Janet Yellen, a secretária do Tesouro dos EUA, finalmente reconheceu o que tem sido óbvio para a maior parte das pessoas desde a tempos, nomeadamente que a imposição de sanções contra países a que os EUA são hostis leva ao risco de comprometer a hegemonia do dólar como a divisa de reserva do mundo. Se as sanções fossem impostas só sobre um ou dois países, então o caso seria diferente. Mas hoje os EUA usam sanções para atingir dúzias de países e, quando isto acontece, tais países tendem a congregar-se a fim de formar arranjos alternativos de modo a contornar as sanções. Estes arranjos alternativos têm o efeito de minar a ordem mundial dominada pelos EUA, caracterizada pela hegemonia do dólar.
Ironicamente, mas não surpreendentemente (pelo que é expectável de um alto membro da administração Biden), apesar de admitir isto Janet Yellen pronunciou-se a favor das sanções que atualmente os EUA estão a impor. Ela também admitiu que quando são impostas sanções contra países cujos governos seguem políticas mal vistas pelos EUA, estas são ineficazes para mudá-las; no entanto provocam grandes dificuldades para os povos dos países visados. O exemplo do Irão foi por ela mencionado: apesar de anos de sanções as políticas do governo iraniano mal vistas pelos EUA não foram alteradas, embora o povo iraniano tenha sofrido grandemente. Como ela própria disse: “Nossas sanções ao Irão criaram uma crise económica real naquele país e o Irão está a sofrer muito economicamente por causa das sanções… Será que isto o forçou a uma mudança de comportamento? A resposta é: muito menos do que idealmente gostaríamos”. Contudo, mesmo este reconhecimento não a impediu de apoiar a imposição de sanções pelos Estados Unidos. Ao contrário, no caso do Irão os EUA, diz ela em tom aprovativo, está a examinar meios de fortalecer as sanções ainda mais.
O facto de países visados pelas sanções fazerem arranjos alternativos que minam a ordem mundial dominada pelos EUA é óbvio atualmente. A Rússia, que tem sido visada por sanções, está em processo de recriar arranjos bilaterais com um certo número de países, da espécie que a União Soviética costumava ter antigamente, em que o comércio seria efetuado em termos de rublo e da divisa local, com a taxa de câmbio entre eles permanecendo fixada, ao invés do dólar.
O que faz um arranjo assim é remover o dólar do seu papel como meio de circulação sobre uma grande parte do comércio mundial; e é isto que coloca uma ameaça à hegemonia do dólar. O papel do dólar como a unidade de conta do comércio mundial, isto é, o facto de que os preços são denominados em termos de dólares, não tem grande consequência – não é aí que repousa a sua hegemonia. Ela está no facto de que são necessários dólares para realmente executar transações que dão à moeda estado-unidense a sua posição única.
Naturalmente, o dólar também atua como uma forma de entesouramento; mas este papel do dólar decorre do facto de ser meio de circulação. O dólar, ao contrário de qualquer commodity, não tem valor intrínseco, no sentido de que muito pouco trabalho é gasto na sua produção. Ele comanda valor porque este valor é fixado em relação alguma commodity e é afirmado quando usado como um meio de circulação. Segue-se, portanto, que a hegemonia do dólar é baseada sobre o seu papel como um meio de circulação em transações internacionais. Qualquer deslocamento do dólar deste papel implicaria uma contestação desta hegemonia. E é precisamente isto o medo quando são impostas sanções sobre um grande número de países, que então começam arranjos alternativos.
Na verdade, as sanções não são a única razão pela qual o dólar pode ser deslocado do seu papel hegemónico. Muito países desejosos de se livrarem desta hegemonia, ou simplesmente desejosos de expandir suas oportunidades comerciais, podem voluntariamente entrar em arranjos em que o dólar é excluído do seu papel como meio de circulação. Nos tempos da União Soviética o acordo bilateral de comércio que a Índia tinha com os soviéticos não era devido a qualquer compulsão induzida por sanções para ultrapassar o regime de hegemonia do dólar. Era motivado simplesmente pelo desejo de expandir o comércio para além do que era possível dentro do regime de hegemonia do dólar. Não surpreendentemente, ideólogos neoliberais travaram uma luta ideológica implacável contra tais acordos bilaterais, a fim de remover quaisquer potenciais desafios à hegemonia do dólar. Eles, em resumo, tinham uma agenda ideológica ao passo que os acordos de comércio bilateral não tinham. Mesmo agora, a China e o Brasil estabeleceram um acordo em que o comércio mútuo será efetuado nas suas respectivas divisas, embora nenhum dos dois tenha quaisquer sanções americanas impostas contra si.
