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domingo, 17 março, 2024

Após 30 anos, teólogo diz que a obra dos mártires continua em El Salvador

O padre jesuíta Jon Sobrino rememora o seu orientador, o Pe. Ignacio Ellacuría, e os problemas do país mesmo depois da guerra.

A reportagem é de Chris Herlinger, publicada por National Catholic Reporter, 24-10-2019. A tradução é de Isaque Gomes Correa.

O padre e teólogo jesuíta Jon Sobrino encontrava-se na Tailândia quando soube dos assassinatos. Ele recebeu um telefonema por volta da meia-noite. Um amigo, Julian Filochowski, hoje presidente da Archbishop Romero Trust [1], estava do outro lado da linha, em Londres. “Jon, está sentado?”, disse ele.

Filochowski enumerou os nomes dos colegas de Sobrino assassinados na Universidade da América Central, em El Salvador, mais conhecida pela sigla UCA: os padres jesuítas Ignacio Ellacuría; Ignacio Martín-Baró; Segundo Montes; Juan Ramón Moreno; Joaquín López y López; e Amando López.

Também enumerou os nomes de Elba Ramos, trabalhadora doméstica dos religiosos, e sua filha adolescente, Celina.
Vivendo em El Salvador em 1989, “me veio à mente que eles [os clérigos] poderiam ser mortos”, disse o espanhol de nascimento Jon Sobrino em entrevista ao National Catholic Reporter no começo deste ano. “Não era algo que já esperávamos, mas também não nos veio como uma surpresa total”.

“Entendo”, disse Sobrino. “Eles diziam que nós éramos comunistas, marxistas, e dizer isso, entre a elite militar, era bastante perigoso [para nós]”. Ser chamado de teólogo da libertação pelo exército “era um insulto grave”.
Mas Sobrino não entendeu os assassinatos das mulheres.

“Quando ouvi que elas foram mortas, fui à loucura, realmente”, disse Sobrino. “Duas mulheres. Mulheres inocentes. O que fizeram para serem mortas?”

“Foi uma crueldade extrema que não houvesse testemunhas”, acrescentou ele, em referência ao fato de que Ellacuría, reitor da UCA, era o alvo principal da operação militar e que os demais foram mortos de forma a não haver testemunhas, de acordo com um relatório da ONU de 1993. [2]

A fúria de Sobrino ressoa com pungência especial este ano, no 30º aniversário do dia 16-11-1989 dos assassinatos cometidos pelo grupo de elite conhecido como Batalhão Atlacatl, que surpreenderam o mundo e marcaram um momento de galvanização na guerra civil que já durava 12 anos, iniciada em 1979, e terminada em janeiro de 1992, e que ceifou mais de 75 mil vidas.

“Trinta anos é um número simbólico”, reconheceu Sobrino, e o fardo dos eventos de três décadas atrás permanece imediato e abrasador.

A avaliação da guerra apresentada no relatório de 1993 dizia que “o assassinato dos seis padres jesuítas 10 anos [depois do assassinato de Dom Oscar Romero] o foi repente final do delírio que havia infectado as forças armadas e os recantos mais íntimos de certos setores do governamentais”.

Embora estes números estejam associados à inauguração de um novo capítulo que levou a um tratado de paz em 1992, o relatório da ONU também deixa clara a responsabilidade dos militares salvadorenhos na criação de uma cultura de violência que tomou conta do país por mais de uma década.

Ao ordenar as mortes dos padres que haviam proposto uma negociação entre o governo e os rebeldes de esquerda, o comando militar demonstrou, segundo o relatório, “até que ponto a sua postura havia endurecido ao ousar eliminar aqueles que eram vistos como opositores, fossem porque eram oposição, fossem porque manifestavam preocupação, inclusive trabalhadores católicos e jornalistas”.

Nem mesmo a condenação de oficiais do exército e o subsequente acobertamento chegaram a aliviar por completo o choque dos assassinatos, que ocorreram durante uma ofensiva militar em 1989 encabeçada por guerrilhas da FMLN (partido da Frente de Libertação). (Os militares alegaram, falsamente, que a UCA, instituição jesuíta, era um centro para a atividade da FMLN. E, em uma outra inversão, os soldados tentaram fazer parecer que as guerrilhas, e não os militares, fossem os responsáveis pelas mortes.)

As mortes dos jesuítas marcaram uma década tortuosa, uma época em que os militares apoiados pelos Estados Unidos declaravam guerra contra a Igreja por sua defesa dos pobres, a começar pelo assassinato de Dom Oscar Romero e pelas mortes de quatro missionárias americanas, em 1980.

Para Jon Sobrino, com 80 anos de idade hoje e um destacado teólogo da libertação que morou a maior parte da vida em El Salvador e que reconhece que atualmente “se cansa facilmente” devido à saúde e à idade, os eventos de trinta anos atrás continuam vívidos – e são a causa para uma reflexão contínua e aprofundada.

Falando inglês em uma sala cheia de livros e com ar de um velho sábio, inteligente e gentil, Jon Sobrino lembrou que o motivo pelo qual estava na Tailândia na época dos assassinatos era para participar de um congresso de teologia, coordenando uma oficina sobre o Jesus crucificado. (Os organizadores do congresso haviam originalmente convidado o companheiro teólogo Leonardo Boff para falar, mas este declinou o convite por não falar inglês.)

