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quarta-feira, 18 setembro, 2024

América Latina sem soberania- crônicas de arrogância, rapina e maldade (04)

4ª Crônica: Preparando as independências políticas e as sujeições coloniais.

Pedro Augusto Pinho*

Imagine, caro leitor dessas Crônicas, que a Imperatriz da Rússia, Catarina II, a Grande, que gostava de se ver cercada por intelectuais e estrategistas, perguntasse para onde o Império Russo, que governou de 1762 a 1796, deveria voltar seus exércitos, visando aumentar, ainda mais, seu imenso território. E que tal indagação ocorresse ao mesmo tempo da fundação, por Grigory Shelekov, da colônia russa no Alaska (1784).

Olhando as Américas, estes homens veriam quatro grandes vice-reinados: Nova Espanha, Nova Granada, Peru e Rio da Prata, falando o mesmo idioma, professando a mesma religião e tendo estruturas administrativas semelhantes, desde o sul da América do Norte até a Patagônia. Por outro lado, ao norte, além do eventual ponto de apoio do Alaska, uma dezena de pequenas colônias, falando inglês, francês, sueco, escocês, galês, holandês e com religiões distintas: puritana, anglicana, batista, quaker, luterana, católica, judaica, faziam prever diversos e pequenos novos países, provavelmente sem condições de enfrentar a Rússia Czarista.

Fora deste contexto, ao sul, voltado para o Oceano Atlântico certa unidade territorial, subordinada ao Império Português, já se fizera notar pela expulsão de franceses e holandeses em diversos pontos do Brasil.

Os conselheiros não teriam dúvida em recomendar à Imperatriz que invadisse o que se constituía nas Treze Colônias estadunidenses.

Imagine suas surpresas, vendo as Américas ao término da I Grande Guerra, ou Guerra Civil Europeia, em 1918.

Nesta crônica lançaremos algumas ideias para buscar a explicação que contrariava a lógica da política expansionista do século XVIII, e porque, no século XIX, as Américas, com única exceção do Brasil, não formaram, territorialmente, grandes países.

Coevo dos iluministas assessores de Catarina II, pois nasceu no ano seguinte ao início dos seus 34 anos de reinado, José Bonifácio de Andrada e Silva faz parte do pequeno número dos grandes pensadores políticos da história moderna, como Cardeal de Richelieu, verdadeiro construtor do Império Francês, Marquês de Pombal, que buscou revitalizar Portugal, e George Washington, de quem discorreremos, brevemente, na continuação desta Crônica.

O sucesso ou insucesso de ver suas ideias serem concretizadas não diminui a qualidade do analista. Veja o caso do próprio José Bonifácio e do outro grande brasileiro, os dois únicos que merecem estar no panteão dos construtores da nacional brasileira: Getúlio Vargas.

O retraimento de Bonifácio talvez tenha, mais do que seu empenho de político, garantido nossos 8.510.345,538 km², e o suicídio de Vargas prorrogou, por 35 anos, as políticas desenvolvimentistas no Brasil, possibilitando-nos os 50 anos gloriosos da Era Vargas.

Porém, meu culto leitor já estaria observando contradição na exposição inicial: como Catarina II, em 1784, invadiria as colônias do norte da América, se suas independências ocorreram em 04/07/1776?

Por que os Estados Unidos da América (EUA) ainda não existiam. A Guerra contra Inglaterra só foi concluída em 03 de setembro de 1783, quando a Inglaterra assina o Tratado de Paris, onde:

a) reconhece a Independência das Treze Colônias e lhes entrega o território compreendido entre os Grandes Lagos, os Montes Apalaches e os rios Ohio e Mississippi; e

b) devolve à França e à Espanha os territórios que incorporara após a Guerra dos Sete Anos.

As Treze Colônias representavam menos de 10% do que viria constituir os EUA, exatamente 9,86%, e a Constituição que daria homogeneidade institucional, política e jurídica ao país só seria assinada em 17/setembro/1787.

A hipotética ambição de Catarina II não estava por conseguinte fora da realidade. E mais. Como assinala, entre outros autores, Ray Raphael, da Universidade da Califórnia: “durante mais de um século e meio, os colonos desenvolveram em suas casas as histórias locais. Elas se mantiveram separadas e distintas”, mas a Guerra pela Independência e a construção de nova Nação exigiu que se fundissem e se inventasse um passado comum, verdadeiramente inexistente. E em “Founding Myths: Stories that Hide our Patriotic Past”, 2004 (traduzido por Maria Beatriz de Medina, “Mitos sobre a Fundação dos Estados Unidos”, para Editora Civilização Brasileira, RJ, 2006) Raphael enumera o que as crianças estadunidenses passaram a estudar, desde as primeiras letras, e os políticos a repetir em Assembleias sobre a História dos EUA.

