidal (Cambiemos) com de dólares de dívida pública. Com uma “Lei impositiva”, aprovada na Câmara Estadual, teve que aumentar em escala proporcional os impostos imobiliários urbanos, até o máximo de 75% para os terrenos rurais acima de 2 mil hectares que correspondem somente a 211 proprietários. Kicillof, incansável executivo, propôs a credores estrangeiros o adiamento do pagamento de uma dívida de 250 milhões de dólares a vencer em fins de janeiro. Negado o apelo, o governador evitou o default recorrendo a um fundo próprio em pesos, contando com novas aplicações de várias instituições financeiras locais. Os tambores de guerra da mídia hegemônica e oligárquica (Clarin e La Nación), instigando a marcha dos tratores, falseando as notícias, alimentando o ódio na classe média, demonizando a imagem de Kicillof e Alberto Fernández giram o mundo como era de se esperar.
Uma das metas centrais tem sido reativar as PYMES (Pequena e média indústria e comércio – 48 falidas/por dia na era Macri) com a moratória para 10 anos das dívidas com a Receita Federal (AFIP), redução de juros creditícios (com Macri chegaram a 70%) e aumento do consumo interno, favorecendo com medidas de intervenção do Estado dirigidas aos setores empobrecidos da população: criação do cartão de alimentação (Plano Nacional contra a fome) para famílias de baixa renda com menores de 6 anos, mulheres grávidas, e deficientes, que recebem AUH (Ajuda Universal por filho) para aquisição de leite, carne, fruta, farinha, e básicos); aumento urgente para aposentados a partir de março, e maior para pensões mais baixas; congelamento das tarifas de energia; aumenta-se a lista de produtos dos chamados “preços cuidados”(subsidiados e mais baratos) nos supermercados e se cria a lei das prateleiras para o comércio expor todas as marcas. Discute-se também como controlar e obrigar os monopólios que sabotam a fixação dos baixos preços. De fato, a população não sente os efeitos das novas medidas; antes das mesmas vigorarem, os preços foram aumentados pelos comerciantes em 30%. Um forte controle estatal e social está em debate. O estímulo do novo governo à economia popular, pequenos empreendimentos e cooperativas, objetiva reduzir o desemprego, aumentar o consumo, e romper os monopólios fixadores de preços.
Projeta-se o Plano de reconstrução de escolas criando novas forças de trabalho e apoiados na solidariedade das famílias. Grande expectativa também sobre o Plano habitacional. Macri deixou sem entregar 14 mil moradias construídas desde o Plano Procrear da era de Cristina Kirchner; cometeu o crime dos Bancos, com a falcatrua do crédito hipotecário (UVA) que deixou 130 mil famílias sem moradia, vítimas da corrida cambiária e dos juros de terror. Agora criou-se uma Lei de solidariedade que designou o Banco Central para revisar tal situação. Chegou a hora de mudar cargos também no Banco da Nação. Descobriu-se que enquanto levavam ao desespero pobres cidadãos com a hipoteca, a direção anterior, fazia num toque um empréstimo de 19 bilhões de dólares para uma empresa multinacional agro-pecuária, Vicentin, aprovada para sustentar a campanha de Macri. Declarando-se atualmente em quebra, abriu-se o debate de nacionalizá-la ou não. Já não surpreende, mas amarga, a notícia de que encontraram 100 mil notebooks do Plano Conectar Igualdade, herança do kirchnerismo, sem distribuir às escolas nestes quatro últimos anos. O novo Ministro da Educação, Nicolás Trotta, promete criar projetos de distribuição de livros e estímulo à leitura. Paulo Freire e o cubano Marti, para quem “um povo livre é um povo culto”, estarão renascendo na Argentina. E nos próximos dias as mulheres estarão comemorando sua nova conquista: a Lei do aborto legal, seguro e gratuito que Alberto Fernández irá submeter ao Congresso.
A urgência na reforma do Judiciário
Tantas denúncias de corrupção e roubo ao patrimônio estatal afloram nessa transição de governo que confirmam as enormes falhas no poder Judiciário alertadas no discurso de posse de Alberto e que justificam sua urgente Reforma Judicial nos próximos meses.
Uma das maiores injustiças tem sido acometida contra Milagro Salas, deputada do Parlasur, presa política nestes 4 anos, por suposta corrupção sem provas, por ordem do governador de Jujuy, Gerardo Moráles (Cambiemos). Milagro é promotora de uma gigantesca obra de construção de casas populares, e repartições públicas e beneficentes, que o mundo não conhece. A natureza política e a injustiça da sua prisão se desmascaram com a quebra interior dos cúmplices judiciais a serviço da oligarquia. Revelou-se um áudio escandaloso de um juiz, Pablo Baca, presidente da Corte Suprema de Jujuy: “Sala não está presa por seus delitos. Eu creio que Milagro Sala não roubou o dinheiro”. Enfim, como esse, fez parte de um esquema de lawfare mais amplo, no ápice piramidal, o falecido juiz Bonadio que conduziu 8 dos 9 processos sem prova contra a ex-presidente Cristina Kirchner, incluindo outros, dos vários presos da causa “Cadernos”. E o que não dizer do emaranhado da Justiça em torno do Caso Nisman? A transição de governo, retornando a uma gestão democrática, pela justiça e verdade, põe também em relevo o pus das feridas abertas: a nova interventora da AFI, Cristina Caamaño, junto a familiares das vítimas da AMIA denunciam o estado de destruição em que se encontravam os arquivos do atentado.
Para a maioria do povo argentino golpeado pelo lawfare, nos seus direitos humanos básicos de sobrevivência, há grande expectativa para que se possa reverter a situação e fazer justiça. Anunciou-se que haverá vários processos de corrupção, no exercício abusivo do poder Executivo, contra Macri favorecendo grupos econômicos e familiares. Só para citar algumas causas já conhecidas: o das “Auto-estradas”; dos Parques eólicos; do Correio Argentino; o da anistia aos volumosos capitais não declarados (Blanqueo de capitales); o da falsificação de sustentadores de campanha. Muitos se perguntam se há impunidade e não haverá justiça no caso de ministros como Dujovne que firmou acordos com o FMI à revelia do povo, favoreceu a fuga de capitais, arruinou milhões, e agora parece desfrutar a vida em paraísos alpinos.
A vice-presidenta Cristina Kirchner, entra em cena para desmascarar o terrível lawfare que fez retroceder a Argentina aos sótãos da democracia. Ela acaba de apresentar duas denúncias na Justiça Federal e na Administração Federal de Arrecadação Pública(AFIP – Receita Federal) macrista de Rio Gallegos, para demostrar que existe um “grupo de tarefas”, com braços na AFI (Agencia Federal de Inteligência) desde o início do governo Macri para montar o “lawfare”: “para os que ainda não acreditam na existência do Lawfare, cujo objetivo é a destruição dos opositores políticos através da utilização ilegal de procedimentos judiciais e administrativos por parte de funcionários públicos e de setores do poder judicial, em perfeita coordenação com os meios de comunicação hegemônicos”.
Mídia e comunicação
Enquanto as medidas em relação à comunicação pública, componente fundamental para combater o poder hegemônico do lawfare, estarão ainda por ser anunciadas, Alberto Fernandez comunica de forma ativa e detalhista as medidas de seu governo, a exemplo do presidente mexicano. Lopez Obrador, usa diariamente a coletiva de imprensa. Alberto, aparece sempre em canais como C5N, nas TVs-online independentes que resistiram ao poder hegemônico de Clarin, e nas audições de rádio, pelas quais o argentino têm um bom “vício social” herdado do peronismo.