Da mesma forma, Dilma Rousseff, a ex-presidente do Brasil que acaba de ser nomeada presidente do banco dos BRICS, anunciou que entre 2022 e 2026, 30 por cento dos empréstimos a serem concedidos por este banco aos países membros será nas divisas locais. Isto com o objetivo geral de desdolarizar estas economias, não por causa de quaisquer compulsões específicas.
Convém aqui recordar as vantagens que a hegemonia do dólar confere aos Estados Unidos. Há duas vantagens óbvias: primeiro, com o dólar como a divisa de reserva, os EUA não têm de se preocupar acerca de quaisquer problemas de balança de pagamentos, ao contrário dos demais países. Assim, pode liquidar seus pagamentos pela emissão de compromissos de dívida (IOU, I owe you) para outros países que os manteriam, uma vez que estes IOUs denominados em dólares são uma forma segura de manter riqueza. Por esta razão, consegue estimular, e estimula, a economia mundial. Em segundo lugar, e também por esta mesma razão, a atividade dos bancos americanos aumenta muito. É verdade que as transações em dólares não se limitam apenas a bancos americanos; mas não há dúvida de que os bancos dos EUA são os maiores beneficiários quando o dólar é o meio de circulação no comércio mundial.
Mas, para além destes fatores óbvios, há uma vantagem mais básica que beneficia o mundo capitalista metropolitano no seu conjunto devido à hegemonia do dólar, a saber: permite ao sistema impor uma compressão do rendimento – e portanto da procura – aos países produtores de bens primários do terceiro mundo a fim de assegurar uma oferta crescente de commodities primárias para atender a procura metropolitana sem quaisquer aumentos dos seus preços – mesmo quando a produção dessas commodities não aumenta em medida significativa.
Este processo funciona da seguinte forma. Quando há um excesso de procura por uma commodity primária produzida no terceiro mundo, o seu preço aumenta em termos de moeda local. Isto cria expectativas de uma depreciação da sua taxa de câmbio em relação à divisa de reserva mundial, precisamente porque está divisa é diferente da divisa de reserva. Isto desencadeia uma fuga de capitais daquela economia particular do terceiro mundo para a metrópole, provocando uma desvalorização efetiva da divisa, em resposta à qual o país aumenta a sua taxa de juro e adota medidas de “austeridade”. Estas medidas provocam uma diminuição dos rendimentos locais e, portanto, na absorção local daquela commodity particular e também de outras commodities das quais a terra possa ser desviada rumo àquela commodity específica. Assim, a commodity primária escassa é tornada disponível para a metrópole em quantidades adequadas, eliminando o excesso de procura original e restabelecendo o preço original.
Conclui-se que o arranjo de divisas que prevalece no mundo capitalista alcança o mesmo objetivo que o exercício da coerção direta no período colonial, ou seja, extorquir matérias-primas do terceiro mundo a preços não crescentes através da compressão da absorção local. O arranjo monetário contemporâneo é, em suma, uma expressão do imperialismo. Daqui também decorre que a divisa de qualquer país do terceiro mundo que produz uma commodity primária, ou um grupo deles, não pode ser a divisa hegemónica, sem prejudicar toda esta estrutura imperialista e, portanto, a estabilidade do capitalismo contemporâneo nela assente. A hegemonia do dólar é uma parte crucial deste arranjo monetário.
O movimento rumo à desdolarização que testemunhamos atualmente ataca, portanto, as raízes desta hegemonia metropolitana. Não se trata apenas de uma questão de ter um arranjo de divisas substituindo outro. Trata-se de uma questão da estabilidade de todo o sistema o qual está baseado na hegemonia metropolitana e é executado às expensas dos povos do terceiro mundo. Eis porque serão feitas tentativas furiosas – não só pelos Estados Unidos, mas por todo o mundo capitalista metropolitano – para impedir a desdolarização. E estas tentativas podem mesmo envolver a utilização de coerção não económica contra regimes que trabalham para essa desdolarização.
A tentativa de desdolarização é, em suma, a expressão da crise atual do capitalismo e, por esta mesma razão, faz ressaltar a sua absoluta crueldade.
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