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terça-feira, 8 outubro, 2024

Anistia: 40 anos de uma lei esquizofrênica e de interpretação ardilosa e medíocre

Não era a anistia ampla, geral e irrestrita que a sociedade civil queria, mas foi a que trouxe de volta os nossos irmãos brasileiros banidos da pátria e exilados do acalanto de seus lares.

Toda lei é obra da política, da correlação de forças da época de sua gênese. A lei da anistia foi aprovada por 50,61 de um Congresso no qual figurava os senadores biônicos (não eleitos pelo povo e sim indicados pelo ditador e escolhidos indiretamente), os quais constituíam 32% do Senado Federal, mesmo assim a diferença fora de apenas 5 votos a favor do projeto do governo.

É inquestionável que a Ditadura Militar surgiu com um golpe (1964), rasgou o diploma legal, cometeu monstruosa ilegalidade e, com o tempo, as ilegalidades se multiplicaram, sobretudo quando os militares começaram a usar a violência para calar a oposição. O movimento pela anistia se tornaria uma grande bandeira da sociedade e um caminho inevitável.

Cansadas da mordaça que lhes havia sido imposta e sensíveis aos lamentos vindos dos porões da ditadura, as vozes, antes silentes, foram à luta participar do movimento pela anistia ampla, geral e irrestrita. O grito da Nação foi mais forte, a ditadura cedeu. Em 28 de agosto de 1979, a lei 6683 foi promulgada pelo último ditador, general João Figueiredo – aquele que gostava do cheiro de cavalo e não o do povo.

Não era a anistia ampla, geral e irrestrita que a sociedade civil queria, mas foi a que trouxe de volta os nossos irmãos brasileiros banidos da pátria e exilados do acalanto de seus lares. Uma lei aprovada em condições precárias, pela óbvia razão de que uma das partes tinha os fuzis e a outra estava sob suas miras, quando o Congresso era composto por senadores “biônicos”, as tesouras da censura continuavam afiadas, bombas armadas em quartéis e colocadas  até em bancas de jornais mantinham o clima de terrorismo da linha dura dos militares, e, ainda, a grande mídia permanecia comprometida com a ditadura.

A lei da Anistia (depois da Constituição de 1988 e do Regime Anistiado Político) obrigou a União à reparação a todos que foram prejudicados profissionalmente pela ditadura, voltando às suas carreiras como se na ativa estivessem permanecidos. Contudo, esses diplomas não diferenciaram o sofrimento daqueles que, independente do prejuízo profissional, sofreram as arbitrariedades do regime. A lei não indeniza pelos tempos de prisão, tortura, humilhação, sevícia e sequelas, mas, unicamente pelo dano profissional. O Estado ditatorial sequestrou, aprisionou, estuprou, torturou, julgou, condenou, baniu, matou e desapareceu com os brasileiros que se insurgiam contra a sua tirania, e o fez com base em leis, tribunais e órgãos de exceção e repressão – era o terrorismo de Estado. A lei é de indenização ao dano profissional, não alcança os danos morais e materiais perpetrados pela ditadura aos opositores do regime.

À época, a interpretação da Lei da Anistia se baseou numa corruptela do conceito de crimes conexos, sem o devido amparo legal do CPC e da Constituição, sendo que, posteriormente, a emenda 26/85 excluiu a expressão “de qualquer natureza”, que consta na lei da anistia. Expressão que permitiu a juristas tendenciosos interpretarem como anistiados também aos agentes da ditadura. Contudo, mesmo admitindo tal corruptela, há o 2º parágrafo (Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal), que foi aplicado a alguns militantes que permaneceram presos após a lei, contudo, também deveria atingir aos agentes da ditadura que praticaram terrorismo, sequestros, atentados pessoais. Ademais, o direito internacional não admite a autoanistia, estando o Brasil condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Os crimes de lesa-humanidade ocorreram desde o dia do golpe até após a Lei da Anistia, como a carta-bomba que matou a secretária da OAB, em 27 de agosto de 1980, e o atentado ao Riocentro, em 30 de abril de 1981, portanto, mesmo admitindo a interpretação capciosa do STF,  a lei não anistia os crimes de terrorismo ocorridos após 1979, como o do atentado, o da secretária da OAB e ataques com explosivos às bancas de jornais.

A lei que criou a Comissão Nacional da Verdade mandou apurar e identificar os autores das graves violações dos Direitos Humanos. E não o fez à toa. O relatório nomina 377 agentes.

É de máxima importância ir além do drama humanitário das vítimas. É preciso criminalizar os agentes. Sem justiça não haverá a reconciliação do país e a impunidade continuará como marca da história brasileira.

Anistia não é esquecimento! O passado não é para ser esquecido, mas lembrado para nunca mais ser repetido. É impossível esquecer as ignomínias da tirania e do terror do Estado. O eixo da campanha pela anistia não foi o do perdão, além do retorno dos exilados, foi o da denúncia dos crimes da ditadura – exigindo esclarecimento das mortes e dos desaparecimentos forçados, com a devida responsabilização do Estado e a criminalização dos agentes que cometeram as graves violações aos Direitos Humanos.

Não havendo justiça de transição os vermes do passado permanecem a corromper a sociedade, como atualmente com o bolsonarismo, que representa o lixo dos remanescentes da linha dura da ditadura militar.

O presidente miliciano, ex-capitão, Bolsonaro, o vice, gal. Mourão, e os mais próximos ajudantes, como o porta-voz da presidência, general Floriano Peixoto,  o Chefe do GSI, general Augusto Heleno, eram oficias do Exército na década de 70 e ardorosos defensores da linha dura da ditadura militar, na época e no presente, constituindo um perigo para o que resta de democracia no Brasil.

Quando o povo der uma basta a este Estado policial de milicianos, militares e togas fascistas e o Estado democrático de Direito for recomposto, a pauta memória/verdade/justiça deverá ser retomada com a instalação de uma segunda Comissão Nacional da Verdade e a lei da anistia ser reinterpretada, desta feita, corretamente.

Seguramente Bolsonaro e outros militares do seu governo devem ter informações a prestar à CNV II sobre os mortos e desaparecidos pela ditadura militar e a responder pelos seus delitos do passado e atuais. Mas não podem mentir!

O governo bolsonarista não conseguirá apagar o passado, a verdade histórica é mais forte e sobrepujará suas mentiras, virá sempre à memória da sociedade para assombrar àqueles que terão que prestar contas à história e à justiça.

Revelar a memória, estabelecer a verdade e implementar políticas de reparação aos períodos de barbáries da nossa história – escravagismo e ditaduras, é dever axiomático do Estado democrático de direito.

Francisco Celso Calmon é Advogado, Administrador, Coordenador do Fórum Memória, Verdade e Justiça do ES; autor do livro Combates pela Democracia (2012) e autor de artigos nos livros A Resistência ao Golpe de 2016 (2016) e Comentários a uma Sentença Anunciada: O Processo Lula (2017).

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