Sobrino saiu de onde estava depois do telefonema e fez uma caminhada pela beira da praia. Alguém no congresso, preocupado com Sobrino, o acompanhou, e depois de uma hora de silêncio perguntou: “Por que o senhor não foi morto?” Sobrino respondeu: “Talvez eu não era digno disso”.

Um dia depois, os organizadores preparam uma missa e, na sequência, alguém se aproximou de Sobrino e perguntou o que ele estava sentindo. Ouviu em resposta: “Tenho más notícias. Os meus amigos foram mortos. Mas a boa notícia é que eu convivi com pessoas muito boas”.

Pessoas muito boas de fato. Os mártires jesuítas e as duas mulheres são homenageadas na UCA com um jardim perto da residência onde a maior parte dos assassinatos aconteceu, e a universidade celebra anualmente as mortes.

O jardim é um lugar de paz, de contemplação e os visitantes são levados a ele durante um passeio pelo grande museu universitário em lembrança à guerra salvadorenha. Mais visitantes são esperados, já que a instituição celebra o aniversário especial deste ano, que incluirá uma missa, em 14 de novembro, e outros eventos comemorativos, segundo disse o Andreu Oliva, atual reitor da UCA.

“Celebrar anualmente este aniversário mantém viva a história dos mártires e fortalece o compromisso da universidade para com a justiça social e com o legado fiel da Companhia de Jesus”, explicou o reitor em entrevista ao National Catholic Reporter.

O evento deste ano será especialmente comovente, acrescentou ele, focando tanto na universalidade das vidas dos mártires como nas particularidades e necessidades de El Salvador hoje.

Embora o país não esteja em guerra, os problemas que a animaram nos anos 80 ainda ressoam, disse Andreu. “A realidade salvadorenha atual é marcada pela exclusão, desigualdade, migração, violência, falta de aceso à saúde, educação”, disse. “O país continua a gerar violência estrutural porque marginaliza a população, em particular os pobres”.

Isso é língua franca na UCA, instituição onde Sobrino lecionou desde 1974 e que serviu de lar intelectual e espiritual seu durante uma série de polêmicas. Entre elas está uma crítica, em 2007, por parte da Congregação para a Doutrina da Fé, segundo a qual, em sua escrita, Jon Sobrinho tende enfatizar a natureza humana de Jesus, em vez de sua natureza divina.
A crítica vaticana, no entanto, não resultou em uma censura formal e Sobrinho continuou a dar aulas e a escrever.
E sua paixão e ousadia continuam. Em um ensaio ampliado de 2008, intitulado “O olho da agulha: fora dos pobres não há salvação” (The Eye of the Needle: No Salvation Outside the Poor), Sobrino assim se expressa sobre a dívida que tem com Ellacuría, um orientador seu.

“Para Ellacuría” – escreve Sobrino – “os males que precisavam ser superados eram óbvios: a pobreza, o agravamento da exploração, a lacuna escandalosa entre ricos e pobres, a destruição ecológica, bem como a perversão dos avanços atuais na democracia e a manipulação ideológica dos direitos humanos”.

“Ele denunciou repetidas vezes a desumanização, a degradação e a prostituição do espírito sobre os quais muito pouco estava – e ainda está – sendo dito”, escreve Sobrino no começo do ensaio no qual abraça um tema querido entre o seu amigo assassinado: “Para curar uma civilização que está muito doente, precisamos, de alguma forma, da contribuição dos pobres e das vítimas”.

Jon Sobrino disse que nunca se sentiu culpado por não estar com os colegas quando eles foram mortos. Mas disse achar que ele e os demais na universidade devem continuar o trabalho em que os colegas, com tanto vigor, acreditavam, seja dentro das salas de aula, seja no dia a dia, na vida de um pais que continua em luta.

“Temos que ser honestos: grande parte da realidade é dolorosa. Mas sinto que devo ser grato pela realidade que me pressionou a continuar e a não ter medo”.

Sobrino tem certeza de duas coisas. No contexto salvadorenho, “têm havido muitos mártires” e que “os mártires não morrem”. Ao mesmo tempo, ele crê que os seus amigos assassinados teriam mantido as suas próprias mortes em perspectiva. Milhões morrem de desnutrição, mas não recebem o reconhecimento, observa o religioso. “Eles, também, são mortos”.

Como melhor honrar o legado de seus colegas caídos? Tentando dar continuidade ao seu trabalho e reconhecendo que a guerra foi apenas um capítulo na história de El Salvador.

“Acho que, até certo ponto, as coisas mudaram no país, mas os civis mortos nele desde o acordo de paz [de 1992] é praticamente o mesmo número de civis morros durante a guerra”, disse Sobrino, citando a violência criminal em El Salvador e a violência das gangues.

Os colegas de Sobrino que foram assassinados “denunciariam os horrores do mundo”, disse ele. “Este mundo é horrível”.
Mas sejamos um padre jesuíta, uma cozinheira ou jornalista, “é nosso dever fazer deste mundo um mundo melhor, e tornar a realidade boa. Esse é a melhor forma de celebrar os trinta anos, ou cinquenta, ou os 100”.Notas:

Fonte: Revista Ihu Online

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