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Sputnik – O impacto dos vazamentos de documentos sobre a guerra do Afeganistão em 2010, realizados pelo WikiLeaks, não apenas revelou crimes de guerra e abusos por parte das forças norte-americanas, mas marcou uma virada na forma como a opinião pública global enxerga a atuação dos Estados Unidos em conflitos armados, disse um analista à Sputnik Brasil.
O vazamento marcou um ponto de inflexão na percepção pública sobre o envolvimento militar dos Estados Unidos no exterior. Entre os arquivos mais emblemáticos estava o vídeo “Collateral Murder”, que mostra soldados norte-americanos assassinando civis, inclusive crianças, enquanto comentavam como se estivessem em um jogo de videogame.
Em julho, Julian Assange, responsável pelo vazamento e pelo WikiLeaks, foi libertado de uma prisão britânica após anos de encarceramento e retornou à Austrália depois de fechar acordo com as autoridades norte-americanas.
Para o professor Sérgio Amadeu da Silveira, da Universidade Federal do ABC (UFABC), a divulgação dos mais de 90 mil documentos foi um “abalo muito grande” na imagem de civilidade construída em torno das ações militares norte-americanas.
“Os Estados Unidos invadem o país sempre em nome de uma causa nobre. E o que aqueles documentos demonstravam é que, na verdade, os Estados Unidos perseguiam interesses dos mais mesquinhos possíveis, em geral econômicos, geoestratégicos, e o método militar era um método extremamente criminoso“, afirmou o pesquisador em entrevista à Sputnik Brasil.
Amadeu ressalta que os arquivos divulgados não foram contestados quanto à veracidade e expuseram práticas como tortura, ataques a civis e outros crimes de guerra. Ele observa que, diante das revelações, o discurso norte-americano de que suas ações externas teriam motivações democráticas e humanitárias perdeu credibilidade. “Aquilo tudo caiu por terra”, disse.
Além das revelações, a perseguição ao fundador do WikiLeaks, Assange, é, segundo o pesquisador, mais uma demonstração dos limites da liberdade de imprensa nos Estados Unidos.
“A liberdade de imprensa nos EUA é realizada dentro de parâmetros que o Departamento de Estado coloca. Quando se trata de segurança nacional, os EUA exercem censura“, afirmou Amadeu, destacando que há inclusive “mecanismos legais de tirar de circulação determinadas matérias“.
Segundo o historiador Gabriel Kanaan, doutor pela Universidade Federal Fluminense (UFF), a brutalidade do conteúdo abalou profundamente a narrativa oficial de que os EUA lutavam pela democracia e liberdade. “Soldados estadunidenses, se divertindo, assassinam crianças como se estivessem jogando CS“, lembra ele.
No entanto, o impacto foi limitado, uma vez que os grandes veículos de comunicação, majoritariamente norte-americanos, filtraram as informações. “Mesmo quando o vazamento chegou às pessoas, geralmente vinha através das lentes dessas grandes empresas […] que criaram narrativas que tentavam pintar os crimes de guerra como exceções”, completa.
Mudança no complexo militar-industrial
Quinze anos após os vazamentos, os Estados Unidos continuam sendo a maior potência militar do planeta, mas enfrentam desafios econômicos e tecnológicos, segundo Amadeu. A principal mudança, no entanto, é a crescente integração das big techs ao complexo militar-industrial.
“O complexo militar-industrial agora incorpora no centro das decisões as big techs e suas infraestruturas digitais, em especial os grandes data centers“, explica o Amadeu. Ele destaca que, diante das especificidades das tecnologias digitais e da inteligência artificial, as Forças Armadas norte-americanas não conseguem mais operar de forma autônoma e precisam integrar empresas privadas ao processo de decisão e execução militar.
Essa relação vai além da simples terceirização de serviços: “Executivos dessas empresas estão sendo nomeados, […] para poder ter livre trânsito dentro das Forças Armadas em missão”, aponta Amadeu. Para ele, trata-se de um “conúbio extremamente preocupante”, já que essas empresas “têm os dados da população do mundo” e agora fazem parte do “poderio estratégico militar norte-americano”.
Os documentos vazados não apenas escancararam crimes de guerra, mas também revelaram os interesses ocultos por trás da chamada “guerra ao terrorismo“, como a busca por petróleo no Oriente Médio. Para Kanaan, o acesso a esses documentos em tempo real — em vez de décadas depois, como é o usual — representou uma oportunidade inédita para a história.
“Os quase três mil telegramas enviados do Brasil revelaram o enorme interesse dessas mesmas petrolíferas pelo pré-sal, e o repúdio delas pela lei do governo Lula que reservava 30% das reservas à Petrobras, o que chamaram, em conversa com José Serra, de uma ‘maldição'”, apontou.
A crise da narrativa e os riscos à democracia
Segundo Amadeu, o controle da informação pelos EUA, historicamente sustentado por recursos diplomáticos, culturais e midiáticos, hoje enfrenta maior contestação interna e externa. Ele argumenta que a ascensão da extrema-direita nos EUA e em outros países capitalistas reflete uma crise profunda do modelo democrático liberal, diante de um capitalismo cada vez mais concentrador de poder, riqueza e dados.
“A ideia de que a cultura política tem que se expressar no modelo americano não cola mais. O modelo americano da política é extremamente perverso. Ele não é uma democracia, é uma plutocracia, onde o que prevalece é o poder dos bilionários“, argumentou.
Apesar do enfraquecimento das narrativas de legitimidade moral, Amadeu alerta que os EUA ainda exercem grande influência global e que parte de sua elite dirigente busca resgatar a hegemonia perdida. “Eles [os EUA] querem se manter numa posição imperial, coisa que eles não podem mais fazer“, arrematou.
Os documentos revelados pelo WikiLeaks mostram como a diplomacia norte-americana opera nos bastidores. Um exemplo emblemático citado por Kanaan é o telegrama da Embaixada dos EUA no Paraguai, de 2012, em que a embaixadora Liliana Ayalde celebra a derrubada do presidente Fernando Lugo: “Sua intervenção ‘não deixou pegadas'”. A mesma diplomata viria a comandar a embaixada no Brasil durante o processo de impeachment de Dilma Rousseff, em 2016.
Para o historiador, a principal diferença hoje é que certos interesses geopolíticos que antes eram encobertos agora são escancarados. “Talvez a diferença da atuação geopolítica do império sob Trump seja a afirmação dos mesmos interesses, mas agora sem máscaras.”