Pierre Melandri, historiador francês, especialista nos EUA, escreve no início de sua “História dos Estados Unidos desde 1865”:

“A metamorfose dos Estados Unidos num período pouco maior do que um século, a partir de 1865, é um fenômeno impressionante. Pequena república, ainda povoada por maioria camponesa ao fim da guerra civil, surge como a mais avançada das civilizações pós-industriais. Terra do individualismo e das virtudes agrárias, ainda mergulhada no último terço do século XIX, no ordálio pioneiro da epopeia da “Fronteira”, os Estados Unidos representam o cadinho da concentração econômica e financeira, onde dois terços dos ativos da indústria pertencem a apenas a duzentas empresas, a maioria delas controlada por alguns bancos nova-iorquinos” (P. Melandri, “Histoire des États-Unis depuis 1865” (2000), na tradução de Pedro Elói Duarte, para Edições 70, Lisboa, 2006).

CONHECER A REALIDADE ENTRE AS BRUMAS DAS IDEOLOGIAS

Parte do que vem ocorrendo nos EUA é a invasão ideológica, um totalitarismo que não aceita exceção. Coloco as palavras de Ray Raphael, na obra citada: “A história nunca consegue recriar adequadamente o passado” e, adiante, esclarece: “quem controla a narrativa, controla a história”. E como auxiliando a confusão, “a mera multiplicidade dos eventos frustra as tentativas de fazer bela embalagem”. Resultado: um país de conto de fadas: ora boas ora más, não para sociedade, mas para quem controla a educação e sua continuidade na comunicação de massa. Aprendemos errado ou parte do acontecido, para fazer prova de conhecimento, e o “instagram” e os “Jornais Nacionais” completam nossa desinformação, para o convívio pacífico nas comunidades.

Foi na Colônia de Virgínia, a primeira constituída nos EUA (1607), pela Virgínia Company, autorizada pelo rei Jaime I, em 10/04/1606, com o objetivo de colonizar a costa oriental da América, que nasceu George Washington (22 de fevereiro de 1732, Bridges Creek-14 de dezembro de 1799, Mount Vernon). Filho de rica família, que fizera fortuna com a especulação imobiliária, e para onde seu bisavô, John Washington, imigrou, em 1656, de Sulgrave (Inglaterra).

Até seu casamento com a jovem viúva Martha Dandridge Custis, do rico proprietário de 7 300 ha de plantações, Washington havia sido agrimensor e militar. Foi com a vida de casado e a fortuna e capacidade de sua esposa que se viu na política, apoiando, em 1775, a candidatura do amigo George William Fairfax para representar a região na Casa dos Burgesses da Virgínia. Eleito e reeleito se tornou crítico da política tributária da Grã-Bretanha e das políticas mercantilistas, em relação às colônias americanas.

Washington foi incluído na elite política e social da Virgínia. De 1768 a 1775, convidou cerca de dois mil visitantes para sua propriedade, em Mount Vernon, principalmente aqueles que considerava “pessoas de nível”. Tornou-se politicamente ativo e apresentou projeto de lei na Assembleia da Virgínia para estabelecer embargo aos produtos da Grã-Bretanha.

Em junho de 1775, o Congresso criou o Exército Continental, e Samuel e John Adams indicaram Washington para se tornar seu comandante em chefe. Washington compareceu ao Congresso uniformizado e fez o discurso de aceitação em 16 de junho, recusando salário — embora mais tarde tivesse suas despesas reembolsadas. Foi comissionado em 19 de junho e elogiado pelos delegados. John Adams proclamou ser Washington o mais adequado para liderar e unir as colônias.

Era sem dúvida um dândi, mas tinha conhecimento dos terrenos, como ex-agrimensor e fazendeiro, e seus amplos relacionamentos o fizeram bom leitor de personalidades.

O absolutismo perdia espaço entre a intelectualidade europeia. A liberdade individual estava em moda e explodiria com a Revolução Francesa. Invenções e conjurações e inconfidências corriam a Europa e suas colônias, como a Mineira, de Tiradentes, em 1789, no Brasil.

Washington soube se cercar de patriotas com o mesmo empenho em criar o país onde houvesse a liberdade individual e os projetos nacionais. Além de Adams, que viria ser seu vice-presidente, Jefferson, Alexander Hamilton, Edmund Randolph compuseram seu governo.

Porém, mais do que isso, a ancestralidade de lavradores ensinara a ver a realidade, não se iludir com as névoas das ideologias, e lhe parecia a arrogância inglesa e sua necessidade de explorar economicamente as colônias motivo suficiente para uni-las em defesa de suas independências, da liberdade que motivara suas imigrações.

Mais difícil do que unir para guerra foi manter a união após a vitória.

E, sobre isso, o historiador e dramaturgo Charles L. Mee, Jr mostra perfeitamente em “A História da Constituição Americana” (tradução de “The Genius of the People” (1987), por Octávio A. Velho, para Expressão e Cultura, RJ, 1993) ao afirmar: “Ao término da Convenção, nenhum dos delegados – nem um sequer – estava inteiramente satisfeito com a constituição que havia elaborado. Alguns recusaram-se firmemente a assiná-la, e os que a assinaram fizeram com graus variáveis de relutância, desalento, angústia e desagrado”.

Por que, perguntará o arguto leitor, os EUA derem certo? Porque, ao lado da liberdade individual, das iniciativas pessoais, constituiu-se um estado provedor de capital, que era sócio, no mais das vezes oculto, dos negócios, e que formou com isso o poder plutocrático, paralelo aos poderes constituídos pela Constituição, que a mantém quase intocada desde 1787. Os banqueiros, fazendeiros, comerciantes, militares que se reuniram naquele longo verão (25 de maio e 17 de setembro), na Filadélfia, sob as lideranças de George Washington, Alexander Hamilton e Benjamin Franklin estavam criando não o país da justiça (afinal a constituição manteve a escravidão) e da liberdade (exceto para o capital, obviamente), mas do engodo, das comissões, ou, nas palavras do próprio constituinte Benjamin Franklin: “dos preconceitos, paixões, interesses locais e visões egoístas”.

Os EUA nascem com o engodo e assim, aproveitando as oportunidades e fraudando as realidades, fez sua história.

DIVERSIDADES NA UNIDADE DA AMÉRICA ESPANHOLA

Na segunda dessas crônicas, manifestávamos a compreensão que os primitivos ocupantes das Américas chegaram 23 mil anos mais sábios do que partiram em direção à Ásia. A surpreendente civilização asteca, como a maia e inca que recepcionaram os espanhóis são exemplos deste entendimento. Entretanto, a crueldade e ambição dos espanhóis assustaram os locais que não viam como enfrentar desconhecidos cavalos, armaduras e armas de fogo.

Por razões de síntese, fiquemos na civilização inca. Em 1520, o Império abrigava cerca de 12 milhões de pessoas, falando cerca de 20 idiomas, na área de 950 mil km2. Existiam, naquela sociedade oral, os “memorizadores”, responsáveis por transmitirem a história, que alguns espanhóis recolheram.

Em extensão, o Império Inca foi o maior que os espanhóis encontraram; do atual Equador, prolongando-se por 4.700km, até o norte do Chile. Estava dividido em quatro territórios (“suyu” em quíchua): Chinchaysuyo, Antisuyo, Contisuyo e, ao sul, Collasuyo.

Da relação dialética entre a natureza, o espaço físico, e as crenças e saberes surgem as culturas. Vê-se portanto que os Incas, tendo submetido outros povos andinos (chancas, ayarmacas, colas, lupacas), sabiamente, dividiram seu território para minimizar disputas, que a escassez, mormente de alimentos, impulsionava.

Ao criarem uma unidade administrativa, trataram de fortalecê-la com o Grande Conselho dos Incas, formado pelos representantes das quatro províncias (suyus) e por dois representantes de Cuzco (Hanan Cuzco e Hurin Cusco). Cusco (qosqo), em quéchua, significa “umbigo do mundo”. Esta divisão correspondia a duas partes da cidade, alta e baixa, e era também os locais das residências dos soberanos, das linhagens reais. Não há homogeneidade dos cronistas quanto a época desta divisão, aparentemente essas famílias nobres já existiam quando o rei reformista dividiu a cidade nestas duas partes, assimétricas, para efeito administrativo.

Uma característica da governança Inca é a presença do Estado. Tudo era propriedade estatal, porém dividida em três partes: (1) para o próprio Estado (“Tahuantinsuyu”, em quéchua, “Império dos Quatro Cantos”), (2) para a Igreja e (3) para o povo, para as comunidades.

O Império Inca correspondeu, total ou parcialmente, aos atuais países: Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Chile e Argentina.

Se as diversidades norte-americanas poderiam confundir, na elaborada hipótese de uma conquista da América por Catarina, a Grande, a homogeneidade dos Vices Reinados do Peru, do Prata e, parcialmente, da Nova Granada, por onde se espalhava o Império Inca, não denunciariam as características específicas de cada país, mas, tão somente, o resultado da quase extinção das populações e de suas culturas pelo período colonial.

Também, as estruturas políticas, sociais e econômicas surgidas com as diferentes influências para as independências, que decorreram quase todas na primeira metade do século XIX (1810 a 1850), viriam ressaltar diferenças que foram subjugadas pela religião católica, pelas formações intelectuais europeias, pela economia colonial e pelo poder totalitário do domínio espanhol.

Temos assim amostras das formações dos atuais Estados Nacionais das Américas: farsas generalizadas, impedindo reconhecer a ambição voraz estadunidense, e as influências antinacionalistas na antiga América Espanhola. As atuais exceções: Cuba e Venezuela são denominadas ditaduras, e os países que procuram se libertar do julgo unipolar são também vítimas de exclusões, golpes articulados do exterior, embargos, sanções e confiscos arbitrários.

Os processos das independências serão objeto das próximas crônicas.

*Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado.

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